domingo, 18 de agosto de 2024

Privatização de sementes na Europa ameaça a segurança alimentar

 

Na última década, atingiu proporções inéditas a privatização dos recursos genéticos para a alimentação e a agricultura. A indústria de sementes assumiu os contornos de oligopólio, com dez empresas, gigantes da agroquímica (que possuem patentes sobre os genes de plantas essenciais para a sobrevivência da espécie humana), a controlar metade do mercado mundial das sementes comerciais e a quase totalidade do mercado das sementes transgénicas.

Conseguiram-no, pela biotecnologia, modificando os genes de plantas agrícolas e registando estas plantas como invenções. Como a resistência aos organismos geneticamente modificados tem travado o crescimento do setor, os gigantes do agro-negócio diversificam a atividade, para incluir sementes convencionais, e lançam o olho sobre a faixa leão do mercado, cerca de 75% dos agricultores no Mundo, que guardam e utilizam as suas próprias sementes.

A pretexto da eliminação de concorrência desleal, do mercado justo e da proteção da saúde pública, a indústria de sementes quer se ilegalize a guarda de sementes e a produção de variedades não registadas, em que se incluem muitos milhares de variedades tradicionais, a herança genética vegetal da Europa e do Mundo. E, nos últimos anos, a Comissão Europeia, a satisfazer os pedidos da agroindústria, reviu a legislação sobre reprodução e comercialização de sementes, juntando todas as diretivas numa regulamentação, a Lei das Sementes, com primazia sobre as legislações nacionais e com drástica restrição da livre reprodução e circulação de sementes.

Assim, em vários países da Europa, está em curso a caça às bruxas. Em França, os agricultores que guardam sementes são obrigados a pagar taxa à Associação da Indústria das Sementes; e, na Suíça, a tentativa de registar variedades tradicionais resultou na ilegalização de várias delas. Em Portugal, não é tecnicamente possível guardar ou comercializar sementes, sem satisfazer um rol de critérios que tornariam a prática inviável para variedades tradicionais.

A crescente privatização das sementes ameaça o nosso património genético comum e a segurança alimentar. Os agricultores deixam de guardar sementes e os criadores independentes deixam de melhorar as variedades. Por conseguinte, não havendo incentivo a preservar variedades tradicionais, o mercado restringir-se-á a um espólio infinitamente mais reduzido de variedades comerciais, onde dominarão, entre outras, as variedades transgénicas.

***

Está em curso a batalha silenciosa pelo controlo da base do abastecimento alimentar: as sementes. A Europa tem um dos setores de sementes mais diversificados do Mundo. Só na Alemanha, nos Países Baixos e na França, centenas de pequenos criadores estão a criar novas variedades de cereais, legumes e leguminosas. Com base em décadas de seleção cuidadosa para melhorar as caraterísticas desejadas, como o rendimento, a resistência às doenças e o sabor, adaptam as sementes aos ambientes locais, por métodos, como o cruzamento de raças. Esta plêiade de criadores  ajuda a manter a biodiversidade da Europa e a garantir a abundância dos alimentos. Porém, o seu trabalho está a ser cada vez mais ameaçado pela indústria das patentes. E, embora seja ilegal patentear plantas na União Europeia (UE), as plantas criadas através de meios tecnológicos são classificadas como inovação técnica e podem ser patenteadas.

Assim, os criadores em pequena escala não podem plantar livremente estas sementes ou utilizá-las para fins de investigação, sem pagar taxas de licenciamento. Cerca de 1200 variedades de sementes cultiváveis naturalmente são afetadas por patentes em toda a Europa, já que as empresas agroquímicas afirmam criá-las, através de inovações técnicas.

Concede tais patentes o Instituto Europeu de Patentes (IEP), entidade independente de Bruxelas e financiada pelas taxas de patentes das empresas, cujas decisões são acatadas pelos países da UE.

O alcance do IEP vai para lá dos 27 estados-membros da UE, abrangendo 39 países, incluindo o Reino Unido, a Turquia e a Suíça. Em vez de cada país membro da UE examinar, individualmente, os pedidos de patentes, o IEP, uma organização de serviço público, gere a aprovação das patentes europeias, através de um processo centralizado.

As implicações deste regime são de grande alcance. Com o controlo concentrado das sementes pelas empresas, a diversidade genética diminui, visto que os pequenos e médios criadores têm menos material genético com que trabalhar, o que pode levar a menor resistência em catástrofes climáticas e a perturbações no abastecimento alimentar. E, quando a Europa pondera o crescimento centrado no mercado, em detrimento da segurança ambiental e alimentar, o número crescente de patentes de sementes representa uma ameaça para os campos do continente.

Frans Carree, criador biológico da empresa holandesa De Bolster, tenta desenvolver um tomate resistente ao vírus da rugose castanha dos frutos, que pode destruir colheitas inteiras. Mas os seus esforços são dificultados por mais de uma dúzia de pedidos de patentes sobre esta resistência, apresentados por multinacionais como a BASF, a Bayer e a Syngenta. Embora as patentes ainda não tenham sido concedidas, criam incerteza jurídica e um risco real de que o investimento não seja rentável. Para desenvolver o seu tomate, Carree teria de ler todos os pedidos de patentes, para perceber as caraterísticas para as quais as empresas apresentaram um pedido de patente. Todavia, os pedidos de patentes estão escritos em linguagem tão complexa que é difícil compreendê-los.

Depois, teria de pedir a um laboratório que sequenciasse as suas plantas, para se certificar de que a caraterística patenteada não está incluída nas suas variedades, tarefa que exige tempo e custos.

“É preciso muito trabalho para lutar contra as patentes, e eu faço-o para lá do meu trabalho. Sou um criador, gosto de estar com as minhas plantas”, diz Carree.

Nos últimos anos, o desenvolvimento de novas técnicas de edição, as Novas Técnicas Genómicas (NGT), permitiu aos cientistas serem mais cirúrgicos na edição genética das sementes.

As NGT permitem que os especialistas melhorem as funções existentes de genes específicos ou acrescentem novas funções, sem afetar outras partes do genoma. Os defensores das NGT veem aí um grande potencial: menos pesticidas e fertilizantes, plantas resistentes a doenças e à seca e até campos de cereais irrigados pelo mar são concebíveis. Atualmente, todas as plantas derivadas de NGT são tão rigorosamente regulamentadas como os organismos geneticamente modificados (OGM) – criados através da inserção de genes de um organismo noutro. Porém, dado o seu potencial, as empresas agroquímicas e os cientistas vêm pressionando a UE para desregulamentar as NGT. Em fevereiro de 2024, o Parlamento Europeu (PE) votou a favor da desregulamentação das NGT no mercado, permitindo que algumas fossem consideradas equivalentes às plantas convencionais. Ora, o número de patentes sobre sementes pode aumentar com a potencial desregulamentação das NGT a nível da UE.

Michael Kock, ex-diretor de propriedade intelectual da Syngenta, prevê que, no futuro, a maioria das novas variedades que entram no mercado seja afetada por patentes. E o PE propôs a proibição de patentes para as NGT, para responder às preocupações do aumento dos custos e das novas dependências para os agricultores e criadores. A decisão sobre as NGT não se prevê para breve.

O PE está em negociações com os estados-membros, muitos dos quais, incluindo a Áustria, a França e a Hungria, se opõem à engenharia genética na agricultura em geral. No entanto, ainda que os líderes dos estados-membros da UE cheguem a acordo sobre a proibição de patentes, esta pode revelar-se ineficaz. Martin Häusling, eurodeputado alemão dos Verdes e corresponsável pelas regras da NGT, avisa que a proibição “de nada valerá”, porque o IEP tem a palavra final sobre o que pode ou não ser patenteado na Europa, não seguindo a legislação da UE.

Esta questão poderia ter terminado em 2017. Durante anos, pequenos criadores, grupos de agricultores e organizações ambientais fizeram soar o alarme de que cada vez mais material biológico está a ser privatizado através de patentes. Em resposta, em 2017, a Comissão Europeia emitiu uma nota interpretativa sobre a Diretiva Biotecnologia de 1998, declarando que não podem ser patenteados os “produtos obtidos por processos essencialmente biológicos”.

O IEP, seguindo a interpretação da Comissão, proibiu as patentes de plantas convencionalmente cultivadas, decisão bem recebida por criadores e agricultores. Mas, rapidamente, se aperceberam de que subsistiam lacunas importantes. O Conselho de Administração do IEP não fez distinção clara entre as variantes genéticas naturais e as mutações aleatórias, por um lado, e as intervenções técnicas geradas pela engenharia genética, por outro. Isto permite que as empresas usem os instrumentos da NGT para requerer patentes sobre plantas convencionalmente cultivadas.

“Se forem concedidas, os seus detentores podem controlar o acesso às plantas, independentemente de ser ou não utilizada a engenharia genética”, adverte Christoph Then, porta-voz da No Patents on Seeds. Já existe um precedente. Em 2022, o IEP concedeu uma patente à empresa alemã KWS para o milho com melhor digestibilidade (permite absorver mais nutrientes). Segundo a patente, as variantes genéticas foram originalmente encontradas em plantas de milho de reprodução convencional. Assim, a KWS pode controlar a produção de plantas com estes genes, resultem eles de mutações aleatórias ou de engenharia genética, impedindo outros criadores de os utilizarem.

O IEP, que avalia cada pedido de patente e verifica se a invenção é verdadeiramente técnica, nova e inventiva e, por conseguinte, patenteável, recusou comentar a forma como garante que os métodos técnicos não são utilizados para reinventar caraterísticas encontradas na natureza.

Desde as alterações de 2017 à Lei das Patentes, a reivindicação tem de declarar, explicitamente, que a patente não abrange plantas produzidas por meios biológicos. Esta medida, aparentemente protetora, criou um encargo significativo aos obtentores. Se o criador desenvolver uma planta com resistência similar à de variedade patenteada, deve provar que não infringiu a patente.

O criador tem de demonstrar que determinada caraterística foi selecionada naturalmente, para a sua planta não ser afetada pela patente, mas pode ser intentada ação judicial em qualquer altura, o que se torna difícil para os pequenos criadores, que, ao invés das multinacionais, não podem pagar a advogados especializados em patentes. A ação judicial pode dar ruína financeira.

O IEP tem sido alvo de críticas de pequenos criadores, de organizações ambientais, de políticos e até da indústria. Os críticos afirmam que é incentivado a conceder patentes, pois o seu orçamento de 2,5 mil milhões de euros provém, inteiramente, das taxas de utilização, desde o depósito até ao exame. O facto suscita preocupações quanto a potenciais conflitos de interesses.

Até as empresas agroquímicas criticam o IEP por distribuir patentes “como se fossem rebuçados”.

Filip De Corte, Diretor de Proteção de Culturas da Syngenta, sustenta que a qualidade das patentes é problema. Não se pede ao IEP a concessão de patentes, mas “que examine e recuse as patentes que não cumprem os requisitos de patenteabilidade”, considerou De Corte, deixando um apelo aos examinadores do IEP: “Sejam céticos e críticos!”

***

Dezenas de milhares de pessoas, em toda a Europa, pedem que o direito de produzir sementes esteja nas mãos dos agricultores e dos horticultores. As sementes de cultivo são um bem comum, criado por ações humanas, ao longo de milénios, pelo que devem permanecer no foro público e sob condições, algumas, entregues para a exploração exclusiva da indústria de sementes.

Os pedidos da campanha europeia pelas Sementes Livres abrangem o direito dos agricultores e dos horticultores à livre reprodução, guarda, troca e venda das suas sementes; a promoção da biodiversidade agrícola, pela preservação das sementes de origem regional e biológica; a recuperação dos conhecimentos tradicionais e da cultura gastronómica local; o fim às patentes sobre a vida e uso de organismos geneticamente modificados na agricultura e na alimentação; e uma nova política agrária que, em vez de apoiar a produção industrial intensiva e as monoculturas, promova a produção ecológica e biodiversa.

Urge inverter a legislação e a apoiar a biodiversidade agrícola e a agricultura tradicional, com informação online e offline, com seminários e com campanhas de sensibilização e protesto, com petições, com a dinamização de hortas guardiãs de sementes e com feiras de troca de sementes.

2024.08.18 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário