terça-feira, 6 de agosto de 2024

É preciso escutar Jesus Cristo, sempre e em toda a parte

 

A 6 de agosto, a Igreja celebrou a festa litúrgica da Transfiguração do Senhor no Monte Tabor (em Israel), na presença dos apóstolos Pedro, Tiago e João. Foi neste episódio que Jesus conversou com Moisés e Elias e se escutou, vinda de uma nuvem, a voz de Deus Pai que disse; “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” (Lc 9, Mc 6, Mt 10).

O Catecismo da Igreja Católica (CIC), no n.º 555, em referência a esta passagem evangélica, menciona que, “por um momento, Jesus mostra a sua glória divina, confirmando a confissão de fé petrina, e que, para ‘entrar na sua glória’ (Lc 24, 26), tem de passar pela cruz, em Jerusalém”.

“Moisés e Elias tinham visto a glória de Deus sobre a montanha; a Lei e os Profetas tinham anunciado os sofrimentos do Messias. A paixão de Jesus é da vontade do Pai”, assinala o CIC.

Assim, recorda os dizeres de Santo Tomás de Aquino, para quem, neste acontecimento, “apareceu toda a Trindade: o Pai na voz; o Filho na humanidade; o Espírito Santo na nuvem luminosa”.

Segundo o relato evangélico, a Transfiguração ocorreu num monte alto e afastado chamado Monte Tabor, que significa, em hebraico, “o abraço de Deus”.

São Jerónimo comentava este episódio da vida de Jesus, com muito ardor, e acrescentava, inclusive, palavras na boca de Deus Pai, para explicar a predileção de Jesus. “Este é meu Filho, não Moisés, nem Elias. Esses são meus servos; aquele é meu Filho. Este é meu Filho: da minha natureza, da minha substância, que em Mim permanece e é tudo o que Eu sou. Aqueles outros são certamente amados, mas este é meu amadíssimo. Por isso escutem-No”, disse o santo.

“Ele é o Senhor, estes outros, os servos. Moisés e Elias falam de Cristo. São seus servos. Não honrem os servos do mesmo modo que o Senhor: escutem somente o Filho de Deus”, acrescentou.

Quando a Transfiguração acabou, Pedro, que havia dito “Senhor, é bom estarmos aqui!”, desce sem compreender o que havia acontecido. Por isso, Santo Agostinho, num dos seus sermões, refere-se ao primeiro papa com palavras de reflexão, que se transformam, na verdade, numa interpelação a cada cristão no mundo de hoje: “Desce para sofrer na Terra, para servir na Terra, para ser desprezado, crucificado na Terra. A Vida desce, para fazer-Se matar; o Pão desce, para ter fome; o Caminho desce, para se cansar da caminhada; a Fonte desce, para ter sede; e tu recusas sofrer?”.

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Deixemos falar o apóstolo Paulo, segundo o qual a glória da Nova Aliança resplandece em Cristo.

“Se o ministério da morte, gravado em pedras com letras, foi cercado de tanta glória que os Israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés, por causa do seu fulgor, embora passageiro, quanto mais glorioso não será o ministério do Espírito? Pois, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais glorioso há de ser o ministério ao serviço da justificação. Realmente, em comparação com uma glória tão eminente, já não se pode chamar glória ao que então tinha sido glorioso. Pois, se o que era passageiro foi marcado de glória, muito mais glorioso será o que permanece. Tendo uma tal esperança, procedemos com muita segurança e confiança, não como Moisés, que cobria o rosto com o véu, para que os Israelitas não visem o fim do brilho passageiro. Mas o entendimento deles ficou embotado. Pois, até hoje, quando leem o Antigo Testamento, o véu continua descido. Não é levantado, porque desaparece somente na adesão a Cristo. Até hoje, quando os Israelitas leem os escritos de Moisés, um véu cobre o coração deles. Porém, sempre que o coração se converte ao Senhor, o véu é tirado, pois o Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, está a liberdade. Todos nós, porém, com o rosto descoberto, contemplamos e refletimos a glória do Senhor e assim somos transformados à sua imagem, pelo seu Espírito, com uma glória cada vez maior. 

Não desanimamos no exercício do ministério que recebemos da misericórdia divina. Rejeitamos todo o procedimento dissimulado e indigno, feito de astúcias, e não falsificamos a palavra de Deus. Ao invés, manifestamos a verdade e, assim, nos recomendamos a toda consciência humana, diante de Deus. E, se o nosso evangelho está velado, é só para os que perecem que está velado. O deus deste mundo cegou a inteligência desses incrédulos, para que não vejam a luz esplendorosa do evangelho da glória de Cristo que é a imagem de Deus. De facto, não nos pregamos a nós mesmos, pregamos a Jesus Cristo, o Senhor. Quanto a nós, apresentamo-nos como servos vossos, por causa de Jesus.  Com efeito, Deus, que disse: “Do meio das trevas brilhe a luz”, é o mesmo que fez brilhar a sua luz em nossos corações, para tornar claro o conhecimento da sua glória na face de Cristo.” – Da Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 3,7−4,6.

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Sobre a Transfiguração e, em especial, sobre a atitude de Pedro, pronuncia-se Anastásio Sinaíta, bispo, em torno da exclamação do apóstolo-chefe “É bom nós estarmos aqui.”

“Jesus manifestou aos discípulos este mistério no monte Tabor. Havia andado com eles, falando-lhes a respeito do seu reino e da segunda vinda na glória. Talvez não estivessem muito seguros do que lhes anunciara sobre o reino. Para que tivessem a firme convicção, no íntimo do coração, e, mediante as realidades presentes, cressem nas futuras, deu-lhes a ver maravilhosamente a divina manifestação do monte Tabor, imagem prefigurada do reino dos céus. Foi como se dissesse: ‘Para que a demora não faça nascer em vós a incredulidade, agora mesmo, digo-vos que alguns dos que aqui estão não provarão a morte, antes de verem o Filho do homem, vindo na glória do seu Pai’ (cf. Mt 16,28). Mostrando o Evangelista ser um só o poder de Cristo com a sua vontade, acrescentou: ‘E seis dias depois, tomou Jesus consigo Pedro, Tiago e João e levou-os a um monte alto e afastado. E transfigurou-se diante deles: o seu rosto brilhou como o sol, as vestes fizeram-se alvas como a neve. E eis que apareceram Moisés e Elias a falar com ele’ (cf. Mt 17,1-3). 

São estas as maravilhas da presente solenidade, é este o mistério de salvação para nós, que agora se cumpriu no monte: ao mesmo tempo, congregam-nos, agora, a morte e a festa de Cristo. Para penetrarmos junto aos escolhidos de entre os discípulos, inspirados por Deus, na profundeza destes inefáveis e sagrados mistérios, escutemos a voz divina que, do alto do cume da montanha, nos chama instantemente. Para lá, cumpre nos apressarmos, ouso dizer, como Jesus, que, agora nos céus, é nosso chefe e precursor, com quem refulgiremos aos olhos espirituais – renovadas, de certo modo, as feições da nossa alma – conformados à sua imagem; e à semelhança dele, incessantemente transfigurados, feitos consortes da natureza divina e prontos para as alturas.  

Para lá corramos cheios de ardor e de alegria; entremos na nuvem misteriosa, semelhantes a Moisés e a Elias ou a Tiago e a João. Sê tu como Pedro, arrebatado pela divina visão e aparição, transfigurado pela Transfiguração, erguido do Mundo, separado da Terra. Deixa a carne, abandona a criatura e converte-te ao Criador a quem Pedro, fora de si, diz: ‘Senhor, é bom para nós estarmos aqui’ (Mt 17,4). 

É verdadeiramente bom, para nós, estarmos aqui com Jesus e aqui permanecermos pelos séculos. Que pode haver de mais delicioso, de mais profundo, de melhor do que estar com Deus, conformar-se a Ele, encontrar-se na luz? Cada um de nós, tendo Deus em si, transfigurado em sua imagem divina, exclame jubiloso: ‘É bom, para nós, estarmos aqui’, onde tudo é luminoso, onde está o gáudio, a felicidade e a alegria. Onde, no coração, tudo é tranquilo, sereno e suave. Onde se vê Cristo, Deus. Onde Ele com o Pai tem a sua morada e, ao entrar, diz: ‘Hoje chegou a salvação para esta casa’ (Lc 19,9). Onde com Cristo estão os tesouros e se acumulam os bens eternos. Onde as primícias e figuras dos séculos futuros se desenham como em espelho.” Do Sermão no dia da Transfiguração do Senhor (Nn.6-10: Mélanges d’archéologie ET d’histoire 67[1955],241-244) (Séc. VII)

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Por fim, é de assentar no que devemos saber a Transfiguração do Senhor.

1. Transfiguração significa “mudança de forma”. A palavra “transfiguração” provém do prefixo latino “trans” (através) e do nome “figura” (forma, aspeto). Portanto, significa uma mudança de forma ou aparência. Foi o que aconteceu com Jesus no evento conhecido como a Transfiguração: a sua aparência mudou e tornou-se gloriosa.

2. O Evangelho de Lucas prediz a Transfiguração. No Evangelho de Lucas 9, 27, no final de um discurso aos doze apóstolos, Jesus misteriosamente acrescenta: “Em verdade vos digo: dos que aqui se acham, alguns há que não morrerão, até que vejam o Reino de Deus.”

Isso costuma ser tomado como uma profecia de que o fim do mundo ocorreria antes da morte da primeira geração de cristãos. No entanto, a expressão “reino de Deus” pode referir-se à “expressão externa do reino invisível de Deus”. O reino está encarnado no próprio Cristo e, portanto, poderia ser visto, se Cristo o manifestasse de uma maneira incomum, inclusive na sua própria vida terrena, como foi o evento da Transfiguração.

O papa emérito Bento XVI afirmou que Jesus “argumentou, de forma convincente, que a colocação dessa frase imediatamente antes da Transfiguração a relaciona claramente com esse evento”. “A alguns, isto é, aos três discípulos que acompanham Jesus à montanha, é prometido que presenciarão, pessoalmente, a vinda do Reino de Deus no poder”, especificou.

3. A Transfiguração foi testemunhada pelos três discípulos principais. A Transfiguração ocorreu na presença dos apóstolos João, Pedro e Tiago, os três discípulos principais. O facto de Jesus ter permitido apenas a três dos seus discípulos presenciarem o evento pode ter provocado a discussão que rapidamente ocorreu sobre qual dos discípulos era o maior (Lc 9,46).

4. Não se sabe exatamente onde ocorreu a Transfiguração. São Lucas declara que Jesus levou os três à “montanha para rezar”. Costuma-se pensar que esta montanha é o Monte Tabor, em Israel, mas nenhum dos evangelhos a identifica com exatidão.

5. A Transfiguração serviu para fortalecer a fé dos apóstolos. Segundo o CIC, n.º 568, “a Transfiguração de Cristo tem por finalidade fortificar a fé dos apóstolos em vista da Paixão: a subida à ‘elevada montanha’ prepara a subida ao Calvário. Cristo, Cabeça da Igreja, manifesta o que o seu Corpo contém e irradia, nos sacramentos, ‘a esperança da Glória.”

6. O Evangelho de Lucas é o que dá mais detalhes deste acontecimento. São Lucas menciona vários detalhes sobre a Transfiguração que outros evangelistas não fazem. Por exemplo, observa que isso aconteceu enquanto Jesus estava rezando; menciona que Pedro e os seus companheiros “tinham-se deixado vencer pelo sono; ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois personagens em sua companhia”. Também menciona que Pedro sugeriu a criação de tendas, enquanto Moisés e Elias se preparavam para partir.

7. A Aparição de Moisés e Elias representa a Lei e os Profetas. Moisés e Elias representam os dois principais componentes do Antigo Testamento: a Lei e os Profetas. Moisés foi o doador da Lei e Elias foi considerado o maior dos profetas.

8. A sugestão de São Pedro foi errónea. O facto de a sugestão de Pedro de fazer ali três tendas – uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias – ter ocorrido quando Moisés e Elias estavam a preparar-se para partir revela um desejo de prolongar a experiência da glória. Isso significa que Pedro está centrado no incorreto. Com efeito, Moisés é a antonomásia da Lei e Elias é a antonomásia da Profecia. Porém, Jesus é maior do que Moisés e do que a Lei (cumpre-a depois de a ter aperfeiçoado); e é maior do que Elias e do que a profecia, pois não fala em nome de Deus. Ele é a própria Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, o episódio da Transfiguração é apenas um lampejo do que será o Ressuscitado (Cristo e nós) e do que será a vida do mundo que há de vir. Mas, para tanto, é necessário passar pelo sofrimento, pelo despojamento. Por fim, a Transfiguração, em vez de nos alienar na mera contemplação do Transfigurado, implica a nossa própria transformação da mente, do coração, das atitudes e dos comportamentos em sintonia com o coração de Deus. E postula que escutemos o Cristo do Evangelho, bem como o grito do Cristo que brada no senso da comunidade e, sobretudo, no clamor dos pobres, dos doentes, dos oprimidos, dos descartados!

2024.08.06 – Louro de Carvalho

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