terça-feira, 13 de agosto de 2024

Afeganistão: a pobreza e a maior crise de direitos das mulheres no Mundo

 

Com o regresso dos talibãs a Cabul, a economia do Afeganistão tem crescimento zero, a população afunda na pobreza e uma crise humanitária agrava-se, sem esperança de melhoria.

Em 2021, o governo herdou uma administração estabelecida. Os preços baixaram, a moeda aguentou-se, a corrupção deixou de ser fenómeno sem precedentes e a cobrança de impostos melhorou. E, sobretudo, pelo regresso da segurança, criou-se um clima propício à atividade empresarial. Após 40 anos de guerra, as mercadorias e algumas pessoas podem deslocar-se, em segurança, de Cabul a Herat, a Oeste, e de Mazar-e-Sharif, a Norte, a Jalalabad, a Leste. Contudo, o produto interno bruto (PIB) sofreu violenta contração, de 26%, em 2021 e em 2022, segundo o Banco Mundial, que antecipa que “o crescimento será nulo, nos próximos três anos, e o rendimento ‘per capita’ diminuirá, devido ao crescimento demográfico”.

A ajuda ao desenvolvimento cessou, porque nenhum país reconhece o governo, foi reduzida a ajuda humanitária, um terço dos 45 milhões de afegãos sobrevivem a pão e chá, e o desemprego é maciço. O Afeganistão, rico em minerais, tem grande potencial agrícola, mas sofre da fuga de cérebros, da falta de infraestruturas, de financiamento e de conhecimentos especializados.

“A guerra está a encontrar parceiros estratégicos”, disse à agência AFP Sulaiman Bin Shah, ex-vice-ministro do Comércio e, atualmente, consultor de investimentos, na manhã do dia em que, em agosto de 2021, os talibãs entraram em Cabul. E Cabul encontrou alguns: “Com a Rússia, [com] a China, [com] o Paquistão, o Irão [e com as repúblicas da Ásia Central], estamos a cooperar muito”, afirmou, satisfeito, Ahmad Zahid, vice-ministro do Comércio e da Indústria.

O projeto em Mes Aynak, o segundo maior depósito de cobre do Mundo, parado desde 2008, acaba de ser relançado por Cabul e por Pequim. Mas, para sair do subdesenvolvimento, “é preciso reabrir os canais bancários”, bloqueados pelas sanções ocidentais e pelo congelamento dos ativos do Banco Central, sustenta Bin Shah.

Há alguns empresários felizes, sem escolta das suas produções, mas apenas metade das empresas afegãs dão emprego a mulheres e as restrições impostas pelos Talibãs às atividades e à educação das mulheres estão a pesar na economia. A transferência de dinheiro é problema para muitos, que têm de passar por agentes de câmbios no Dubai, para levarem o seu dinheiro para o Afeganistão. Quem vivia da música tem dificuldade de sobrevivência, pois, com a criação do Emirado Islâmico, a música foi proibida. E, em 2023, foram encerrados os salões de beleza.

Em contraste, Abdul Wali Shaheen, que, durante quatro anos, quis “morrer como um mártir” nas fileiras talibãs, após a vitória, trocou o lança-foguetes por um computador no Departamento de Informação e Cultura de Ghazni. O salário de 10 mil afegãos é suficiente para alimentar a família de cinco pessoas e dá ao Emirado o dízimo dos seus rendimentos, nestes três anos. Menciona o regresso da segurança, “grande sucesso”, e a expropriação de terrenos e de edifícios públicos ocupados ilegalmente. Porém, admite que há lacunas, que espera “sejam colmatadas”.

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Por seu turno, a organização não-governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW) defendeu, a 13 de agosto, que os talibãs criaram a mais grave crise de direitos das mulheres do Mundo, desde que assumiram o poder no Afeganistão, a 15 de agosto de 2021.

No relatório sobre o terceiro aniversário da chegada do regime talibã ao poder, a HRW aponta que o país sofre uma das piores crises humanitárias, com a ajuda gravemente subfinanciada, com milhares de afegãos forçados a regressar ao Afeganistão, vindos do Paquistão, e com milhares de outros que esperam emigrar para países ocidentais ainda à espera.

O Afeganistão é o único país onde as raparigas estão proibidas de estudar para lá do sexto ano, lembra a ONG, acusando: “Os talibãs violaram, igualmente, o direito das mulheres à liberdade de circulação, proibiram-nas de exercer muitas formas de emprego, desmantelaram as proteções para as mulheres e raparigas vítimas de violência baseada no género, criaram barreiras ao acesso aos cuidados de saúde e impediram-nas de praticar desporto e até de visitar parques.”

Richard Bennett, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Afeganistão, fala em “sistema institucionalizado de discriminação, segregação, desrespeito pela dignidade humana e exclusão de mulheres e raparigas”. E Fereshta Abbasi, investigadora da HRW no Afeganistão, considera: “Sob o domínio abusivo dos talibãs, as mulheres e raparigas afegãs estão a viver os seus piores pesadelos. Todos os governos devem apoiar esforços para responsabilizar os líderes talibãs e todos os responsáveis por crimes graves no país.”

Desde janeiro de 2024, os talibãs têm detido mulheres e raparigas, em Cabul e noutras províncias, devido ao “mau ‘hijab’, ou seja, por não respeitarem o código de vestuário prescrito. 

Os investigadores da ONU relataram que algumas das detidas foram mantidas incomunicáveis, durante dias, e sujeitas a “violência física, [a] ameaças e [a] intimidação”. 

Além da intensificação das restrições aos direitos das mulheres e das raparigas, os talibãs, segundo a HRW, restringiram fortemente a liberdade de expressão e os meios de comunicação social e detiveram e torturaram manifestantes, críticos e jornalistas.

O corte na ajuda ao desenvolvimento contribuiu para criar a crise humanitária no Afeganistão. E Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU informou que mais de metade da população – 23 milhões de pessoas – enfrenta insegurança alimentar, contando-se as mulheres e as raparigas entre as pessoas mais gravemente afetadas. 

O plano de resposta humanitária da ONU para 2024 está subfinanciado: em agosto, os países doadores tinham contribuído apenas com 12% dos fundos necessários. A perda de assistência externa prejudicou gravemente o sistema de saúde do Afeganistão e exacerbou a subnutrição e as doenças resultantes de cuidados médicos inadequados. 

As restrições impostas pelos talibãs às mulheres e às raparigas impediram o acesso aos cuidados de saúde, pondo em risco o seu direito à saúde. “As proibições de educação impostas pelos talibãs garantem uma futura escassez de profissionais de saúde do sexo feminino”, denuncia a HRW, que defende que os países doadores têm de encontrar formas para atenuar a atual crise humanitária, sem reforçar as políticas repressivas dos talibãs contra as mulheres e contra as raparigas.

Mais de 665 mil afegãos chegaram ao Afeganistão vindos do Paquistão, desde setembro de 2023, depois de terem sido forçados a sair durante a repressão do governo paquistanês contra imigrantes e refugiados estrangeiros. Muitos viviam no Paquistão, há décadas. E estes números vieram juntar-se aos milhões de deslocados internamente no Afeganistão, que vêm sobrecarregando o apoio humanitário existente. E milhares de afegãos que fugiram do país, após a tomada do poder pelos talibãs, “vivem num limbo no Irão, na Turquia, nos Emirados Árabes Unidos e noutros países”, já que os processos de reinstalação nos estados que se comprometeram a acolher afegãos, têm sido “lentos e inadequados às necessidades dos afegãos em risco”.

“Os governos que se relacionam com os talibãs devem, sistematicamente, recordar-lhes que os abusos que cometem contra as mulheres e as raparigas e contra todos os afegãos violam as obrigações do Afeganistão nos termos do Direito internacional. Os doadores devem prestar assistência com o objetivo de chegar aos mais necessitados e de encontrar soluções duradouras para a crise humanitária do Afeganistão”, sustenta a HRW.

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Kimia Yousofi não era favorita a ganhar nenhuma medalha, nem sequer a chegar à final dos 100 metros, modalidade onde competiu nos Jogos Olímpicos de Paris. Mas todos os olhos estavam nela. De lenço na cabeça, camisola de manga comprida e calças, não levava só mais roupa do que as outras atletas, mas transportava pesado fardo. E, quando passou a meta, dois segundos depois da vencedora, todos entenderam: nas costas do dorsal, que mostrou para as câmaras, escrevera “Educação”, “Desporto”, “Os nossos direitos”. Era por esses direitos que acabara de correr.

As palavras estavam escritas a preto, verde e vermelho, as cores da bandeira do Afeganistão, país cujo governo não a reconhece como sua representante. “Apenas três atletas estão a representar o Afeganistão”, disse Atal Mashwani, porta-voz do gabinete de desporto do governo talibã, referindo-se aos competidores masculinos, pois, no Afeganistão, os desportos femininos foram interrompidos. “Quando o desporto feminino não é praticado, como é que elas podem entrar para a seleção nacional?”, insistiu Mashwani.

Desde que regressaram ao poder, os talibãs impuseram fortes restrições que impedem as mulheres de praticar desporto e de frequentar as escolas secundárias e a universidade. Os Jogos de Paris são as primeiras olimpíadas de verão, desde que o grupo reassumiu o governo, e a decisão do Comité Olímpico Internacional (COI) foi diferente da tomada para os Jogos de Sydney, em 2000, no primeiro período de governo talibã, entre 1996 e 2001, em que as mulheres também foram proibidas de praticar desporto. Então, o COI proibiu o Afeganistão de participar nos jogos. Desta vez, aprovou a equipa afegã, num sistema que pretende garantir que todas as 206 nações estejam representadas, mesmo quando os atletas se classificam de outra forma. Não consultou as autoridades Talibã sobre a equipa, que foi selecionada pelo Comité Olímpico do Afeganistão, que opera fora do país.

Kimia Yousofi, de 28 anos, fugiu para o Irão, quando os Talibã voltaram ao poder, e conseguiu um visto para si e para a família na Austrália, com o apoio do Comité Olímpico Australiano. De início, queria ficar em Cabul, mas percebeu que isso significaria desistir dos seus direitos e dos direitos das afegãs. “Eu só quero representar o povo afegão com esta bandeira, a nossa cultura. As nossas meninas no Afeganistão, as nossas mulheres, elas querem direitos básicos, educação e desporto”, disse Yousofi, após a corrida, precisando que, no seu país, as mulheres não são consideradas seres humanos. “Ser capaz de decidir as suas vidas, isso foi-lhes tirado nos últimos dois anos. Estamos a lutar por isso”, acrescentou, dirigindo-se às afegãs: “Não desistam, não deixem que outros decidam por vocês. Procurem oportunidades e usem essas oportunidades.”

Também as irmãs ciclistas, Fariba e Yulduz Hashimi, que compunham a equipa do Afeganistão em Paris, estavam em Cabul, quando a capital foi tomada pelos talibãs, e escaparam por pouco, com o apoio da ex-ciclista e campeã mundial italiana, Alessandra Cappellotto, que as ajudou a embarcar num avião rumo ao Norte de Itália e que esteve em Paris a aplaudi-las.

Como contaram ao canal France 24, não imaginaram tornar-se ciclistas profissionais, mesmo antes de os talibãs regressarem ao poder, e muito menos serem as primeiras ciclistas afegãs de sempre (entre mulheres e homens) a representar o país nos Jogos Olímpicos. Tendo crescido na conservadora província de Faryab, na fronteira com o Turquemenistão, tiveram de manter a sua paixão em segredo, durante muito tempo, até das próprias famílias.

Embora a família tenha acabado por tornar-se uma fonte de apoio para as duas irmãs, Fariba partilha que a visão de duas jovens a praticar ciclismo nas ruas da sua cidade natal foi recebida, com indignação, pelo resto da comunidade.

O objetivo das irmãs Hashimi, de 19 e 22 anos, é mudar esta mentalidade. Fazem isto pelo seu povo, para mostrarem que o ciclismo é algo bom que todos podem fazer, não apenas os homens, mas também as mulheres. Por isso, quiseram competir pelo seu país, e não sob a bandeira dos refugiados, nem sob a bandeira branca do autoproclamado Emirado Islâmico do Afeganistão, dos talibãs, mas sob a anterior bandeira tricolor preta, vermelha e verde, a mesma que Kimia Yousofi recordou no seu cartaz improvisado.

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A discriminação gera pobreza em todas as formas. Honra a quem luta pela igualdade!

2024.07.13 – Louro de Carvalho

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