É
fantástico, à distância de 50 anos, celebrar a Revolução dos Cravos, que encontrou
no povo a soberania do seu destino popular. O povo é soberano e, nas
democracias representativas, delega apenas o exercício do poder nos seus
representantes, eleitos através do sufrágio universal, mas sem abdicar do
direito a outros tipos de intervenção, como a crítica e a petição.
Entretanto,
a História regista, quer os tempos de democracia – imperfeita ou quase perfeita
–, quer os tempos de ditadura, tenha esta a roupagem que tiver. No caso
português, um grupo de militares usurpara, em 1926, a soberania do povo e acabou
por entregar o governo do país a um homem tido como génio, porque sanou as finanças
públicas, à custa de intensos e prolongados sacrifícios, tidos como
inevitáveis, mas suportados pelas famílias com menores recursos. Para suporte
do regime, eram postos de parte ou até eliminados aqueles que significassem
problema, fosse qual fosse o quadrante político de que proviessem, com realce
para os considerados comunistas, ainda que não o fossem.
Para
fazer vincar o agrado geral do regime, implantou-se um Estado
opressivo-repressivo travestido da aparente e propalada brandura de tratamento
policial, correspondente à proverbial brandura de costumes do nosso povo. A igualdade
de todos perante a lei só funcionava entre os mais pobres. Não entrámos, oficialmente,
na guerra civil do país vizinho, nem na II Guerra Mundial, mas vivemos em
economias de guerra e, mais tarde, suportámos a guerra colonial de 13 anos, em
nome da descontínua integridade territorial da nação e, curiosamente, em nome
da elevação civilizacional dos povos colonizados, remando contra a vontade do
escol promotor da autonomização dos mesmos, com o geral apoio do concerto das nações.
Em
tudo isso, o líder solitário e genial foi sucedido por um político que se dizia
“homem comum”, com o lema da evolução na continuidade. E, sem descaraterizar o
regime, antes reforçando, em certos aspetos, o seu rigor, foi avançando com minirreformas
de índole social e política.
Porém,
o cansaço da guerra colonial, a jugulação dos movimentos fautores de ideias democráticas
e dos adversários do pensamento único ou da mordaça censória, a crise
petrolífera (Quem não se lembra das enormes filas de automóveis parados à
espera de se abastecerem de combustível, bem como das tentativas de açambarcamento?)
e a denúncia de vários massacres, em tempo de guerra, criaram ambiente propício
ao derrube, pelas armas, do regime ditatorial, que dava pela designação de Estado
Novo, definindo o Estado Português como uma “República unitária e corporativa”
(maia tarde, a definição intercalava o adjetivo “democrática”), mas em que a
maior parte dos cidadãos era impedida de votar para a Assembleia Nacional (AN),
a que o regime dava pouca relevância, ou para o chefe de Estado, o qual, a
partir de 1958, era eleito por um colégio eleitoral.
Havia,
para os crimes políticos (ditos contra a segurança do Estado), tribunais
especiais, que funcionavam em plenário. Às vezes, tratava-se de só de delito de
opinião. A polícia política, através dos seus agentes e dos informadores, acolitada
pelas forças de segurança, vigiava os costumes e as ideias. As pessoas não
podiam exprimir ideias que fossem ou aparentassem algo contra o regime, nem
podiam tomar determinadas atitudes, sendo, muitas vezes, obrigadas a falar (confessar
crimes não cometidos, denunciar, apoiar as autoridades), a bater palmas a discursos
e a ir a manifestações. Pessoas desconhecidas abeiravam-se, por vezes, do
cidadão a provocar conversa contra o governo, para, a seguir, o denunciarem, se
fossem informadores da polícia política, ou para os deterem, se fossem seus agentes.
Sobre
a situação difícil que a maioria dos Portugueses vivia, vêm sendo publicados
vários dados e até são publicados indicadores muito diferenciadores entre a situação
vivida em 2022 e a vivida em 1974. Apenas destaco os seguintes: a maioria dos
habitantes das aldeias e das vilas vivia da enxada, uma forma de empobrecer alegremente;
a maioria das pessoas não passava do ensino primário (eu, filho de pais pobres,
prossegui estudos, graças ao sacrifício da família e às enormes ajudas de pessoas
generosas, algumas das quais nunca conheci); a maior parte das pessoas, nas
aldeias e nos subúrbios das cidades, morria sem assistência médica, por falta
de dinheiro, e muitas parturientes morriam de parto; estava-se longe de tudo,
pois a maior parte das aldeias não era servida por estradas, não tinham água
canalizada, nem eletricidade, nem saneamento básico; e eram abundantes as
barracas, nas cidades. Enfim, era a miséria no seu máximo.
Recordo
que, em fins de setembro de 1973 – onde estive, durante três meses, acolhido em
casa de família amiga, com outros colegas estudantes em Estrasburgo, passando
os dias a trabalhar na limpeza por conta de uma multinacional –, estando de
volta a casa, na véspera da viagem de regresso a Portugal, passei por um grupo
de argelinos. Um deles dirigiu-se-me, pedindo-me um franco. Com prontidão lho entreguei.
Todavia, para entabular um pouco de conversa, perguntou-me pela minha
nacionalidade. Como respondi que era português, devolveu-me o franco,
explicando: “Não quero o teu franco. Vives num país de miséria. Não há miséria
maior do que a guerra. E Caetano não acaba com a guerra. Fico a pedir a Alá que
livre o teu país da guerra.” Agradeci e vim embora, mas sem nunca deixar de
pensar no recado do argelino.
Como
a emigração era travada, por causa da guerra, tinha ido para França,
supostamente como estudante turista (pois, por motivo de estudos, havia-me sido
concedido o adiamento militar), levando comigo umas centenas de escudos, mas
declarando milhares e alegando alojamento em casa de familiares. O dinheiro
ganho constituiu boa ajuda para pagar os estudos.
***
Américo
Tomás fora reeleito (candidato único do regime), pelo colégio eleitoral, a 25
de julho de 1972; e, a 28 de outubro de 1973, a Ação Nacional Popular (ANP)
ganhou por esmagadora maioria as eleições para a AN.
Entretanto,
multiplicavam-se os rumores da força das ideias oposicionistas e, sobretudo,
dos militares. E ganhava corpo a informação de que mais de 200 oficiais estavam
contra a guerra, cuja solução era política, não militar. Pensavam alguns que a
substituição dos chefes de Estado e do governo resolvia o problema, mas havia
um escol politizado que pretendia suscitar a democracia. Quiçá a mostrar disponibilidade
para o golpe de Estado, António de Spínola fez publicar o livro “Portugal e o
Futuro”, a preconizar a federação de Estados de feição lusíada, que vinha a
destempo, face à pressão internacional e às exigências dos movimentos de
libertação. E, após a movimentação militar de Caldas da Rainha, a 16 de março
de 1974, barrada por tropas fiéis – com a prisão de alguns oficiais e a
dispersão de outros por diversas unidades do país –, Marcello Caetano era
aplaudido por multidões, mas sem a presença dos militares.
A
24 de abril, regressado de férias da Páscoa, bisbilhotei, junto de um oficial
do Exército, que haveria 200 capitães descontentes. E ele, retorquindo que
havia muitos mais, sugeriu-me atenção à noite seguinte. Obviamente, passei-a colado
ao transístor. Espantou-me ouvir, à meia-noite, na Rádio Renascença, “Grândola, Vila morena”. Mudava de estações e ouvia
o reiterado apelo do Posto de Comando das Forças Armadas, via Rádio Clube Português.
A
primeira reação foi de dúvida, mas logo emergiu a fiabilidade da mudança: a
revolução na rua tonou-se popular; e os cravos substituíram as balas.
Os
acontecimentos ditaram a saída das duas figuras de topo para a Madeira e o
subsequente exílio no Brasil, a assunção do poder pela Junta de Salvação
Nacional (JSN), a publicitação do Programa do Movimento das Forças Armadas
(MFA), a revogação da Constituição de 1933, a dissolução da Assembleia Nacional
e a destituição do Governo e do Conselho de Estado. A JSN e o MFA nomearam o
Presidente da República, que empossou o governo provisório, a que se seguiram
outros, com respaldo no Conselho de Estado (a partir de 11 de março de 1975,
Conselho da Revolução), com poder constitucional e legislativo. Surgidos os partidos,
houve eleições (em festa) – por voto universal, direto e secreto – para a
Assembleia Constituinte, que elaborou a Constituição, que passou por sete
revisões. Entretanto, foi proclamado o direito das colónias à autodeterminação
e à independência. A primeira a ficar independente foi a Guiné-Bissau e a
última foi Angola. Era o reino da liberdade no seu fulgor e da democracia política
que se ia aprendendo, exercitando-a, por vezes, não da melhor forma.
Até
25 de novembro de 1975, a liberdade – de festa ou de tensão – marcava a luta
pela democracia representativa, contraposta à democracia direta, de cariz
soviético ou terceiro-mundista, mas a evolução foi para a democracia
representativa, com eleições livres, por sufrágio universal. A partir de 25 de
abril de 1976, elege-se a Assembleia da República (AR, de que emana o governo),
o chefe de Estado, as autarquias e os parlamentos regionais. Porém, ficou
legitimada a ação de estruturas de base, como as comissões de moradores, e
reconhecido o direito de petição da parte de grupos de cidadãos, sem censuras.
No
ano letivo de 1974/1975, passei a lecionar numa escola privada. Em paralelo, trabalhava
na redação de um semanário e secretariava reuniões de agricultores, dinamizadas
pelo Instituto de Reorganização Agrária, em prol da sensibilização para o
associativismo, nomeadamente o cooperativismo. Participei em diversas
manifestações e sessões de esclarecimento (e promovi algumas); e o que, a
princípio, era consensual, em torno da democracia, passou a divergente, sobre o
ritmo da revolução, que obedecia a um programa, e sobre o tipo de democracia a
instaurar.
Os
incêndios florestais eram atribuídos aos comunistas. Houve problemas em escolas
primárias, devido à pretensa educação sexual e à queima de livros. Faculdades,
escolas técnicas e liceus eram geridos por comissões de gestão. E os maiores de
14 anos puderam autopropor-se a exames, por disciplina, do 2.º ano de então e
os maiores de 15 a exames do 5.º ano.
O
encerramento do República e a
ocupação da Rádio Renascença
espoletaram a reação nacional, com protestos organizados por militantes da
Igreja Católica, do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e
do Partido do Centro Democrático Social (CDS) (dito democrata-cristão). Tal
reação, replicada, sobretudo, no Norte, sensibilizou os militares moderados e
ao 5.º Governo Provisório sucedeu o de Pinheiro de Azevedo. Entretanto, a partir
de 4 de novembro de 1975, passei ao ensino público, em que me profissionalizei,
e fui aprendendo a perceber as pessoas e a apostar na inclusão. A polarização
cedeu à convivência. Para todos, o 25 de Abril veio para ficar. A liberdade,
nota essencial da democracia, é o bem que todos apreciam e não querem perder. E
a democracia política abre para a democracia económica, social e cultural.
Todos dizem gostar da democracia política, mas alguns hostilizam as outras
vertentes.
A
democracia conhece várias datas, mas o dia 25 de abril de 1974 é fundante,
primordial, inesquecível e digno de celebração popular e institucional. E a
liberdade desafia-nos a lutar por ela e a usá-la com responsabilidade, no
respeito pela liberdade dos outros, no exercício dos direitos e na satisfação
dos deveres. A dignidade humana o impõe.
Na
alvorada de 25 de abril de 1974, surgiu a democracia, que foi sendo trabalhada,
com avanços e recuos e cujo processo de institucionalização se concluiu em
dezembro de 1976.
O
país está muito melhor do que em 1974, como o demonstram os números percentuais
dos indicadores que vêm sendo publicados. É óbvio que podia estar melhor. A
pobreza devia ter sido erradicada, a economia devia estar mais forte, o sistema
de saúde devia prosseguir sem falhas, o sistema educativo não devia ter lacunas.
Todos têm direito a casa, trabalho, proteção e segurança. Porém, há sempre um “mas”.
Como todos sabemos, não há bela sem senão. Assim, é preciso continuar o projeto
coletivo de democracia política, económica, social e cultural, que nunca estará
acabado, enquanto houver pessoas, com necessidades, com ambições, numa sociedade
de contrastes e de contradições. Além disso, a liberdade e a democracia têm
inimigos (muitos valem-se das instituições democráticas, que minam e
descredibilizam).
Portanto,
impõe-se o zelo, a vigilância e o trabalho democráticos.
Entretanto,
haja festa. Apesar dos escolhos, o 25 de Abril é sempre a andar!
2024.04.24 – Louro de Carvalho
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