A 25 de março,
quando se assinalava o nono aniversário do início da guerra no Iémen (a 25 de
março de 2015), a Amnistia Internacional (AI) lembrava
ao Mundo que milhões de Iemenitas continuam a sofrer as consequências
duradouras do devastador conflito, num contexto de incapacidade crónica das
partes em disputa para fazerem justiça e para repararem as vítimas de crimes,
ao abrigo do direito internacional, e de violações dos direitos humanos.
Por
isso, a AI renovou o apelo à comunidade internacional para que crie um
mecanismo internacional independente de responsabilização, que investigue e
divulgue, publicamente, as violações e os abusos mais graves do direito
internacional cometidos nos últimos nove anos, que recolha e que preserve
provas para futuros processos penais e pedidos de indemnização.
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Como os outros
conflitos bélicos, também este “não é apenas sinónimo de morte”. Antes, constitui fértil terreno para a violação maciça de
direitos humanos, incluindo a
tortura, os desaparecimentos
forçados e as detenções
arbitrárias e ilegais.
Os
conflitos armados podem ser espoletados por problemas relacionados com a
identidade, com a etnia, com a religião ou com a concorrência para controlar
recursos, entre outros.
Nos conflitos um pouco por todo o Mundo, governos e grupos armados atacam
civis de forma sistemática. O eclodir de uma guerra é, invariavelmente, seguido de sofrimento
e miséria.
As
mulheres e crianças são desproporcionalmente afetadas pelo conflito armado,
perfazendo 80% de todos os refugiados e deslocados. A violação e outras formas
de violência sexual são perpetradas, sistematicamente, durante os conflitos.
A
AI não toma partido nos conflitos, mas documenta e faz campanha contra abusos
de direitos humanos e contra as violações das leis internacionais, independentemente
de quem os pratique ou onde sejam cometidos. Além disso, ajuda os sobreviventes
a reivindicar justiça.
Nações
poderosas têm demonstrado sinistra disposição para manipular instituições
internacionais ou aplicar dois pesos e duas medidas. Os Estados fornecem armas
a exércitos que se sabe que cometem abusos maciços e que, depois, encobrem os
responsáveis, quando os abusos são perpetrados. A violência contínua
alimenta-se de injustiças não resolvidas, que resultam de anos de conflito
destrutivo e da incapacidade em julgar os responsáveis.
Mesmo
em tempos de guerra, há regras a que todas as partes devem obedecer. O direito
humanitário internacional, conhecido como leis da guerra, foi desenvolvido com
o intuito de proteger os civis dos efeitos horríveis dos conflitos.
O
direito humanitário internacional é um conjunto de regras que limitam a forma
como as operações militares podem ser levadas a cabo. Fundamentalmente, exige
que os beligerantes de todos os lados poupem os civis e as pessoas que já não
estão envolvidas em combates, como os soldados feridos ou que se renderam. As
graves violações destas regras, tal como os ataques diretos contra civis,
constituem crimes de guerra.
O
Tribunal Penal Internacional (TPI) foi criado, em 2002, para julgar pessoas
acusadas de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e
crimes de agressão. Na antiga Jugoslávia, no Ruanda e na Serra Leoa, foi
possível levar à justiça pessoas que cometeram ou mandaram cometer este tipo de
crimes. A primeira condenação emitida pelo TIP, em março de 2012, visou Thomas
Lubanga, líder de um grupo armado na República Democrática do Congo, em parte
por usar crianças no conflito.
Assim, a AI promete não parar até que se se
concretizem os seguintes quesitos: o fim da impunidade para crimes de guerra e crimes
contra a humanidade; a compreensão, por parte das forças militares e de grupos
armados, de que atingir civis nunca terá justificação; o fim do recrutamento e
da utilização de crianças soldados, a sua desmobilização, reabilitação e
reintegração na sociedade; e o reconhecimento do Tratado sobre o Comércio de
Armas Convencionais, através de legislação e de práticas nacionais.
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Segundo
a AI, o Iémen “continua a viver uma das piores crises humanitárias do Mundo”. De
acordo com dados do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR), há hoje cerca de 4,56 milhões de pessoas deslocadas, devido ao
conflito, e mais de 70 mil refugiados e requerentes de asilo”. E o Gabinete de
Coordenação dos Assuntos Humanitários da Organização das Nações Unidas (ONU), no
Iémen, “18,2 milhões de pessoas necessitam de assistência e proteção
humanitária” e, “pelo menos, 17,6 milhões de pessoas” enfrentam “dificuldades
conexas com insegurança alimentar e nutricional”, sendo que “metade das
crianças iemenitas com menos de cinco anos sofrem de atraso de crescimento
moderado a grave devido à insegurança alimentar”.
Além das dificuldades no acesso à alimentação,
duas em cada cinco crianças, ou seja, 4,5 milhões, estão fora da escola,
segundo um relatório da organização Save the Children, intitulado “Hanging
in the balance: yemeni children’s struggle for education” (Em suspenso: a luta das crianças iemenitas pela educação).
Um terço das famílias inquiridas no âmbito desta investigação tem, pelo menos,
uma criança que abandonou a escola nos últimos dois anos, apesar da trégua
mediada pela ONU, que entrou em vigor em 2022.
A análise da Save the Children conclui que as crianças
deslocadas são duas vezes mais suscetíveis de abandonarem a escola e, apesar de
o regresso à sua área de origem reduzir em 20% a vulnerabilidade ao abandono
escolar, a insegurança constante impede o seu regresso a casa. Além da
violência, as propinas e o custo dos manuais colocam educação fora do alcance
de muitos, com 20% das famílias a afirmar que esta é inacessível. E mais de 44%
dos cuidadores e das crianças inquiridas referiram que a necessidade de apoiar
os rendimentos das suas famílias é a principal razão do abandono escolar. Com
efeito, a miséria de salários e a penúria em alimentos, em roupa, em saúde e em
habitação dificulta o acesso à escola.
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Para que nada fique por ocorrer, um
tribunal Houthi, no Iémen, condenou 32 homens, nove deles à morte por
crucificação ou por apedrejamento, num “julgamento em massa injusto baseado em
acusações duvidosas de ‘sodomia'”, denunciou, a 27 de março, a Human
Rights Watch (HRW), que apela ao fim do uso da pena de morte e de “outras
formas de punição cruel e degradante”, por parte do grupo armado rebelde, que
controla uma parte significativa do país.
Além das penas de morte, o tribunal Houthi
condenou três homens a flagelação pública. Mas a acusação
judicial inicial, datada de 17 de outubro de 2023, incluía “violações
flagrantes do próprio código processual penal do Iémen”, concluiu a HRW. “Num
desrespeito abominável pelo Estado de direito, os Houthis proferem sentenças de
morte e submetem homens a maus-tratos públicos sem qualquer aparência de
processo devido”, acusa Niku Jafarnia, investigador da HRW no Iémen e no
Bahrein. E acrescenta: “Os Houthis estão a usar estas medidas cruéis para
desviar a atenção do seu fracasso em governar e fornecer necessidades básicas
às pessoas nos seus territórios.”
A HRW vem documentando abusos
sistemáticos nas prisões Houthi. São detidas, repetidamente, pessoas que
criticaram as políticas vigentes, sob o pretexto de “cometer atos imorais”. É o
caso do juiz Abdulwahab Qatran, preso em janeiro de 2024 sob acusações
relacionadas com o consumo de álcool, depois de ter criticado os
ataques dos Houthis no Mar Vermelho, nas redes sociais.
Em relatório de 2023, o Painel de Peritos
do Conselho de Segurança da ONU sobre o Iémen concluiu que os
prisioneiros detidos pelos Houthi são submetidos a tortura psicológica e física
sistemática, sendo-lhes recusada a intervenção médica para curar os ferimentos
causados pela tortura infligida, o que, para alguns, resultou em incapacidades
permanentes e morte.
Segundo o Monitor Euro-Mediterrânico dos Direitos
Humanos, os tribunais Houthi condenaram 350 pessoas à morte desde que assumiram
o controlo da capital, em 2014, e executaram 11 delas. Isto, apesar de
as normas internacionais de direitos humanos, incluindo a Carta Árabe dos
Direitos Humanos, ratificada pelo Iémen, obrigarem os países que adotam a pena
de morte a restringir a sua aplicação a circunstâncias excecionais, para os
“crimes mais graves”.
“Para encobrir a sua brutalidade, os Houthis
estão a acusar as pessoas de atos imorais, especialmente as que se lhes opõem”,
alerta Jafarnia. “Os Houthis deveriam acabar imediatamente com o uso da pena de
morte e outras formas de punições cruéis e degradantes”, sustenta.
Recorde-se que o Iémen está “a viver uma
das piores crises humanitárias do mundo”, com cerca de 4,56 milhões de pessoas
deslocadas, devido ao conflito que se arrasta desde março de 2015.
Mohamed Mannaa, diretor interino da Save the
Children no Iémen, destaca a importância de um cessar-fogo oficial no país.
“Embora a trégua tenha reduzido alguma violência, nunca trouxe a estabilidade de
que as famílias necessitam desesperadamente para reconstruir as suas vidas.
Acima de tudo, o Iémen precisa de um cessar-fogo oficial. Sem ele, as famílias
ficam no limbo. Não podemos permitir que as crianças do Iémen, que anseiam por
nada mais do que segurança e a oportunidade de aprender, percam de vista um
futuro repleto de possibilidades. Todas as crianças no Iémen merecem crescer
com segurança, com acesso a educação de qualidade e a horizonte promissor.
Quanto mais esperarmos, mais difícil será alcançar um impacto duradouro.”
Segundo
a Save the Children, sem uma intervenção imediata, “toda uma geração corre o
risco de ficar para trás, com consequências, a longo prazo, para a recuperação
e o desenvolvimento do país”. Esta organização não-governamental apela a todas
as partes interessadas, incluindo as autoridades iemenitas, Estados doadores,
instituições e intervenientes humanitários, para que lidem com estes desafios
de forma urgente.
A AI, como se disse, apela à comunidade internacional
para que crie um mecanismo internacional independente de responsabilização, que
investigue e divulgue as violações e os abusos mais graves do direito internacional
cometidos” e pede para que as “provas sejam recolhidas e preservadas para
futuros processos penais e pedidos de indemnização”.
A
diretora regional adjunta da AI para o Médio Oriente e Norte de África, Grazia
Careccia, conta como é afetada a vida da população: “Ainda que um cessar-fogo
de facto tenha resultado num declínio das hostilidades, em comparação com os
anos anteriores, as partes envolvidas no conflito no Iémen continuam a realizar
ataques ilegais, a cometer assassinatos de forma impune e a restringir a
circulação e a distribuição de ajuda. O Iémen enfrenta uma das piores crises
humanitárias em curso no Mundo e a recente intensificação militar no país, na
sequência dos ataques aéreos dos EUA [Estados Unidos da América] e do Reino
Unido contra alvos Houthi, pode agravar a situação.”
A
AI refere que a documentação que tem na sua posse mostra como o “clima de
impunidade generalizada no Iémen tem encorajado os autores de violações graves
dos direitos humanos, como detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados,
tortura e julgamentos injustos contra defensores dos direitos humanos,
jornalistas ou qualquer pessoa considerada opositora ou crítica das diferentes
autoridades no terreno”. E realça que é fundamental pôr termo ao ciclo de
impunidade existente. “É crucial um mecanismo internacional independente de
responsabilização que abra caminho à responsabilização criminal e proporcione
uma reparação efetiva às vítimas, para pôr fim ao ciclo de impunidade. Ao
continuar a ignorar a responsabilização, a comunidade internacional não só está
a falhar com as vítimas no Iémen, mas também a alimentar um clima geral de
impunidade em que os crimes ao abrigo do direito internacional não verão
qualquer declínio no Iémen, mas também fora dele.”
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Os males da guerra são incalculáveis. É o furor
da guerra, em que todos ficam derrotados.
2024.04.05 – Louro de Carvalho
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