A liturgia do 19.º domingo do Tempo
Comum no Ano B, pela pena do autor humano do 1.º Livro dos Reis (1RS)
e pela do apóstolo São João, reitera a eterna preocupação de Deus em
oferecer-nos, gratuitamente, Vida abundante e verdadeira, dom concretizado em
cada passo da História da Salvação, atingindo o auge quando Jesus incarnou na
nossa História e nos ofereceu o pão de Deus.
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A primeira leitura (1Rs
19,4-8) mostra Deus ao lado de Elias, perseguido pela rainha Jezabel por causa
da sua fidelidade e testemunho. Ao oferecer ao profeta “pão cozido sobre pedras
quentes” e uma “bilha de água”, mostra a sua solicitude e cuidado, a sua
bondade e amor, nunca desmentidos. O alimento de Deus reconforta o profeta,
restaura-lhe as forças, fá-lo voltar, com entusiasmo e ardor renovado, ao
caminho e à missão.
Refugiado no deserto, Elias experiencia
dramaticamente a solidão e o desânimo. Temendo que a sua luta esteja condenada
ao fracasso, não vê modo de endireitar as coisas, pois a maldade vai, de novo,
triunfar sobre a verdade e a justiça. O profeta, sem forças e prestes a desistir,
pede a Deus a morte, pedido que reflete a sua desilusão, angústia e desespero. Embora
escolhido e chamado por Deus, continua a ser homem, pelo que o seu desencanto não
é anormal. A marca da fragilidade e da debilidade, típica do ser humano, sempre
se manifesta na experiência de vida.
Porém, o Senhor não abandona o profeta.
Acordado de um sono reparador, Elias encontra ao lado “um pão cozido sobre
pedras quentes e uma bilha de água” e entende que tais dons são sinal do amor e
da solicitude de Deus. Deus continua a apostar nele. O profeta pode, no
exercício da sua missão, ser incompreendido e perseguido pelos homens, mas tem Deus
do seu lado. Deus não lhe tira do caminho os problemas e as dificuldades, mas
fica ao seu lado, apoia-o, sustenta-o, dá-lhe o alimento de que necessita para
retomar o ânimo e concretizar a missão.
Robustecido pelo alimento de Deus,
Elias caminha, “quarenta dias e quarenta noites, até ao monte de Deus, o Horeb”.
“Quarenta dias e quarenta noites” aludem à estadia de Moisés na montanha, onde,
no encontro com Deus, recebeu as tábuas da Lei, bem como à caminhada do Povo,
de quarenta anos, pelo deserto, até chegar à Terra Prometida. Assim, a romagem
de Elias ao Horeb, monte da Aliança, é um regresso às fontes, às origens de
Israel como Povo de Deus. Perseguido, Elias revitaliza a fé e reencontra o
sentido da missão como profeta de Javé e defensor da Aliança que Deus ofereceu
ao Povo no Horeb/Sinai. No final desse retiro, voltará do monte da Aliança a
“arder de zelo” pelo Senhor e retomará, com renovado ânimo, a missão profética.
***
O Evangelho (Jo 6,41-51) apresenta Jesus como
o “pão” vivo que desceu do céu, para trazer Vida a todos os filhos e filhas de
Deus. Para que esse “pão” seja, para nós, fonte de Vida eterna, temos de “crer”
em Jesus. “Crer” é aderir a Jesus, abraçar o seu projeto, assumir o seu estilo
de vida, segui-Lo no “sim” a Deus e no amor aos irmãos.
Os líderes judaicos recebem mal a
autoapresentação de Jesus como “o pão da Vida”, descido do céu para nos oferecer
a Vida. Conhecem a sua origem humana e, sabendo que o pai é José e conhecendo a
sua mãe, Maria, e a sua família, na perspetiva deles, fica excluída a origem
divina. Por isso, não aceitam que Jesus Se arrogue a pretensão de trazer aos
homens a Vida de Deus. Tal resistência traduz-se na murmuração, forma pouco
frontal de manifestar a rebelião interior contra alguém ou contra algo. Lembra
a murmuração dos Hebreus na caminhada do deserto contra Deus e contra os seus planos
para o Povo.
Contudo, em vez de discutir, logo, a
questão da sua origem divina, Jesus denuncia o que está por detrás da atitude
negativa dos Judeus, face à proposta que lhes faz: não estão próximos de Deus, não
têm o coração aberto a Deus. É o problema dos Judeus: instalados nas suas
certezas e seguranças, acomodados a um sistema religioso ritualista, vazio, há
muito se afastaram de Deus; e, quando Deus vem ao seu encontro, para lhes
oferecer a Vida, não O reconhecem. Em Jesus, Deus oferece-lhes o pão da Vida
eterna; e eles não detetam a presença de Deus em Jesus. Se escutassem Deus,
aproximar-se-iam de Jesus e acolhê-Lo-iam, mas estão longe de Deus e já não O
conhecem; ao invés, Jesus viu pessoalmente o Pai e conhece-O.
Feita a denúncia e para dissipar
dúvidas, Jesus declara solenemente: “Eu sou o pão da Vida”. A expressão “Eu
sou” é a fórmula de revelação (corresponde ao nome de Deus – “Eu sou aquele que
sou” – como aparece em Ex 3,14) e manifesta a origem divina de Jesus e a
validade da sua oferta de Vida. O pão que Jesus oferece tem o selo de Deus.
Quem adere a Jesus e à proposta que Ele apresenta (“quem acredita”) encontra
uma Vida nova, plena e definitiva. O que é decisivo é o “acreditar”, isto é,
aderir a Jesus e aos seus valores. Aqui, Jesus retoma o tema do maná, tão caro
aos Judeus. Na caminhada pelo deserto, os Israelitas foram agraciados com um
pão, o maná, que não lhes garantia a Vida eterna. A geração que saiu do Egito e
se alimentou do maná nem entrou na Terra prometida: morreu no deserto. Porém, Jesus
oferece outro pão, o que veio do céu. A Vida que esse pão garante não é parcial,
finita, como a vida que o maná dava; é a Vida eterna. A expressão “vida eterna”
não indica só um tempo sem fim, mas indica, sobretudo, a Vida com qualidade
ilimitada, a Vida total, a Vida do homem plenamente realizado. Quem se dispuser
a receber esse pão ganhará a meta da verdadeira Terra prometida. Não morrerá
antes de lá chegar.
Por fim, Jesus identifica o pão
descido do céu e fonte de Vida eterna com a sua carne (“o pão que Eu hei de dar
é a minha carne, que Eu darei pela vida do mundo”). A “carne” designa, no
ambiente semita, em geral, e no Evangelho de João, em particular, a pessoa na
sua condição terrena e limitada, frágil e precária, que vive com a morte no
horizonte. Jesus tornou-Se carne, quando se vestiu da fragilidade e da
precariedade dos humanos e veio habitar com os homens (“a Palavra fez-Se carne
e veio habitar no meio de nós”). O Jesus incarnado é o pão que desceu do céu e
se fez pessoa humana, para nos mostrar, com palavras e gestos, com o seu amor
até ao extremo e entrega na cruz, como devemos viver. Jesus, o pão descido do
céu, tornou-se pessoa (carne) para nos dar Vida. É a resposta de Jesus à
murmuração dos Judeus que, sabendo as Suas origens humildes e dos seus pais, se
recusam a aceitar que Ele tenha vindo de Deus. Ora, Jesus veio de Deus, mas
assumiu a condição dos homens para lhes dizer, cara a cara, com palavras e
gestos humanos, como podem chegar à Vida eterna. Quem O escutar, quem se
identificar com Ele, quem O seguir, será alimentado pelo pão que veio do céu e
terá Vida em abundância.
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Parece-me oportuno deixar à consideração,
ainda que de forma condensada, a reflexão papal à recitação do Angelus, na Praça de São Pedro, em Roma
com os peregrinos.
O Evangelho fala-nos da reação dos Judeus
à afirmação de Jesus: “Desci do céu.” Escandalizados, murmuram entre si: “Não é
este Jesus, o filho de José? Não conhecemos o seu pai e sua a mãe? Como pode ele
então dizer: ‘Desci do céu’?” É de ter cuidado com o que dizem. Estão convictos
de que Jesus não pode vir do céu, porque é filho do carpinteiro e a mãe e
demais familiares são pessoas comuns. “Como pôde Deus manifestar-Se de forma
tão comum?”
Estão bloqueados pelo preconceito,
em relação às suas origens humildes, e pela presunção de não terem nada a
aprender com Ele. Os pré-conceitos e presunções impedem o diálogo sincero, a
aproximação entre irmãos. Os Judeus têm padrões rígidos, não havendo espaço em
seus corações para o que não cabe neles, para o que não catalogam nem arquivam
nas estantes empoeiradas dos seus títulos. Muitas vezes, os nossos títulos
estão fechados, empoeirados, como livros velhos.
Todavia, são pessoas que observam a
lei, dão esmolas, respeitam o jejum e os momentos de oração. Cristo realizou
vários milagres. Porém, tudo isso não os ajuda a reconhecer o Messias Nele, porque
realizam as práticas religiosas, não para ouvir o Senhor, mas para confirmarem nelas
o que pensam. Fechados à Palavra do Senhor, buscam a confirmação do seu
pensamento. Nem se preocupam em pedir uma explicação a Jesus: murmuram entre si
contra Ele, como se quisessem tranquilizar-se uns aos outros do que estão
convencidos. Ficam trancados numa fortaleza impenetrável. Por isso, não podem
acreditar. O
mesmo pode acontecer-nos, na vida e na oração: em vez de ouvirmos o que o
Senhor nos tem a dizer, buscamos Dele e dos outros a confirmação do que
pensamos, das nossas crenças, dos nossos julgamentos, que são pré-julgamentos.
Todavia, esta postura não nos ajuda a encontrar verdadeiramente Deus, nem a
abrir-nos ao dom da sua luz e graça, a crescer no bem, a fazer a sua vontade e
a superar bloqueios e dificuldades.
A
fé e a oração, quando são verdadeiras, abrem a mente e o coração, não os
fecham. Quando se encontra uma pessoa de mente fechada, em oração, essa fé e
essa oração não são verdadeiras.
Por
tudo, é conveniente questionarmo-nos: Na vida de fé, sou capaz de calar-me
dentro de mim e ouvir Deus? Estou disposto a acolher a sua voz além dos meus
padrões e a superar, com a sua ajuda, os meus medos?
Peçamos
a Maria nos ajude a ouvir com fé a voz do Senhor e a fazer, com coragem, a sua
vontade.
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A segunda leitura (Ef 4,30-5,2) mostra-nos as
consequências da adesão a Jesus, o “pão” da vida. Quem acredita em Jesus,
torna-se Homem Novo. Renuncia à vida velha do egoísmo e do pecado e passa a
viver no amor, a exemplo de Cristo.
No mundo antigo, os servos eram
marcados com um sinal ou selo, que indicava a pertença a um patrão. Paulo
serve-se desta imagem para falar dos batizados e da pertença a Deus: pelo
Batismo, cada cristão tornou-se morada do Espírito; e, ao acolher o Espírito,
recebeu o selo que o vincula à família de Deus. Quem está assim marcado tem de
viver de acordo com a sua condição e de expressar, no que faz, a Vida nova do
Espírito. A exortação a “não contristar” o Espírito deve entender-se como “não
dececioneis o Espírito que habita em vós, continuando a viver segundo o homem
velho”. Afinal, como deve viver o homem ou a mulher que se tornou morada do
Espírito?
Há valores, atitudes comportamentos que
o batizado deve eliminar, pois não são compatíveis com a Vida nova do Espírito.
O autor da Carta aos Efésios explicita o azedume, a irritação, a cólera, o
insulto, a maledicência e toda a espécie de maldade. São vícios atinentes à
relação com os irmãos: o batizado deve evitar qualquer ação que se oponha ao
amor e que traga sofrimento à vida do irmão. Estes vícios podem, ainda, ser
obstáculo à construção da comunidade: afastam os irmãos, criam barreiras,
destroem a unidade e impedem o entendimento, a relação, o diálogo, a
convivência. Em contraste, há atitudes e comportamentos a cultivar. Paulo menciona
a bondade, a compaixão e o perdão – que são a marca do Homem novo, do homem
animado pelo Espírito.
A Vida nova é, para os batizados,
uma exigência que resulta de serem “filhos bem-amados de Deus”, pelo que devem
imitar a perfeição, a bondade e o amor de Deus. Jesus Cristo, o Filho bem-amado
de Deus, que cumpriu o desígnio do Pai e ofereceu a vida por amor aos homens,
será, para todos os batizados, o exemplo do Homem novo.
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Por tudo
isto, é bom cantar: “Saboreai
e vede como o Senhor é bom.”
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Aleluia. Aleluia. Eu sou o pão vivo
que desceu do Céu, diz o Senhor; quem comer deste pão viverá eternamente.
2024.08.11 – Louro de Carvalho
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