Com o
regresso dos talibãs a Cabul, a economia do Afeganistão tem crescimento
zero, a população afunda na pobreza e uma crise humanitária agrava-se, sem
esperança de melhoria.
Em 2021, o
governo herdou uma administração estabelecida. Os preços baixaram, a moeda
aguentou-se, a corrupção deixou de ser fenómeno sem precedentes e a cobrança de
impostos melhorou. E, sobretudo, pelo regresso da segurança, criou-se um clima
propício à atividade empresarial. Após 40 anos de guerra, as mercadorias e algumas
pessoas podem deslocar-se, em segurança, de Cabul a Herat, a Oeste, e de
Mazar-e-Sharif, a Norte, a Jalalabad, a Leste. Contudo, o produto interno bruto
(PIB) sofreu violenta contração, de 26%, em 2021 e em 2022, segundo o Banco
Mundial, que antecipa que “o crescimento será nulo, nos próximos três anos, e o
rendimento ‘per capita’ diminuirá, devido ao crescimento demográfico”.
A ajuda ao desenvolvimento
cessou, porque nenhum país reconhece o governo, foi reduzida a ajuda humanitária,
um terço dos 45 milhões de afegãos sobrevivem a pão e chá, e o desemprego é
maciço. O Afeganistão, rico em minerais, tem grande potencial agrícola, mas
sofre da fuga de cérebros, da falta de infraestruturas, de financiamento e de
conhecimentos especializados.
“A guerra
está a encontrar parceiros estratégicos”, disse à agência AFP Sulaiman Bin Shah, ex-vice-ministro do Comércio e, atualmente,
consultor de investimentos, na manhã do dia em que, em agosto de 2021, os
talibãs entraram em Cabul. E Cabul encontrou alguns: “Com a Rússia, [com] a
China, [com] o Paquistão, o Irão [e com as repúblicas da Ásia Central], estamos
a cooperar muito”, afirmou, satisfeito, Ahmad Zahid, vice-ministro do Comércio
e da Indústria.
O projeto em
Mes Aynak, o segundo maior depósito de cobre do Mundo, parado desde 2008, acaba
de ser relançado por Cabul e por Pequim. Mas, para sair do subdesenvolvimento, “é
preciso reabrir os canais bancários”, bloqueados pelas sanções ocidentais e
pelo congelamento dos ativos do Banco Central, sustenta Bin Shah.
Há alguns empresários
felizes, sem escolta das suas produções, mas apenas metade das empresas afegãs dão
emprego a mulheres e as restrições impostas pelos Talibãs às atividades e à
educação das mulheres estão a pesar na economia. A transferência de dinheiro é problema
para muitos, que têm de passar por agentes de câmbios no Dubai, para levarem o
seu dinheiro para o Afeganistão. Quem vivia da música tem dificuldade de
sobrevivência, pois, com a criação do Emirado Islâmico, a música foi proibida. E,
em 2023, foram encerrados os salões de beleza.
Em contraste,
Abdul Wali Shaheen, que, durante quatro anos, quis “morrer como um mártir” nas
fileiras talibãs, após a vitória, trocou o lança-foguetes por um computador no
Departamento de Informação e Cultura de Ghazni. O salário de 10 mil afegãos é
suficiente para alimentar a família de cinco pessoas e dá ao Emirado o dízimo
dos seus rendimentos, nestes três anos. Menciona o regresso da segurança, “grande
sucesso”, e a expropriação de terrenos e de edifícios públicos ocupados ilegalmente.
Porém, admite que há lacunas, que espera “sejam colmatadas”.
***
Por seu
turno, a organização não-governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW) defendeu,
a 13 de agosto, que os talibãs criaram a mais grave crise de direitos das
mulheres do Mundo, desde que assumiram o poder no Afeganistão, a 15 de agosto
de 2021.
No relatório
sobre o terceiro aniversário da chegada do regime talibã ao poder, a HRW aponta
que o país sofre uma das piores crises humanitárias, com a ajuda gravemente
subfinanciada, com milhares de afegãos forçados a regressar ao Afeganistão,
vindos do Paquistão, e com milhares de outros que esperam emigrar para países
ocidentais ainda à espera.
O Afeganistão
é o único país onde as raparigas estão proibidas de estudar para lá do sexto
ano, lembra a ONG, acusando: “Os talibãs violaram, igualmente, o direito das
mulheres à liberdade de circulação, proibiram-nas de exercer muitas formas de
emprego, desmantelaram as proteções para as mulheres e raparigas vítimas de
violência baseada no género, criaram barreiras ao acesso aos cuidados de saúde
e impediram-nas de praticar desporto e até de visitar parques.”
Richard Bennett, relator especial da Organização das Nações
Unidas (ONU) para o Afeganistão, fala em “sistema institucionalizado de
discriminação, segregação, desrespeito pela dignidade humana e exclusão de
mulheres e raparigas”. E Fereshta Abbasi, investigadora da HRW no Afeganistão, considera:
“Sob o domínio abusivo dos talibãs, as mulheres e raparigas afegãs estão a
viver os seus piores pesadelos. Todos os governos devem apoiar esforços para
responsabilizar os líderes talibãs e todos os responsáveis por crimes graves no
país.”
Desde janeiro de 2024, os talibãs têm detido mulheres e
raparigas, em Cabul e noutras províncias, devido ao “mau ‘hijab’, ou seja, por
não respeitarem o código de vestuário prescrito.
Os
investigadores da ONU relataram que algumas das detidas foram mantidas
incomunicáveis, durante dias, e sujeitas a “violência física, [a] ameaças e [a]
intimidação”.
Além da
intensificação das restrições aos direitos das mulheres e das raparigas, os
talibãs, segundo a HRW, restringiram fortemente a liberdade de expressão e os
meios de comunicação social e detiveram e torturaram manifestantes, críticos e
jornalistas.
O corte na
ajuda ao desenvolvimento contribuiu para criar a crise humanitária no
Afeganistão. E Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU
informou que mais de metade da população – 23 milhões de pessoas – enfrenta
insegurança alimentar, contando-se as mulheres e as raparigas entre as pessoas
mais gravemente afetadas.
O plano de
resposta humanitária da ONU para 2024 está subfinanciado: em agosto, os
países doadores tinham contribuído apenas com 12% dos fundos necessários. A
perda de assistência externa prejudicou gravemente o sistema de saúde do
Afeganistão e exacerbou a subnutrição e as doenças resultantes de cuidados
médicos inadequados.
As restrições impostas pelos talibãs às mulheres e às
raparigas impediram o acesso aos cuidados de saúde, pondo em risco o seu
direito à saúde. “As proibições de educação impostas pelos talibãs
garantem uma futura escassez de profissionais de saúde do sexo feminino”, denuncia
a HRW, que defende que os países doadores têm de encontrar formas para atenuar
a atual crise humanitária, sem reforçar as políticas repressivas dos talibãs
contra as mulheres e contra as raparigas.
Mais de 665 mil afegãos chegaram ao Afeganistão vindos do
Paquistão, desde setembro de 2023, depois de terem sido forçados a sair durante
a repressão do governo paquistanês contra imigrantes e refugiados
estrangeiros. Muitos viviam no Paquistão, há décadas. E estes números
vieram juntar-se aos milhões de deslocados internamente no Afeganistão, que vêm
sobrecarregando o apoio humanitário existente. E milhares de afegãos que
fugiram do país, após a tomada do poder pelos talibãs, “vivem num limbo no
Irão, na Turquia, nos Emirados Árabes Unidos e noutros países”, já que os
processos de reinstalação nos estados que se comprometeram a acolher afegãos, têm
sido “lentos e inadequados às necessidades dos afegãos em risco”.
“Os governos que se relacionam com os talibãs devem,
sistematicamente, recordar-lhes que os abusos que cometem contra as mulheres e
as raparigas e contra todos os afegãos violam as obrigações do Afeganistão nos
termos do Direito internacional. Os doadores devem prestar assistência com o
objetivo de chegar aos mais necessitados e de encontrar soluções duradouras
para a crise humanitária do Afeganistão”, sustenta a HRW.
***
Kimia Yousofi não era favorita a ganhar nenhuma medalha, nem
sequer a chegar à final dos 100 metros, modalidade onde competiu nos Jogos
Olímpicos de Paris. Mas todos os olhos estavam nela. De lenço na cabeça,
camisola de manga comprida e calças, não levava só mais roupa do que as outras
atletas, mas transportava pesado fardo. E, quando passou a meta, dois segundos
depois da vencedora, todos entenderam: nas costas do dorsal, que mostrou para
as câmaras, escrevera “Educação”, “Desporto”, “Os nossos direitos”. Era por
esses direitos que acabara de correr.
As palavras
estavam escritas a preto, verde e vermelho, as cores da bandeira do
Afeganistão, país cujo governo não a reconhece como sua representante. “Apenas
três atletas estão a representar o Afeganistão”, disse Atal Mashwani, porta-voz
do gabinete de desporto do governo talibã, referindo-se aos competidores
masculinos, pois, no Afeganistão, os desportos femininos foram interrompidos. “Quando
o desporto feminino não é praticado, como é que elas podem entrar para a
seleção nacional?”, insistiu Mashwani.
Desde que
regressaram ao poder, os talibãs impuseram fortes restrições que impedem as
mulheres de praticar desporto e de frequentar as escolas secundárias e a
universidade. Os Jogos de Paris são as primeiras olimpíadas de verão, desde que
o grupo reassumiu o governo, e a decisão do Comité Olímpico Internacional (COI)
foi diferente da tomada para os Jogos de Sydney, em 2000, no primeiro período
de governo talibã, entre 1996 e 2001, em que as mulheres também foram proibidas
de praticar desporto. Então, o COI proibiu o Afeganistão de participar nos
jogos. Desta vez, aprovou a equipa afegã, num sistema que pretende garantir que
todas as 206 nações estejam representadas, mesmo quando os atletas se classificam
de outra forma. Não consultou as autoridades Talibã sobre a equipa, que foi
selecionada pelo Comité Olímpico do Afeganistão, que opera fora do país.
Kimia
Yousofi, de 28 anos, fugiu para o Irão, quando os Talibã voltaram ao poder, e
conseguiu um visto para si e para a família na Austrália, com o apoio do Comité
Olímpico Australiano. De início, queria ficar em Cabul, mas percebeu que isso
significaria desistir dos seus direitos e dos direitos das afegãs. “Eu só quero
representar o povo afegão com esta bandeira, a nossa cultura. As nossas meninas
no Afeganistão, as nossas mulheres, elas querem direitos básicos, educação e
desporto”, disse Yousofi, após a corrida, precisando que, no seu país, as
mulheres não são consideradas seres humanos. “Ser capaz de decidir as suas
vidas, isso foi-lhes tirado nos últimos dois anos. Estamos a lutar por isso”, acrescentou,
dirigindo-se às afegãs: “Não desistam, não deixem que outros decidam por vocês.
Procurem oportunidades e usem essas oportunidades.”
Também as irmãs ciclistas, Fariba e Yulduz Hashimi, que
compunham a equipa do Afeganistão em Paris, estavam em Cabul, quando a capital
foi tomada pelos talibãs, e escaparam por pouco, com o apoio da ex-ciclista e
campeã mundial italiana, Alessandra Cappellotto, que as ajudou a embarcar num
avião rumo ao Norte de Itália e que esteve em Paris a aplaudi-las.
Como contaram
ao canal France 24, não imaginaram
tornar-se ciclistas profissionais, mesmo antes de os talibãs regressarem ao
poder, e muito menos serem as primeiras ciclistas afegãs de sempre (entre
mulheres e homens) a representar o país nos Jogos Olímpicos. Tendo crescido na
conservadora província de Faryab, na fronteira com o Turquemenistão, tiveram de
manter a sua paixão em segredo, durante muito tempo, até das próprias famílias.
Embora a família tenha acabado por tornar-se uma fonte de
apoio para as duas irmãs, Fariba partilha que a visão de duas jovens a praticar
ciclismo nas ruas da sua cidade natal foi recebida, com indignação, pelo resto
da comunidade.
O objetivo
das irmãs Hashimi, de 19 e 22 anos, é mudar esta mentalidade. Fazem isto pelo seu
povo, para mostrarem que o ciclismo é algo bom que todos podem fazer, não
apenas os homens, mas também as mulheres. Por isso, quiseram competir pelo seu
país, e não sob a bandeira dos refugiados, nem sob a bandeira branca do
autoproclamado Emirado Islâmico do Afeganistão, dos talibãs, mas sob a anterior
bandeira tricolor preta, vermelha e verde, a mesma que Kimia Yousofi recordou
no seu cartaz improvisado.
***
A discriminação gera pobreza em todas as formas. Honra a quem
luta pela igualdade!
2024.07.13
– Louro de Carvalho
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