A liturgia do 21.º domingo do Tempo
Comum no Ano B confronta-nos com a necessidade da opção por valores estéreis e
fugazes ou por valores eternos. Deus aponta-nos o rumo, mas a decisão é nossa.
Logo na primeira leitura (Js 24,1-2a.15-17.18b), Josué
convida as tribos de Israel reunidas em Siquém a escolherem entre “servir o
Senhor” e servir outros deuses, mas adiantou-se, dizendo que ele e a família
optaram por Deus, porque o Povo viu como Deus agiu, ao longo da História, e só
Javé lhe pode proporcionar a vida, a liberdade e a paz.
O Livro de Josué reflete sobre a História do Povo de Deus no período
que vai desde a entrada em Canaã até à morte de Josué (meados do século XII
a.C.). Descreve, sobretudo, a conquista da Terra Prometida e a distribuição do
território pelas tribos. E um apêndice final, redigido durante o Exílio na
Babilónia, apresenta outro material, nomeadamente, a despedida e a morte de
Josué, bem como a notícia de uma reunião geral de tribos em Siquém, antes da
morte de Josué.
A preocupação dos autores da escola
deuteronomista, que compuseram o livro é mais teológica do que histórica. Por
exemplo, a conquista da Terra é apresentada como campanha fulgurante e fácil em
que as doze tribos, a uma só voz, sob a liderança de Josué, se apoderaram de
toda a Terra. Porém, historicamente as coisas não aconteceram assim. O Livro dos Juízes, mais realista, fala de
conquista lenta, difícil e incompleta, que não foi obra de um povo unido à
volta de chefe único, mas de tribos que fizeram a guerra isoladamente. Os
autores do livro estão interessados em afirmar o poder de Javé, posto ao
serviço do seu Povo. Foi Deus – e não a capacidade militar das tribos – que
ofereceu a Israel a Terra Prometida. E Israel deve responder a esse dom
mantendo-se fiel à Aliança e aos mandamentos.
O trecho em apreço situa-nos no
final da vida de Josué. Sentindo aproximar-se a morte, Josué teria reunido em
Siquém os líderes das tribos e ter-lhes-ia proposto a cerimónia de renovação da
Aliança com Javé, em que participaram as doze tribos que, na época de David,
constituirão uma unidade nacional? Os biblistas acham que não. Naquela assembleia
não terá estado a tribo de Judá, pois os contactos entre Judá e a casa de José
só se estabeleceram na época de David. Além disso, a casa de Josué, referida no
texto, reuniria as tribos do centro do país (Efraim, Benjamim e Manassés), que
viveram a experiência da libertação do Egito, da caminhada pelo deserto e da
Aliança do Sinai e que, há muito tempo, tinham aderido a Javé e à Aliança. E as
outras tribos, convidadas a comprometer-se com Javé, seriam, provavelmente, as
tribos do Norte do país (Issacar, Zabulón, Neftali, Asher e Dan), que não estiveram
no Egito e não experimentaram a maravilhosa aventura da libertação.
Alguns pensam que aquela assembleia
foi a primeira tentativa histórica de estabelecer laços entre as tribos
instaladas no centro e as tribos instaladas no norte da Palestina. Na ótica de
Josué, a ligação deveria fazer-se à volta da fé comum no mesmo Deus. Porém, a
união das tribos do Norte e do Centro não se deu de uma vez; foi caminhada
lenta e progressiva, que se completou muitos anos depois de Josué ter
desaparecido de cena.
Estamos, pois, em Siquém, no centro
do país, num encontro que reúne “todas as tribos de Israel”, sob a presidência de
Josué. Na sua interpelação aos líderes das tribos, elenca alguns momentos capitais
da História da Salvação. Lembra como Deus chamou Abraão e o conduziu à terra de
Canaã; como os descendentes de Abraão se deslocaram para o Egito e como Deus os
tirou dessa terra de opressão, para os conduzir para a liberdade; como Deus fez
com que o Povo salvo da escravidão atravessasse o rio Jordão e tomasse posse da
terra que outros habitavam.
Deus conduziu sempre o seu Povo na História,
proporcionando-lhe todos os bens. Tudo o que sucedeu ao longo desse caminho não
resultou do poder e do engenho do Povo, mas da bondade de Deus. Javé provou que
é um Deus digno de confiança; as suas ações salvadoras e libertadoras em prol
de Israel são prova mais do que suficiente do seu poder e fidelidade.
Daqui o Povo deve tirar as devidas
consequências. Quererá servir o Senhor que, com provas dadas, libertou Israel
da opressão, o conduziu pelo deserto e o introduziu na Terra Prometida, ou
servirá os deuses estrangeiros, que nunca deram nada a Israel? Urge a opção
clara, o compromisso definido, a decisão definitiva. Para o grupo de Josué (as
tribos do Centro), as coisas são claras: estarão incondicionalmente com Javé. E
a resposta conjunta do Povo é a esperada: “Longe de nós abandonar o Senhor para
servir outros deuses!” O Povo reconhece a ação de Deus em seu favor, as
maravilhas por Ele realizadas, e dispõe-se a viver para o serviço de Javé. Não
vê saída e não pretende encontrar uma saída à margem de Javé.
Nisto, há um dado a destacar. A
aceitação de Javé como Deus de Israel não é obrigação imposta a um grupo de
escravos, a opção livre de pessoas que fizeram experiência forte de Deus e estão
impressionadas por tudo o que descobriram de Deus. A adesão do Povo a Deus é a
resposta grata de pessoas livres e maduras que encontraram Deus na História e
que estão cientes de que só em Deus se encontra a liberdade e a vida em
plenitude.
Esta reflexão dos deuteronomistas é
uma bela catequese que recorda ao Povo de Deus de todas as épocas – inclusive os
Judeus exilados na Babilónia – o compromisso de servir a Deus e de caminhar na
fidelidade a Javé e à Aliança, que será a vocação fundamental do Povo de Deus.
***
O Evangelho (Jo 6,60-69) apresenta-nos dois
grupos de discípulos com atitudes diversas ante o discurso de Jesus. Um deles,
cativo da lógica do Mundo, preocupa-se com a satisfação das suas necessidades
materiais e com a concretização dos seus projetos de poder, de ambição e de
glória, pelo que recusa a proposta de Jesus; o outro (os Doze), aberto à ação
de Deus e do Espírito, disponível para seguir Jesus no amor e no dom da vida,
aponta o rumo aos verdadeiros discípulos.
Depois de Jesus ter saciado a fome
da multidão, surgiu uma situação equívoca. A multidão esperava que Jesus fosse
um messias-rei que lhe desse uma vida confortável e pão em abundância; e Jesus
estava cônscio de que a sua missão não era dar coisas, mas oferecer-Se para que
a Humanidade tenha Vida. A multidão esperava de Jesus uma proposta humana que
levasse ao triunfo e à glória; e Jesus sabia que o caminho era o caminho da
cruz, da vida dada até ao extremo, por amor. Percebendo que a multidão e Ele
não estavam no mesmo comprimento de onda, não alimentou o equívoco; e, no
“discurso do pão da vida”, clarificou a proposta. Depois de O escutarem, os interlocutores
viram que tinham de fazer uma opção decisiva: continuar numa lógica humana,
virada para os bens materiais e para as satisfações imediatas, ou assumir a
lógica de Deus, seguindo o exemplo de Jesus e fazendo da vida dom de amor a
partilhar.
O trecho em causa vinca a reação
negativa de muitos à proposta de Jesus no discurso na sinagoga de Cafarnaum, no
dia a seguir à partilha dos pães e dos peixes. Nem todos os que O seguiam pelas
aldeias e vilas da Galileia estão dispostos a identificar-se com Ele (“comer a
sua carne e beber o seu sangue”) e a oferecer a vida como dom de amor a
partilhar com toda a Humanidade.
Será útil, para se entender a
catequese do autor do Quarto Evangelho, lembrar o contexto da sua comunidade,
nos fins do século I, quando este Evangelho foi escrito. Os cristãos eram
discriminados e perseguidos em todo o Império romano; muitos afastavam-se,
recusando seguir Jesus no dom da vida; outros, perplexos, questionavam-se se, para
ser cristão, seria preciso percorrer caminho tão radical e de tanta exigência.
A proposta de Jesus levaria à felicidade e à Vida plena, ou ao fracasso e à morte?
Neste cenário, que exigia opções decisivas, João procura, recorrendo às
palavras de Jesus, respostas que devolvam aos cristãos o ânimo e a esperança.
Com isto é consentâneo o comentário do
Papa Francisco ao trecho evangélico em apreço.
Tu tens
palavras de vida eterna” é uma bela asserção que testemunha a amizade e a
confiança que ligam Pedro a Cristo, juntamente com os outros discípulos:
“Senhor, para quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna.” Pedro pronuncia-a no momento crítico em que Jesus terminar o discurso em
que disse ser o “pão que desceu do céu”. É linguagem difícil para as pessoas,
de modo que até os discípulos que O seguiram O abandonaram, porque não entenderam.
Porém, os
Doze permaneceram, porque Nele encontraram “palavras de vida eterna”.
Ouviram-no pregar, viram os milagres que realizou e continuam a partilhar com
ele os momentos públicos e a intimidade da vida quotidiana.
Os
discípulos nem sempre entendem o que o Mestre diz e faz; e, às vezes, lutam
para aceitarem os paradoxos do amor, as exigências extremas da misericórdia, a
radicalidade do seu modo de doação a todos. Não é fácil entenderem, mas são
fiéis. As escolhas de Jesus, muitas vezes, ultrapassam a mentalidade comum, os cânones
da religião e das tradições institucionais, até ao ponto de criarem situações
provocativas e embaraçosas. Contudo, entre os muitos mestres daquele tempo,
Pedro e os outros apóstolos só encontraram Nele a resposta à sede de vida, de
alegria, de amor que os anima; só graças a Ele experimentaram a plenitude de
vida que procuram, além dos limites do pecado e da morte. Portanto, não vão
embora: todos eles, exceto um, apesar de quedas e arrependimentos, permanecerão
com Ele até ao fim.
Também, para
nós, não é fácil seguir o Senhor, compreender o seu modo de agir, fazer nossos
os seus critérios e exemplos. Porém, quanto mais estamos próximos Dele, quanto
mais aderimos ao seu Evangelho, recebemos a sua graça nos Sacramentos e
permanecemos na sua companhia na oração, O imitamos na humildade e na caridade,
mais experimentamos a beleza de tê-lo como um Amigo e percebemos que só Ele tem
“palavras de vida eterna”.
Então interroguemo-nos:
Até que ponto Jesus está presente na minha vida? Quanto me deixo tocar e
provocar com as suas palavras? Posso dizer que são “palavras de vida eterna”
também para mim? As palavras de Jesus, para ti – para mim também – são palavras
de vida eterna? Que Maria, que acolheu Jesus, Palavra de Deus, na sua
carne, nos ajude a ouvi-Lo e a nunca O abandonar.
***
Na segunda leitura (Ef 5,21-32),
Paulo lembra que a opção por Cristo tem consequências, ao nível da relação
familiar. Para o seguidor de Jesus, o espaço desta relação tem de ser o lugar
onde se manifestam os valores do Reino. Com a partilha de amor, com a união,
com a comunhão de vida, o casal cristão é chamado a ser reflexo da união de
Cristo com a Igreja.
O texto começa com o princípio geral
que deve condicionar o modo de os discípulos viverem e de se relacionarem: “Sede
submissos uns aos outros no temor de Cristo.” Ser submisso não significa comportamento
aviltante, mas exprime a condição de quem está em atitude permanente de serviço
humilde, sem deixar que a relação com o irmão seja dominada pelo orgulho ou por
atitudes de prepotência. A expressão “no temor de Cristo” recorda aos crentes
que o Cristo do amor e do serviço é o exemplo e o modelo que eles devem seguir.
Depois, o apóstolo convida os membros
da família a terem, uns com os outros, comportamentos consentâneos com aquele
princípio, que Paulo à relação marido-mulher, embora não se fique por aí, pois,
num desenvolvimento posterior, fala da conduta dos filhos para com os pais, dos
pais para com os filhos, dos senhores para com os escravos e dos escravos para
com os senhores.
Às mulheres, pede a submissão aos
maridos, porque “o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da
Igreja, seu corpo”. Esta afirmação – que, à luz dos nossos esquemas mentais,
parece sexista e discriminatória – deve ser entendida no contexto sociocultural
da época, onde o homem surge como referência suprema da organização do núcleo
familiar. Seja como for, a “submissão” de que Paulo fala deve ser entendida no
sentido do amor e do serviço e não no da escravidão. Aos maridos, recomenda que
amem as esposas, “como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela”. Não é um
amor qualquer, mas igual ao de Cristo pela comunidade – isto é, generoso e
total, capaz de ir até ao dom da própria vida. Portanto, o amor do marido pela
esposa deve ser de completa entrega, bondoso, generoso, paciente e serviçal,
livre de egoísmo ou de prepotência.
Chegado aqui, Paulo julga útil
explicitar a teologia da relação entre Cristo e a Igreja, para tirar as devidas
consequências para a união dos esposos cristãos. Cristo santificou a Igreja,
purificando-a “no batismo da água pela palavra da vida”. A imagem inspira-se
nas cerimónias preparatórias do matrimónio, que incluíam o banho purificador da
noiva, antes de se apresentar ao noivo. Assim, pelo batismo Cristo purifica a
Igreja do pecado e torna-a digna do esposo. O batismo é o momento em que Cristo
oferece a Vida plena à Igreja e em que a Igreja se compromete com Cristo numa
comunidade de amor. A partir daí, Cristo e a Igreja formam um só corpo.
Como Cristo e a Igreja formam um só
corpo, o marido e a esposa, comprometidos a comunidade de amor, formam um só
corpo: “Por isso, o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua mulher, e serão
dois numa só carne”. “Uma só carne” não alude só à união carnal dos esposos,
mas a toda a vida conjugal, feita de empenho quotidiano na vivência do amor, da
fidelidade e da partilha de toda a existência. Este paralelismo entre a união
de Cristo e da Igreja e o amor que une marido e mulher dá significado especial
ao casamento cristão: a vocação dos esposos é anunciar e testemunhar o amor e a
ternura de Deus; a comunhão de vida dos esposos cristãos é, aos olhos do Mundo,
sinal e reflexo do “mistério” de amor que une Cristo e a Igreja.
2024.08.25 – Louro de Carvalho
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