A
8 de abril, a Santa Sé publicou a Declaração “Dignitas infinita”, do Dicastério
para a Doutrina da Fé (DDF), sobre a dignidade humana. É óbvio que o documento,
em 66 números, aborda matérias pouco simpáticas para a mentalidade dominante,
nos tempos que correm, mas deveria ser lido na profundidade do que pretendem: a
dignidade da pessoa humana, tantas vezes
e por tantas formas, vilipendiada.
O
texto exigiu cinco anos de trabalho para incluir o magistério papal da última
década, como a guerra, a pobreza, a violência contra os migrantes e contra as
mulheres, o aborto, a maternidade sub-rogada, a eutanásia, a teoria do género e
a violência digital.
Três capítulos oferecem os
fundamentos para as afirmações contidas no quarto, dedicado a “algumas graves
violações da dignidade humana”, num documento que faz memória dos 75 anos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e que reafirma “a
imprescindibilidade do conceito de dignidade da pessoa humana no âmago da
antropologia cristã” (Introdução).
A principal novidade é a inclusão de
alguns temas principais do recente magistério pontifício que acompanham os
temas bioéticos.
No elenco “não exaustivo” que é
oferecido, entre as violações da dignidade humana, ao lado do aborto, da
eutanásia e da maternidade sub-rogada (barriga de aluguer), aparecem a guerra,
o drama da pobreza e dos migrantes, o tráfico de seres humanos. Assim, o texto
contribui para superar a dicotomia existente entre quem se concentra, de modo
exclusivo, na defesa da vida do nascituro ou do moribundo, esquecendo muitos
outros atentados contra a dignidade humana, e quem se concentra somente na
defesa dos pobres e dos migrantes, esquecendo que a vida deve ser defendida
desde a conceção até à sua natural conclusão.
Nas primeiras três partes da
declaração, são evocados os princípios fundamentais. “A Igreja, à luz da Revelação,
reafirma de modo absoluto” a “dignidade ontológica da pessoa humana, criada à
imagem e semelhança de Deus e redimida em Cristo Jesus” (n.º 1). Uma “dignidade
inalienável”, que corresponde “à natureza humana, para lá de qualquer mudança
cultural” (n.º 6), é “um dom recebido” e, portanto, está presente “por exemplo,
na criança ainda não nascida, na pessoa em estado de inconsciência, num idoso
em agonia” (n.º 9). “A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres
humanos, independentemente da sua condição de vida ou das suas qualidades” (17)
e fá-lo com base na revelação bíblica: mulheres e homens são criados à imagem de
Deus; Cristo, encarnando-Se, “confirmou a dignidade do corpo e da alma” (n.º 19)
e, ressuscitando, revelou-nos que “o aspeto mais sublime da dignidade do homem
consiste na sua vocação à comunhão com Deus” (n.º 20).
O documento evidencia o equívoco representado
pela posição dos que à expressão “dignidade humana” preferem “dignidade
pessoal”, por entenderem como pessoa somente “um ser capaz de raciocinar”. Por consequência,
sustentam que “não teria dignidade pessoal a criança ainda não-nascida, nem o
idoso não autossuficiente, nem o portador de deficiência mental”. A Igreja, ao
invés, insiste no facto de a dignidade de cada pessoa humana, porque é
intrínseca, permanecer “para lá de toda circunstância” (n.º 24), e afirma que “o
conceito de dignidade humana foi, às vezes, usado de modo abusivo para
justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, como se fosse devido
garantir a expressão e a realização de toda preferência individual ou desejo
subjetivo” (n.º 25).
A Declaração apresenta, depois, o
elenco de “algumas graves violações da dignidade humana”, ou seja, tudo o que é
contrário à vida, como toda espécie de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia
e o suicídio voluntário”; mas também tudo o que viola a integridade da pessoa
humana, como as mutilações, as torturas infligidas ao corpo ou à mente, as
constrições psicológicas. Enfim, “tudo o que ofende a dignidade humana, como as
condições de vida sub-humana, os arbitrários encarceramentos, as deportações, a
escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens, ou ainda as
ignominiosas condições de trabalho com as quais os trabalhadores são tratados
como simples instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis”. E
menciona a pena de morte, que “viola a dignidade inalienável de toda pessoa
humana, para lá de toda circunstância” (n.º 34).
Antes de tudo, incide sobre o “drama
da pobreza”, “uma das maiores injustiças do Mundo contemporâneo” (n.º 36). Depois,
vem a guerra, “tragédia que nega a dignidade humana” e que “é sempre uma
“derrota da Humanidade” (n.º 38), a ponto de ser “muito difícil sustentar os
critérios racionais maturados em outros séculos”, para falar de uma possível
“guerra justa” (n.º 39). Prossegue-se com o “sofrimento dos migrantes”, cuja “vida
é colocada em risco, porque não têm mais os meios para formar uma família, para
trabalhar ou se para nutrir” (n.º 40).
O documento detendo-se, depois, no
“tráfico de pessoas”, que está a assumir “dimensões trágicas” e é “uma
atividade indigna, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem
civilizadas”, convida “exploradores e clientes a um sério exame de consciência
(n.º 41). Do mesmo modo, insta à luta contra fenómenos como o comércio de
órgãos e de tecidos humanos, a exploração sexual de crianças, o trabalho
escravizado, incluindo a prostituição, o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo
e o crime internacional organizado (n.º 42). Menciona “o abuso sexual”, que
deixa “profundas cicatrizes no coração daquele que o sofre”: trata-se de “sofrimentos
que podem durar toda a vida e a que nenhum arrependimento pode remediar” (n.º
43). E o texto continua com a discriminação das mulheres e a violência contra
elas, citando, entre essas últimas, “a constrição ao aborto, que fere a mãe e o
filho, tão frequente para satisfazer o egoísmo dos homens” e “a prática da
poligamia” (n.º 45). E condena-se o “feminicídio” (n.º 46).
Firme é a condenação do aborto: “Entre
todos os delitos que o homem pode cometer contra a vida, o aborto procurado
apresenta caraterísticas que o tornam particularmente grave e deplorável”; e a “defesa
da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano” (n.º
47). Forte é a contrariedade à maternidade sub-rogada, “através da qual a
criança, imensamente digna, se torna mero objeto”, uma prática “que lesa
gravemente a dignidade da mulher e do filho, que se funda sobre a exploração de
uma situação de necessidade material da mãe”. Uma criança é sempre um dom e
nunca objeto de um contrato (n.º 48).
Na lista, são citados, ainda, a
eutanásia e o suicídio assistido, confusamente definidos por algumas leis como “morte
digna”, vincando que o “o sofrimento não faz perder ao doente aquela dignidade
que lhe é própria de modo intrínseco e inalienável” (n.º 51). Fala-se,
portanto, da importância dos cuidados paliativos e para evitar “toda obsessão
terapêutica ou intervenções desproporcionais”, reiterando que “a vida é um
direito, não a morte, a qual precisa de ser acolhida, não aplicada” (n.º 52).
Entre as graves violações da dignidade humana, encontra lugar também o
“descarte” das pessoas com deficiência (n.º 53).
Depois de reiterar que, em relação às
pessoas homossexuais, deve ser evitada “toda marca de injusta discriminação” e,
particularmente, “toda forma de agressão e violência”, denuncia-se, “como
contrário à dignidade humana” o facto de, em alguns lugares, pessoas serem
encarceradas, torturadas e até mesmo privadas da vida, “unicamente pela sua
orientação sexual (n.º 55).
E o documento critica a teoria de
género, “perigosíssima, por cancelar as diferenças na pretensão de tornar todos
iguais” (n.º 56). Assim, a Igreja recorda que “a vida humana, em todos os seus
componentes, físicos e espirituais, é um dom de Deus, que se deve acolher com
gratidão e colocar ao serviço do bem”. Querer dispor de si, como prescreve a
teoria de género, não significa outra coisa senão ceder à “antiquíssima tentação
do homem que se faz Deus” (n.º 57). A teoria do género quer “negar a maior das
diferenças possíveis entre os seres viventes: a diferença sexual” (n.º 58).
Portanto, “devem-se rejeitar todas as tentativas de obscurecer a referência à
insuprimível diferença sexual entre homem e mulher” (n.º 59). Negativo é também,
por isso, o juízo sobre a mudança de sexo, que “arrisca a ameaçar a dignidade
única que a pessoa recebeu desde o momento da conceção”. Isto não significa
excluir a possibilidade que uma pessoa portadora de anomalias dos genitais, já
evidentes desde o nascimento ou que se manifestem sucessivamente, possa
decidir-se por receber assistência médica, com o fim de resolver tais anomalias”
(n.º 60).
O elenco aponta a violência digital,
mencionando as “novas formas de violência que se difundem através das redes
sociais, por exemplo o cyberbullying”
e a “difusão da pornografia e de exploração das pessoas para fins sexuais ou
através dos jogos de azar” na rede (n.º 61).
E a Declaração termina, instando “a
colocar o respeito pela dignidade da pessoa humana, para lá de toda
circunstância, no centro dos esforços pelo bem comum e de todo ordenamento
jurídico” (n.º 64).
***
Na apresentação que o Prefeito do DDF,
cardeal Víctor Manuel Fernández, faz da Declaração, é revelado que, no Congresso de 15 de março de 2019, a
Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) decidiu encaminhar “a redação de um
texto, evidenciando a imprescindibilidade do conceito de dignidade da pessoa
humana no âmago da antropologia cristã e ilustrando o alcance e as implicações
benéficas a nível social, político e económico, tendo em conta os últimos desenvolvimentos
do tema no âmbito académico e as suas ambivalentes compreensões no contexto
hodierno”. Um primeiro projeto, elaborado com a ajuda de especialistas, durante
o ano de 2019, foi considerado insatisfatório pela Consulta reservada da CDF, a
8 de outubro desse ano. Assim, procedeu-se
à elaboração ex novo de outro delineamento do texto por parte
do Ofício Doutrinal, com base no contributo de diversos especialistas, que foi apresentado
e discutido na Consulta reservada de 4 de outubro de 2021. Em janeiro de 2022, foi
apresentado à Sessão Plenária da Congregação novo esboço, que os membros resolveram
abreviar e simplificar.
A 6 de
fevereiro de 2023, o novo texto emendado foi avaliado pela Consulta reservada,
que propôs ulteriores modificações. Tal versão foi submetida à avaliação da
Sessão Ordinária do Dicastério (Feria IV), de 3 de maio de 2023. Os membros
concordaram que o documento, com algumas modificações, poderia ser publicado. O
Santo Padre aprovou os Deliberata desta Feria IV na
audiência concedida ao Prefeito, a 13 de novembro de 2023, pedindo-lhe, ainda,
que evidenciasse no texto algumas temáticas estreitamente conexas com o tema da
dignidade, como o drama da pobreza, a situação dos migrantes, as violências
contra as mulheres, o tráfico de pessoas, a guerra e outras. Para honrar, o
melhor possível, tais indicações, a Sessão Doutrinal do Dicastério dedicou um
Congresso ao estudo da encíclica Fratelli
tutti, que dá uma original análise e aprofundamento da questão da dignidade
humana “para lá de toda circunstância”.
Com carta de
2 de fevereiro de 2024, em vista da Feria IV, de 28 de fevereiro,
foi enviada aos membros do DDF novo esboço do texto, notavelmente modificado,
com a seguinte observação: “Esta ulterior redação foi necessária para ir ao
encontro de um específico pedido do Santo Padre. Ele, explicitamente, solicitou
que se fixasse melhor a atenção sobre graves violações atuais da dignidade
humana, no sulco da Fratelli tutti. O
Ofício Doutrinal incumbiu-se de reduzir a parte inicial [...] e de elaborar
mais detalhadamente quanto indicado pelo Santo Padre.” A Sessão Ordinária do
Dicastério, de 28 de fevereiro, aprovou o texto da atual Declaração.
E, na audiência de 25 de março, o Santo Padre aprovou-o e ordenou a sua
publicação.
A elaboração
do texto, que durou cinco anos, permite entender que se trata de documento que,
pela seriedade e centralidade do tema no pensamento cristão, precisou de um
notável processo de amadurecimento para chegar à redação definitiva que mereceu
publicação.
A dignidade de
todos os seres humanos pode ser entendida como “infinita” (dignitas infinita),
como São João Paulo II afirmou num encontro com pessoas portadoras de certas
limitações ou deficiências, a fim de mostrar como a dignidade de cada ser
humano vai além de toda a aparência exterior ou de toda a caraterística da vida
concreta das pessoas. E o Papa Francisco, na Fratelli tutti, sublinha, com particular insistência, que esta
dignidade existe “para lá de toda a circunstância”, convidando todos a defendê-la
em todo o contexto cultural, em todo o momento da existência de uma pessoa,
independentemente de qualquer deficiência física, psicológica, social ou moral.
A este propósito, a Declaração esforça-se por mostrar que nos
encontramos diante de uma verdade universal, que precisamos de reconhecer como
condição fundamental, para que as nossas sociedades sejam verdadeiramente justas,
pacíficas, sadias e autenticamente humanas.
O elenco dos
temas escolhidos pela Declaração não é exaustivo. Os assuntos
tratados são, porém, os que permitem exprimir vários aspetos da dignidade
humana que hoje podem ser obscurecidos na consciência de muitos. Alguns são
facilmente compartilháveis por diversos setores das nossas sociedades, outros
menos. Seja como for, todos parecem necessários, porque, no conjunto, ajudam a
reconhecer a harmonia e a riqueza do pensamento, que brota do Evangelho, acerca
da dignidade.
A Declaração não
tem a pretensão de exaurir um argumento tão rico e decisivo, mas deseja
fornecer elementos de reflexão que ajudam a tê-lo presente no complexo momento
histórico em que vivemos. Assim, no meio de tantas preocupações e ansiedades,
não perderemos a estrada e não nos exporemos a mais lacerantes e profundos
sofrimentos.
***
Será pena, se
as pessoas, bloqueadas por preconceitos, recusarem a sua leitura, ainda que venham
a discordar de algumas matérias. Com efeito, se pode exigir da Igreja que omita
o que sustenta ser a verdade estribada no Evangelho. Antes se lhe deve pedir
que a testemunhe e a defenda.
2024.04.13 – Louro de Carvalho
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