A 6 de agosto, a Igreja celebrou a festa litúrgica da
Transfiguração do Senhor no Monte Tabor (em Israel), na presença dos apóstolos
Pedro, Tiago e João. Foi neste episódio que Jesus conversou com Moisés e Elias
e se escutou, vinda de uma nuvem, a voz de Deus Pai que disse; “Este é o meu
Filho amado, no qual Eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” (Lc 9, Mc 6, Mt 10).
O Catecismo da Igreja Católica (CIC), no n.º 555, em
referência a esta passagem evangélica, menciona que, “por um momento, Jesus
mostra a sua glória divina, confirmando a confissão de fé petrina, e que, para
‘entrar na sua glória’ (Lc 24, 26),
tem de passar pela cruz, em Jerusalém”.
“Moisés e Elias tinham visto a glória de Deus sobre a
montanha; a Lei e os Profetas tinham anunciado os sofrimentos do Messias. A
paixão de Jesus é da vontade do Pai”, assinala o CIC.
Assim, recorda os dizeres de Santo Tomás de Aquino, para
quem, neste acontecimento, “apareceu toda a Trindade: o Pai na voz; o Filho na
humanidade; o Espírito Santo na nuvem luminosa”.
Segundo o relato evangélico, a Transfiguração ocorreu
num monte alto e afastado chamado Monte Tabor, que significa, em hebraico, “o
abraço de Deus”.
São Jerónimo comentava este episódio da vida de Jesus,
com muito ardor, e acrescentava, inclusive, palavras na boca de Deus Pai, para
explicar a predileção de Jesus. “Este é meu Filho, não Moisés, nem Elias. Esses
são meus servos; aquele é meu Filho. Este é meu Filho: da minha natureza, da
minha substância, que em Mim permanece e é tudo o que Eu sou. Aqueles outros
são certamente amados, mas este é meu amadíssimo. Por isso escutem-No”, disse o
santo.
“Ele é o Senhor, estes outros, os servos. Moisés e
Elias falam de Cristo. São seus servos. Não honrem os servos do mesmo modo que
o Senhor: escutem somente o Filho de Deus”, acrescentou.
Quando a Transfiguração acabou, Pedro, que havia dito
“Senhor, é bom estarmos aqui!”, desce sem compreender o que havia acontecido.
Por isso, Santo Agostinho, num dos seus sermões, refere-se ao primeiro papa com
palavras de reflexão, que se transformam, na verdade, numa interpelação a cada
cristão no mundo de hoje: “Desce para sofrer na Terra, para servir na Terra,
para ser desprezado, crucificado na Terra. A Vida desce, para fazer-Se matar; o
Pão desce, para ter fome; o Caminho desce, para se cansar da caminhada; a Fonte
desce, para ter sede; e tu recusas sofrer?”.
***
Deixemos falar o apóstolo Paulo, segundo o qual a glória da Nova Aliança
resplandece em Cristo.
“Se o ministério da morte,
gravado em pedras com letras, foi cercado de tanta glória que os Israelitas não
podiam fitar o rosto de Moisés, por causa do seu fulgor, embora passageiro, quanto
mais glorioso não será o ministério do Espírito? Pois, se o ministério da
condenação foi glorioso, muito mais glorioso há de ser o ministério ao serviço
da justificação. Realmente, em comparação com uma glória tão eminente, já não
se pode chamar glória ao que então tinha sido glorioso. Pois, se o que era
passageiro foi marcado de glória, muito mais glorioso será o que
permanece. Tendo uma tal esperança, procedemos com muita segurança e
confiança, não como Moisés, que cobria o rosto com o véu, para que os Israelitas
não visem o fim do brilho passageiro. Mas o entendimento deles ficou embotado.
Pois, até hoje, quando leem o Antigo Testamento, o véu continua descido. Não
é levantado, porque desaparece somente na adesão a Cristo. Até hoje, quando os
Israelitas leem os escritos de Moisés, um véu cobre o coração deles. Porém, sempre
que o coração se converte ao Senhor, o véu é tirado, pois o Senhor é o Espírito
e, onde está o Espírito do Senhor, está a liberdade. Todos nós, porém, com o
rosto descoberto, contemplamos e refletimos a glória do Senhor e assim somos
transformados à sua imagem, pelo seu Espírito, com uma glória cada vez
maior.
Não desanimamos no exercício do
ministério que recebemos da misericórdia divina. Rejeitamos todo o procedimento
dissimulado e indigno, feito de astúcias, e não falsificamos a palavra de Deus.
Ao invés, manifestamos a verdade e, assim, nos recomendamos a toda consciência
humana, diante de Deus. E, se o nosso evangelho está velado, é só para os
que perecem que está velado. O deus deste mundo cegou a inteligência
desses incrédulos, para que não vejam a luz esplendorosa do evangelho da glória
de Cristo que é a imagem de Deus. De facto, não nos pregamos a nós mesmos,
pregamos a Jesus Cristo, o Senhor. Quanto a nós, apresentamo-nos como servos
vossos, por causa de Jesus. Com efeito, Deus, que disse: “Do
meio das trevas brilhe a luz”, é o mesmo que fez brilhar a sua luz em nossos
corações, para tornar claro o conhecimento da sua glória na face de Cristo.” – Da
Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 3,7−4,6.
***
Sobre a Transfiguração e, em especial,
sobre a atitude de Pedro, pronuncia-se Anastásio Sinaíta, bispo, em torno da exclamação
do apóstolo-chefe “É
bom nós estarmos aqui.”
“Jesus manifestou aos discípulos
este mistério no monte Tabor. Havia andado com eles, falando-lhes a respeito do
seu reino e da segunda vinda na glória. Talvez não estivessem muito seguros do
que lhes anunciara sobre o reino. Para que tivessem a firme convicção, no
íntimo do coração, e, mediante as realidades presentes, cressem nas futuras,
deu-lhes a ver maravilhosamente a divina manifestação do monte Tabor,
imagem prefigurada do reino dos céus. Foi como se dissesse: ‘Para que a demora não faça
nascer em vós a incredulidade, agora mesmo, digo-vos que alguns dos que aqui
estão não provarão a morte, antes de verem o Filho do homem, vindo na glória do
seu Pai’ (cf. Mt 16,28). Mostrando o Evangelista ser um só o
poder de Cristo com a sua vontade, acrescentou: ‘E seis dias depois, tomou
Jesus consigo Pedro, Tiago e João e levou-os a um monte alto e afastado. E
transfigurou-se diante deles: o seu rosto brilhou como o sol, as vestes fizeram-se
alvas como a neve. E eis que apareceram Moisés e Elias a falar com ele’
(cf. Mt 17,1-3).
São estas as maravilhas da
presente solenidade, é este o mistério de salvação para nós, que agora se
cumpriu no monte: ao mesmo tempo, congregam-nos, agora, a morte e a festa de
Cristo. Para penetrarmos junto aos escolhidos de entre os discípulos,
inspirados por Deus, na profundeza destes inefáveis e sagrados mistérios,
escutemos a voz divina que, do alto do cume da montanha, nos chama
instantemente. Para lá, cumpre nos apressarmos, ouso dizer, como Jesus, que,
agora nos céus, é nosso chefe e precursor, com quem refulgiremos aos olhos
espirituais – renovadas, de certo modo, as feições da nossa alma – conformados
à sua imagem; e à semelhança dele, incessantemente transfigurados, feitos
consortes da natureza divina e prontos para as alturas.
Para lá corramos cheios de ardor
e de alegria; entremos na nuvem misteriosa, semelhantes a Moisés e a Elias ou a
Tiago e a João. Sê tu como Pedro, arrebatado pela divina visão e aparição,
transfigurado pela Transfiguração, erguido do Mundo, separado da Terra. Deixa a
carne, abandona a criatura e converte-te ao Criador a quem Pedro, fora de si,
diz: ‘Senhor,
é bom para nós estarmos aqui’
(Mt 17,4).
É verdadeiramente bom, para nós, estarmos
aqui com Jesus e aqui permanecermos pelos séculos. Que pode
haver de mais delicioso, de mais profundo, de melhor do que estar com Deus,
conformar-se a Ele, encontrar-se na luz? Cada um de nós, tendo Deus em si,
transfigurado em sua imagem divina, exclame jubiloso: ‘É bom, para nós, estarmos
aqui’, onde tudo é luminoso, onde está o gáudio, a felicidade e a
alegria. Onde, no coração, tudo é tranquilo, sereno e suave. Onde se vê Cristo,
Deus. Onde Ele com o Pai tem a sua morada e, ao entrar, diz: ‘Hoje chegou a salvação
para esta casa’ (Lc 19,9).
Onde com Cristo estão os tesouros e se acumulam os bens eternos. Onde as
primícias e figuras dos séculos futuros se desenham como em espelho.” Do Sermão
no dia da Transfiguração do Senhor (Nn.6-10: Mélanges d’archéologie ET d’histoire
67[1955],241-244) (Séc. VII)
***
Por fim, é de assentar no que devemos saber a
Transfiguração do Senhor.
1. Transfiguração significa “mudança
de forma”. A palavra “transfiguração” provém
do prefixo latino “trans” (através) e do nome “figura” (forma, aspeto).
Portanto, significa uma mudança de forma ou aparência. Foi o que aconteceu com
Jesus no evento conhecido como a Transfiguração: a sua aparência mudou e tornou-se
gloriosa.
2. O Evangelho de Lucas
prediz a Transfiguração. No
Evangelho de Lucas 9, 27, no final de um discurso aos doze apóstolos, Jesus
misteriosamente acrescenta: “Em verdade vos digo: dos que aqui se acham, alguns
há que não morrerão, até que vejam o Reino de Deus.”
Isso costuma ser tomado como uma profecia de que o fim
do mundo ocorreria antes da morte da primeira geração de cristãos. No entanto,
a expressão “reino de Deus” pode referir-se à “expressão externa do reino
invisível de Deus”. O reino está encarnado no próprio Cristo e, portanto,
poderia ser visto, se Cristo o manifestasse de uma maneira incomum, inclusive
na sua própria vida terrena, como foi o evento da Transfiguração.
O papa emérito Bento XVI afirmou que Jesus “argumentou,
de forma convincente, que a colocação dessa frase imediatamente antes da
Transfiguração a relaciona claramente com esse evento”. “A alguns, isto é, aos
três discípulos que acompanham Jesus à montanha, é prometido que presenciarão,
pessoalmente, a vinda do Reino de Deus no poder”, especificou.
3. A Transfiguração foi
testemunhada pelos três discípulos principais. A Transfiguração ocorreu na presença dos apóstolos João, Pedro e Tiago, os
três discípulos principais. O facto de Jesus ter permitido apenas a três dos
seus discípulos presenciarem o evento pode ter provocado a discussão que rapidamente
ocorreu sobre qual dos discípulos era o maior (Lc 9,46).
4. Não se sabe exatamente
onde ocorreu a Transfiguração. São Lucas
declara que Jesus levou os três à “montanha para rezar”. Costuma-se pensar que
esta montanha é o Monte Tabor, em Israel, mas nenhum dos evangelhos a
identifica com exatidão.
5. A Transfiguração serviu
para fortalecer a fé dos apóstolos. Segundo o CIC,
n.º 568, “a Transfiguração de Cristo tem por finalidade fortificar a fé dos
apóstolos em vista da Paixão: a subida à ‘elevada montanha’ prepara a subida ao
Calvário. Cristo, Cabeça da Igreja, manifesta o que o seu Corpo contém e
irradia, nos sacramentos, ‘a esperança da Glória.”
6. O Evangelho de Lucas é o
que dá mais detalhes deste acontecimento. São Lucas
menciona vários detalhes sobre a Transfiguração que outros evangelistas não
fazem. Por exemplo, observa que isso aconteceu enquanto Jesus estava rezando;
menciona que Pedro e os seus companheiros “tinham-se deixado vencer pelo sono;
ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois personagens em sua companhia”.
Também menciona que Pedro sugeriu a criação de tendas, enquanto Moisés e Elias
se preparavam para partir.
7. A Aparição de Moisés e
Elias representa a Lei e os Profetas. Moisés e
Elias representam os dois principais componentes do Antigo Testamento: a Lei e
os Profetas. Moisés foi o doador da Lei e Elias foi considerado o maior dos
profetas.
8. A sugestão de São Pedro
foi errónea. O facto de
a sugestão de Pedro de fazer ali três tendas – uma para Jesus, outra para
Moisés e outra para Elias – ter ocorrido quando Moisés e Elias estavam a
preparar-se para partir revela um desejo de prolongar a experiência da glória. Isso
significa que Pedro está centrado no incorreto. Com efeito, Moisés é a
antonomásia da Lei e Elias é a antonomásia da Profecia. Porém, Jesus é maior do
que Moisés e do que a Lei (cumpre-a depois de a ter aperfeiçoado); e é maior do
que Elias e do que a profecia, pois não fala em nome de Deus. Ele é a própria Palavra
de Deus. Ao mesmo tempo, o episódio da Transfiguração é apenas um lampejo do
que será o Ressuscitado (Cristo e nós) e do que será a vida do mundo que há de
vir. Mas, para tanto, é necessário passar pelo sofrimento, pelo despojamento. Por
fim, a Transfiguração, em vez de nos alienar na mera contemplação do Transfigurado,
implica a nossa própria transformação da mente, do coração, das atitudes e dos comportamentos
em sintonia com o coração de Deus. E postula que escutemos o Cristo do
Evangelho, bem como o grito do Cristo que brada no senso da comunidade e,
sobretudo, no clamor dos pobres, dos doentes, dos oprimidos, dos descartados!
2024.08.06 –
Louro de Carvalho
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