segunda-feira, 26 de agosto de 2024

É preciso fazer opções por valores eternos, os valores do Alto

 

A liturgia do 21.º domingo do Tempo Comum no Ano B confronta-nos com a necessidade da opção por valores estéreis e fugazes ou por valores eternos. Deus aponta-nos o rumo, mas a decisão é nossa. Logo na primeira leitura (Js 24,1-2a.15-17.18b), Josué convida as tribos de Israel reunidas em Siquém a escolherem entre “servir o Senhor” e servir outros deuses, mas adiantou-se, dizendo que ele e a família optaram por Deus, porque o Povo viu como Deus agiu, ao longo da História, e só Javé lhe pode proporcionar a vida, a liberdade e a paz.

O Livro de Josué reflete sobre a História do Povo de Deus no período que vai desde a entrada em Canaã até à morte de Josué (meados do século XII a.C.). Descreve, sobretudo, a conquista da Terra Prometida e a distribuição do território pelas tribos. E um apêndice final, redigido durante o Exílio na Babilónia, apresenta outro material, nomeadamente, a despedida e a morte de Josué, bem como a notícia de uma reunião geral de tribos em Siquém, antes da morte de Josué.

A preocupação dos autores da escola deuteronomista, que compuseram o livro é mais teológica do que histórica. Por exemplo, a conquista da Terra é apresentada como campanha fulgurante e fácil em que as doze tribos, a uma só voz, sob a liderança de Josué, se apoderaram de toda a Terra. Porém, historicamente as coisas não aconteceram assim. O Livro dos Juízes, mais realista, fala de conquista lenta, difícil e incompleta, que não foi obra de um povo unido à volta de chefe único, mas de tribos que fizeram a guerra isoladamente. Os autores do livro estão interessados em afirmar o poder de Javé, posto ao serviço do seu Povo. Foi Deus – e não a capacidade militar das tribos – que ofereceu a Israel a Terra Prometida. E Israel deve responder a esse dom mantendo-se fiel à Aliança e aos mandamentos.

O trecho em apreço situa-nos no final da vida de Josué. Sentindo aproximar-se a morte, Josué teria reunido em Siquém os líderes das tribos e ter-lhes-ia proposto a cerimónia de renovação da Aliança com Javé, em que participaram as doze tribos que, na época de David, constituirão uma unidade nacional? Os biblistas acham que não. Naquela assembleia não terá estado a tribo de Judá, pois os contactos entre Judá e a casa de José só se estabeleceram na época de David. Além disso, a casa de Josué, referida no texto, reuniria as tribos do centro do país (Efraim, Benjamim e Manassés), que viveram a experiência da libertação do Egito, da caminhada pelo deserto e da Aliança do Sinai e que, há muito tempo, tinham aderido a Javé e à Aliança. E as outras tribos, convidadas a comprometer-se com Javé, seriam, provavelmente, as tribos do Norte do país (Issacar, Zabulón, Neftali, Asher e Dan), que não estiveram no Egito e não experimentaram a maravilhosa aventura da libertação.

Alguns pensam que aquela assembleia foi a primeira tentativa histórica de estabelecer laços entre as tribos instaladas no centro e as tribos instaladas no norte da Palestina. Na ótica de Josué, a ligação deveria fazer-se à volta da fé comum no mesmo Deus. Porém, a união das tribos do Norte e do Centro não se deu de uma vez; foi caminhada lenta e progressiva, que se completou muitos anos depois de Josué ter desaparecido de cena. 

Estamos, pois, em Siquém, no centro do país, num encontro que reúne “todas as tribos de Israel”, sob a presidência de Josué. Na sua interpelação aos líderes das tribos, elenca alguns momentos capitais da História da Salvação. Lembra como Deus chamou Abraão e o conduziu à terra de Canaã; como os descendentes de Abraão se deslocaram para o Egito e como Deus os tirou dessa terra de opressão, para os conduzir para a liberdade; como Deus fez com que o Povo salvo da escravidão atravessasse o rio Jordão e tomasse posse da terra que outros habitavam.

Deus conduziu sempre o seu Povo na História, proporcionando-lhe todos os bens. Tudo o que sucedeu ao longo desse caminho não resultou do poder e do engenho do Povo, mas da bondade de Deus. Javé provou que é um Deus digno de confiança; as suas ações salvadoras e libertadoras em prol de Israel são prova mais do que suficiente do seu poder e fidelidade.

Daqui o Povo deve tirar as devidas consequências. Quererá servir o Senhor que, com provas dadas, libertou Israel da opressão, o conduziu pelo deserto e o introduziu na Terra Prometida, ou servirá os deuses estrangeiros, que nunca deram nada a Israel? Urge a opção clara, o compromisso definido, a decisão definitiva. Para o grupo de Josué (as tribos do Centro), as coisas são claras: estarão incondicionalmente com Javé. E a resposta conjunta do Povo é a esperada: “Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses!” O Povo reconhece a ação de Deus em seu favor, as maravilhas por Ele realizadas, e dispõe-se a viver para o serviço de Javé. Não vê saída e não pretende encontrar uma saída à margem de Javé.

Nisto, há um dado a destacar. A aceitação de Javé como Deus de Israel não é obrigação imposta a um grupo de escravos, a opção livre de pessoas que fizeram experiência forte de Deus e estão impressionadas por tudo o que descobriram de Deus. A adesão do Povo a Deus é a resposta grata de pessoas livres e maduras que encontraram Deus na História e que estão cientes de que só em Deus se encontra a liberdade e a vida em plenitude.

Esta reflexão dos deuteronomistas é uma bela catequese que recorda ao Povo de Deus de todas as épocas – inclusive os Judeus exilados na Babilónia – o compromisso de servir a Deus e de caminhar na fidelidade a Javé e à Aliança, que será a vocação fundamental do Povo de Deus.

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Evangelho (Jo 6,60-69) apresenta-nos dois grupos de discípulos com atitudes diversas ante o discurso de Jesus. Um deles, cativo da lógica do Mundo, preocupa-se com a satisfação das suas necessidades materiais e com a concretização dos seus projetos de poder, de ambição e de glória, pelo que recusa a proposta de Jesus; o outro (os Doze), aberto à ação de Deus e do Espírito, disponível para seguir Jesus no amor e no dom da vida, aponta o rumo aos verdadeiros discípulos.

Depois de Jesus ter saciado a fome da multidão, surgiu uma situação equívoca. A multidão esperava que Jesus fosse um messias-rei que lhe desse uma vida confortável e pão em abundância; e Jesus estava cônscio de que a sua missão não era dar coisas, mas oferecer-Se para que a Humanidade tenha Vida. A multidão esperava de Jesus uma proposta humana que levasse ao triunfo e à glória; e Jesus sabia que o caminho era o caminho da cruz, da vida dada até ao extremo, por amor. Percebendo que a multidão e Ele não estavam no mesmo comprimento de onda, não alimentou o equívoco; e, no “discurso do pão da vida”, clarificou a proposta. Depois de O escutarem, os interlocutores viram que tinham de fazer uma opção decisiva: continuar numa lógica humana, virada para os bens materiais e para as satisfações imediatas, ou assumir a lógica de Deus, seguindo o exemplo de Jesus e fazendo da vida dom de amor a partilhar.

O trecho em causa vinca a reação negativa de muitos à proposta de Jesus no discurso na sinagoga de Cafarnaum, no dia a seguir à partilha dos pães e dos peixes. Nem todos os que O seguiam pelas aldeias e vilas da Galileia estão dispostos a identificar-se com Ele (“comer a sua carne e beber o seu sangue”) e a oferecer a vida como dom de amor a partilhar com toda a Humanidade.

Será útil, para se entender a catequese do autor do Quarto Evangelho, lembrar o contexto da sua comunidade, nos fins do século I, quando este Evangelho foi escrito. Os cristãos eram discriminados e perseguidos em todo o Império romano; muitos afastavam-se, recusando seguir Jesus no dom da vida; outros, perplexos, questionavam-se se, para ser cristão, seria preciso percorrer caminho tão radical e de tanta exigência. A proposta de Jesus levaria à felicidade e à Vida plena, ou ao fracasso e à morte? Neste cenário, que exigia opções decisivas, João procura, recorrendo às palavras de Jesus, respostas que devolvam aos cristãos o ânimo e a esperança.

Com isto é consentâneo o comentário do Papa Francisco ao trecho evangélico em apreço.

Tu tens palavras de vida eterna” é uma bela asserção que testemunha a amizade e a confiança que ligam Pedro a Cristo, juntamente com os outros discípulos: “Senhor, para quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna.” Pedro pronuncia-a no momento crítico em que Jesus terminar o discurso em que disse ser o “pão que desceu do céu”. É linguagem difícil para as pessoas, de modo que até os discípulos que O seguiram O abandonaram, porque não entenderam.

Porém, os Doze permaneceram, porque Nele encontraram “palavras de vida eterna”. Ouviram-no pregar, viram os milagres que realizou e continuam a partilhar com ele os momentos públicos e a intimidade da vida quotidiana.

Os discípulos nem sempre entendem o que o Mestre diz e faz; e, às vezes, lutam para aceitarem os paradoxos do amor, as exigências extremas da misericórdia, a radicalidade do seu modo de doação a todos. Não é fácil entenderem, mas são fiéis. As escolhas de Jesus, muitas vezes, ultrapassam a mentalidade comum, os cânones da religião e das tradições institucionais, até ao ponto de criarem situações provocativas e embaraçosas. Contudo, entre os muitos mestres daquele tempo, Pedro e os outros apóstolos só encontraram Nele a resposta à sede de vida, de alegria, de amor que os anima; só graças a Ele experimentaram a plenitude de vida que procuram, além dos limites do pecado e da morte. Portanto, não vão embora: todos eles, exceto um, apesar de quedas e arrependimentos, permanecerão com Ele até ao fim.

Também, para nós, não é fácil seguir o Senhor, compreender o seu modo de agir, fazer nossos os seus critérios e exemplos. Porém, quanto mais estamos próximos Dele, quanto mais aderimos ao seu Evangelho, recebemos a sua graça nos Sacramentos e permanecemos na sua companhia na oração, O imitamos na humildade e na caridade, mais experimentamos a beleza de tê-lo como um Amigo e percebemos que só Ele tem “palavras de vida eterna”.

Então interroguemo-nos: Até que ponto Jesus está presente na minha vida? Quanto me deixo tocar e provocar com as suas palavras? Posso dizer que são “palavras de vida eterna” também para mim? As palavras de Jesus, para ti – para mim também – são palavras de vida eterna? Que Maria, que acolheu Jesus, Palavra de Deus, na sua carne, nos ajude a ouvi-Lo e a nunca O abandonar.

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Na segunda leitura (Ef 5,21-32), Paulo lembra que a opção por Cristo tem consequências, ao nível da relação familiar. Para o seguidor de Jesus, o espaço desta relação tem de ser o lugar onde se manifestam os valores do Reino. Com a partilha de amor, com a união, com a comunhão de vida, o casal cristão é chamado a ser reflexo da união de Cristo com a Igreja.

O texto começa com o princípio geral que deve condicionar o modo de os discípulos viverem e de se relacionarem: “Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo.” Ser submisso não significa comportamento aviltante, mas exprime a condição de quem está em atitude permanente de serviço humilde, sem deixar que a relação com o irmão seja dominada pelo orgulho ou por atitudes de prepotência. A expressão “no temor de Cristo” recorda aos crentes que o Cristo do amor e do serviço é o exemplo e o modelo que eles devem seguir.

Depois, o apóstolo convida os membros da família a terem, uns com os outros, comportamentos consentâneos com aquele princípio, que Paulo à relação marido-mulher, embora não se fique por aí, pois, num desenvolvimento posterior, fala da conduta dos filhos para com os pais, dos pais para com os filhos, dos senhores para com os escravos e dos escravos para com os senhores.

Às mulheres, pede a submissão aos maridos, porque “o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu corpo”. Esta afirmação – que, à luz dos nossos esquemas mentais, parece sexista e discriminatória – deve ser entendida no contexto sociocultural da época, onde o homem surge como referência suprema da organização do núcleo familiar. Seja como for, a “submissão” de que Paulo fala deve ser entendida no sentido do amor e do serviço e não no da escravidão. Aos maridos, recomenda que amem as esposas, “como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela”. Não é um amor qualquer, mas igual ao de Cristo pela comunidade – isto é, generoso e total, capaz de ir até ao dom da própria vida. Portanto, o amor do marido pela esposa deve ser de completa entrega, bondoso, generoso, paciente e serviçal, livre de egoísmo ou de prepotência.

Chegado aqui, Paulo julga útil explicitar a teologia da relação entre Cristo e a Igreja, para tirar as devidas consequências para a união dos esposos cristãos. Cristo santificou a Igreja, purificando-a “no batismo da água pela palavra da vida”. A imagem inspira-se nas cerimónias preparatórias do matrimónio, que incluíam o banho purificador da noiva, antes de se apresentar ao noivo. Assim, pelo batismo Cristo purifica a Igreja do pecado e torna-a digna do esposo. O batismo é o momento em que Cristo oferece a Vida plena à Igreja e em que a Igreja se compromete com Cristo numa comunidade de amor. A partir daí, Cristo e a Igreja formam um só corpo.

Como Cristo e a Igreja formam um só corpo, o marido e a esposa, comprometidos a comunidade de amor, formam um só corpo: “Por isso, o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua mulher, e serão dois numa só carne”. “Uma só carne” não alude só à união carnal dos esposos, mas a toda a vida conjugal, feita de empenho quotidiano na vivência do amor, da fidelidade e da partilha de toda a existência. Este paralelismo entre a união de Cristo e da Igreja e o amor que une marido e mulher dá significado especial ao casamento cristão: a vocação dos esposos é anunciar e testemunhar o amor e a ternura de Deus; a comunhão de vida dos esposos cristãos é, aos olhos do Mundo, sinal e reflexo do “mistério” de amor que une Cristo e a Igreja.

2024.08.25 – Louro de Carvalho

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