A recente polémica dos símbolos nacionais
parece-me ocupação de quem pouco mais tem a discutir do que posições
ideológicas ou de postura política pouco pragmática.
Não sou tão velho como a Sé de Braga, mas penso
que a memória não me atraiçoa, se discorrer como segue, sem me estender muito
nas questões simbólicas e históricas.
A revolução republicana, em 5 de outubro de 1910,
criou ruturas, obviamente, mas manteve o essencial do que se pode chamar o
devir natural da nação. Assim, suprimiu a coroa; criou o escudo como moeda
nacional, em sucessão do real; substituiu o adjetivo “real” das instituições,
em cuja designação ele figurava, pelos adjetivos nacional, português/a,
republicano/a; substituiu a bandeira da monarquia pela bandeira da República
que designou por Bandeira Nacional; instituiu “A Portuguesa”, como Hino
Nacional (a 1.ª estrofe e o coro), em vez do Hino da Carta; criou o Congresso
da República bicamaral (Senado e Câmara dos Deputados), em vez das Cortes; e a
personalidade de topo da nação passou a ser o Presidente da República, em vez
do Rei.
A Bandeira Nacional de base bicolor – verde e
rubro – tem no centro o escudo nacional (castelos, não pagodes, e quinas) incrustado
na esfera armilar (armilas em amarelo dourado), parecendo conjugar-se o passado
com a inovação. Enfim, a esfera armilar substitui bem a coroa. Esta pode colocar-se
na cabeça; aquela, quando muito, coloca-se sob os pés do “Cristo Pantocrator”.
A Constituição da República Portuguesa (CRP), de
1976, estabelece, no artigo 11.º, cuja epígrafe é “Símbolos nacionais e língua
oficial”: “1. A Bandeira Nacional,
símbolo da independência da República, unidade e integridade de Portugal, é a
adotada pela República instaurada pela Revolução de 5 de outubro de 1910. 2. O Hino Nacional é A Portuguesa. 3. A língua oficial é o Português.”
É certo que também se consideram línguas
oficiais, em Portugal, o Mirandês e a Língua Gestual Portuguesa. Porém, a Lei
n.º 7/99, de 29 de janeiro, não usa a expressão “língua oficial” para o
Mirandês, mas “reconhece o direito a cultivar e promover a língua mirandesa, enquanto
património cultural, instrumento de comunicação e de reforço de identidade da
terra de Miranda” (artigo 2.º). E o artigo 74.º da CRP, n.º 1, alínea
b), considera que, na realização da política de ensino, incumbe ao Estado
“proteger e valorizar a língua gestual portuguesa,
enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e à igualdade de
oportunidades”.
De qualquer modo, não são símbolos propriamente nacionais, porquanto a
primeira se confina a uma microrregião e a segunda abrange a comunidade surda
(embora considerável) e as pessoas relacionadas com ela, como os familiares, os
professores e os empregadores.
Juntamente com os dados simbólicos, temos as questões atinentes à
nomenclatura oficial e aos mecanismos instrumentais do quotidiano.
Por exemplo, a nível desses instrumentos, temos o euro, a moeda oficial,
na sucessão do escudo, depois que Portugal passou a integrar a Zona Euro.
A nível da nomenclatura, para lá do que já foi dito, temos, por exemplo,
o Diário da República e o Diário das Sessões da Assembleia da
República.
Nunca percebi a razão pela qual o jornal oficial do Estado se denominava Diário do Governo (até 10 de abril de
1976), e não Diário da República,
quando este instrumento publica, não só os atos do governo, mas também do
Presidente da República (PR), da Assembleia da República (AR), dos Tribunais
superiores, das regiões autónomas, das autarquias e das diversas entidades da
administração direta e indireta do Estado. Pode dizer-se que, ao invés do Diário das Sessões da Assembleia da
República, que recolhe os diplomas em discussão e aprovados, mas ainda sem
força de lei, o Diário do Governo,
ora Diário da República (DR), publica as leis e os decretos do PR
e as leis da AR promulgadas pelo PR, ou seja, já são atos do governo, por via
da referenda ministerial e para execução. É certo, mas o DR também publica atos de outras entidades que não precisam de
promulgação, nem de homologação ou de ratificação, por exemplo, resoluções da
AR, instrumentos das autarquias, decretos legislativos regionais e decretos dos
governos regionais, acórdãos e assentos dos Tribunais superiores, mapas de
resultados eleitorais, etc.
Por isso, a designação que melhor lhe quadra é Diário da República, já que o nome oficial do Estado Português é República Portuguesa (ver artigo 1.º da
CRP). Podia ser também Diário Nacional,
Diário de Portugal, Diário da Governação, desde que abranja
toda a República.
Já, para órgão de soberania legislativo por excelência, convivo bem com
as designações de “Assembleia Nacional”, “Parlamento”, “Congresso” ou “Assembleia
da República”.
Achei disparatada a designação de “Presidente do Conselho” ou de
“Presidente do Conselho de Ministros”, para os chefes de governo do Estado
Novo. Com efeito, a função de presidente do Conselho de Ministros é apenas uma
das funções do primeiro-ministro (PM) ou chefe do governo. Aliás, tanto antes
como agora, também há ou pode haver o ministro da Presidência.
A, a meu ver, descabida polémica dos símbolos nacionais não é de
símbolos, mas de logótipos. Os símbolos nacionais não podem ser alterados pelos
governos, pois estão constitucionalmente protegidos. O logótipo – as pessoas estranham
porque se exige a pronúncia “logótipo” (do Grego: lógos + týpos) e não
“logotipo”, quando todos pronunciamos protótipo (do Grego: prôtos + týpos) e não
“prototipo” (a composição é análoga) – é uma marca que enquadra o timbre de um
papel oficial, tal como há um formulário para o início de discurso, de carta ou
de outro documento, ou para o seu remate.
Escrevi ofícios cuja despedida era “Deus guarde Vossa Excelência”; outras
terminavam “A Bem da Nação”. Depois da Revolução dos Cravos, passámos a rematar
os ofícios com “A Bem da República”; a partir de outubro de 1976, passámos a
despedir-nos “Com os melhores cumprimentos”; e, ainda hoje rematamos um
requerimento com “Pede deferimento”.
O timbre dos papéis oficiais era encimado pela esfera armilar a ostentar
o escudo nacional, com ou sem palmas, ladeada pelas letras S R, uma de cada
lado (em alguns casos, por baixo da esfera armilar, lia-se Serviço da
República). Se a folha não fosse polivalente, depois da esfera armilar, vinha a
designação do organismo respetivo. Com o evoluir dos acontecimentos, a esfera
armilar, com as letras S R, eclipsou-se, em muitos casos e passou a constar, no
timbre, apenas a designação do respetivo serviço (ou serviços devidamente
hierarquizados, como, por exemplo, “Ministério da Educação – Direção Regional
da Educação do Centro – Escola Secundária de Castro Daire”).
Entretanto, com o governo de Passos Coelho, os diversos serviços
ostentavam, no frontispício, a bandeira bicolor semienrolada ostentando o
escudo nacional acompanhada a designação Governo
de Portugal. Não gostei, porque me lembrei do caso de um professor,
colocado num dos serviços regionais do Ministério da Educação, que, tendo sido
objeto de processo disciplinar por alegados insultos ao primeiro-ministro do
XVII Governo Constitucional, não sofreu penalização, porque a ministra da
Educação, ao tempo, considerou que o PM não era seu superior hierárquico. E eu
vi, nesse logótipo do XIX Governo Constitucional, a ideia de que os servidores
do Estado eram funcionários do governo, o que não é verdade. O governo é o
órgão que superintende na Administração Pública, mas os organismos da
administração Pública são autónomos.
Assim, pareceu-me bem o facto de os governos de António Costa haverem
mantido o logótipo, mas substituindo a designação de Governo de Portugal pela de República
Portuguesa. Os trabalhadores em funções públicas são, efetivamente,
servidores do Estado ou da República,
mas não necessariamente do governo. Os funcionários do governo são
relativamente poucos.
Quando, em junho de 2023, vi o logótipo simplificado, fazendo ressaltar
uma tripla coloração, não fiquei chocado. Era a coisa mais normal em termos de design em tom modernizado. Só não gostei
de, mais tarde, ver a desnecessária explicação d republicidade, de laicidade e
de inclusão.
A reversão operada pelo XXIV Governo Constitucional, na sequência de
promessa eleitoral, mostrou que o governo tinha poucas tarefas importantes a
fazer. E as razões invocadas sabem a passado e a revanchismo. O outro governo
gastou uns euros, para fazer obra de arte; este gasta um pouco menos, para
anular a obra de arte e para marcar ostensivamente a sua posição. Não era
preciso. Salve-se o facto de ter mantido a expressão República Portuguesa.
***
Entretanto, a 9 de abril, no Diário de Notícias (DN), Ricardo
Simões Ferreira não comenta a mudança do logótipo
para um modelo “mais moderno”, criado por Eduardo Aires, mas a mudança da
designação que acompanha toda a comunicação oficial emitida pelo Executivo: de
“Governo de Portugal” passou a “República Portuguesa”. Não é verdade, como
expliquei.
Diz
que a mudança se prende com o hábito de confundir o poder executivo com a
República ou com o Estado, o que “põe em causa a própria democracia”. De facto,
constitucional e democraticamente, o governo não pode assumir a designação de
“República Portuguesa”, pois “a República é toda a organização política do
Estado, que ultrapassa, em muito, o governo, limitado por normas
constitucionais e equivalentes, até porque, não é eleito diretamente, emana da
AR.
Todavia,
embora o Estado seja representado, a nível supremo pelo PR, a representação
normal do Estado compete ao governo, que dirige a política interna e externa da
República. É um serviço da República e é um dos seus órgãos de soberania.
Simões
Ferreira até pensa que, apesar de a receita do Estado provir dos impostos de todos os cidadãos, que formam o Estado, quem
gere esse dinheiro e faz a sua aplicação é o governo, pelo que, em vez de “orçamento
do Estado”, deveríamos ter “orçamento do governo”. Não é correto, pois o órgão
de soberania que decide em matéria de impostos é a AR, outro órgão de soberania
da República. Também os tribunais, que são órgão de soberania, e as regiões
autónomas e as autarquias locais, que também são serviços da República,
arrecadam receita e assumem despesas.
A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira contrapõe a Simões
Ferreira que, tal como o demais “órgãos de soberania”, o governo é órgão da República
Portuguesa, o nome oficial do País. Ora, “se o chefe do Estado se designa como Presidente da República e o parlamento como Assembleia da República,
torna-se pertinente falar também em Governo da República, até para
o distinguir dos governos regionais dos Açores e da Madeira. Se resultar claro dos documentos que se trata
do governo, assiste-lhe a legitimidade de “invocar a entidade política em nome
da qual atua” (tal como o governo regional invoca a sua região, ou a câmara
municipal o seu município). E, incumbindo ao governo conduzir “a política
europeia e a política externa do País”, deve “assumir-se como governo da
República Portuguesa nas relações com outros Estados e com as organizações
transnacionais”.
Quanto ao orçamento do Estado, o professor Vital Moreira sustenta que a expressão “orçamento do Estado” é a
designação constitucional (CRP, artigo 105.º) e está correta, pois o documento
prevê as receitas e as despesas de todo o Estado, incluindo as privativas do
PR, da AR e dos tribunais, e não apenas do governo e da Administração dele
dependente. Por outro lado, “não é o governo que ‘decide onde aplicar o dinheiro’, pois só lhe cabe elaborar a
proposta de orçamento, cabendo a sua aprovação à AR (e a promulgação ao PR)”.
Ricardo
Simões Ferreira entra em contradição, a menos que haja lapso: por um lado diz
que este governo substituiu a designação “Governo de Portugal” (do anterior)
por “República Portuguesa”; por outro, diz que António Costa não tinha o
direito de usar a expressão “República Portuguesa”.
***
Enfim,
formas estranhas de entender a democracia e o peso dos órgãos de soberania!
Ainda bem que o renomado constitucionalista Vital Moreira está atento.
2024.03.10 – Louro de Carvalho
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