Na última década, atingiu proporções inéditas a privatização
dos recursos genéticos para a alimentação e a agricultura. A indústria de sementes
assumiu os contornos de oligopólio, com dez empresas, gigantes da agroquímica (que
possuem patentes sobre os genes de plantas essenciais para a sobrevivência da
espécie humana), a controlar metade do mercado mundial das sementes comerciais
e a quase totalidade do mercado das sementes transgénicas.
Conseguiram-no, pela
biotecnologia, modificando os genes de plantas agrícolas e registando estas
plantas como invenções. Como a resistência aos organismos geneticamente
modificados tem travado o crescimento do setor, os gigantes do agro-negócio
diversificam a atividade, para incluir sementes convencionais, e lançam o olho
sobre a faixa leão do mercado, cerca de 75% dos agricultores no Mundo, que
guardam e utilizam as suas próprias sementes.
A pretexto da eliminação
de concorrência desleal, do mercado justo e da proteção da saúde pública, a
indústria de sementes quer se ilegalize a guarda de sementes e a produção de
variedades não registadas, em que se incluem muitos milhares de variedades
tradicionais, a herança genética vegetal da Europa e do Mundo. E, nos últimos
anos, a Comissão Europeia, a satisfazer os pedidos da agroindústria, reviu a
legislação sobre reprodução e comercialização de sementes, juntando todas as diretivas
numa regulamentação, a Lei das Sementes, com primazia sobre as legislações
nacionais e com drástica restrição da livre reprodução e circulação de
sementes.
Assim, em vários países da Europa, está em curso a caça às
bruxas. Em França, os agricultores que guardam sementes são obrigados a pagar
taxa à Associação da Indústria das Sementes; e, na Suíça, a tentativa de
registar variedades tradicionais resultou na ilegalização de várias delas. Em
Portugal, não é tecnicamente possível guardar ou comercializar sementes, sem
satisfazer um rol de critérios que tornariam a prática inviável para variedades
tradicionais.
A crescente privatização das sementes ameaça o nosso património
genético comum e a segurança alimentar. Os agricultores deixam de guardar
sementes e os criadores independentes deixam de melhorar as variedades. Por
conseguinte, não havendo incentivo a preservar variedades tradicionais, o
mercado restringir-se-á a um espólio infinitamente mais reduzido de variedades
comerciais, onde dominarão, entre outras, as variedades transgénicas.
***
Está em curso a batalha silenciosa pelo controlo da base do abastecimento
alimentar: as sementes. A Europa tem
um dos setores de sementes mais diversificados do Mundo. Só na Alemanha, nos Países
Baixos e na França, centenas de pequenos criadores estão a criar novas
variedades de cereais, legumes e leguminosas. Com base em décadas de seleção cuidadosa para melhorar as
caraterísticas desejadas, como o rendimento, a resistência às doenças e o
sabor, adaptam as sementes aos ambientes locais, por métodos, como o cruzamento
de raças. Esta plêiade de
criadores ajuda a manter a biodiversidade da Europa e a garantir a
abundância dos alimentos. Porém, o seu trabalho está a ser cada vez mais
ameaçado pela indústria das patentes. E,
embora seja ilegal patentear plantas na União Europeia (UE), as plantas criadas
através de meios tecnológicos são classificadas como inovação técnica e podem
ser patenteadas.
Assim, os
criadores em pequena escala não podem plantar livremente estas sementes ou
utilizá-las para fins de investigação, sem pagar taxas de licenciamento. Cerca
de 1200 variedades de sementes cultiváveis naturalmente são afetadas por
patentes em toda a Europa, já que as empresas agroquímicas afirmam criá-las,
através de inovações técnicas.
Concede tais
patentes o Instituto Europeu de Patentes (IEP), entidade independente de
Bruxelas e financiada pelas taxas de patentes das empresas, cujas decisões são
acatadas pelos países da UE.
O alcance do
IEP vai para lá dos 27 estados-membros da UE, abrangendo 39 países, incluindo o
Reino Unido, a Turquia e a Suíça. Em vez de cada país membro da UE examinar,
individualmente, os pedidos de patentes, o IEP, uma organização de serviço
público, gere a aprovação das patentes europeias, através de um processo
centralizado.
As
implicações deste regime são de grande alcance. Com o controlo concentrado das
sementes pelas empresas, a diversidade genética diminui, visto que os pequenos
e médios criadores têm menos material genético com que trabalhar, o que pode
levar a menor resistência em catástrofes climáticas e a perturbações no
abastecimento alimentar. E, quando a Europa pondera o crescimento centrado no
mercado, em detrimento da segurança ambiental e alimentar, o número crescente
de patentes de sementes representa uma ameaça para os campos do continente.
Frans
Carree, criador biológico da empresa holandesa De Bolster, tenta desenvolver um
tomate resistente ao vírus da rugose castanha dos frutos, que pode destruir
colheitas inteiras. Mas os seus esforços são dificultados por mais de uma dúzia
de pedidos de patentes sobre esta resistência, apresentados por multinacionais
como a BASF, a Bayer e a Syngenta. Embora as patentes ainda não tenham
sido concedidas, criam incerteza jurídica e um risco real de que o investimento
não seja rentável. Para desenvolver o seu tomate, Carree teria de ler todos os
pedidos de patentes, para perceber as caraterísticas para as quais as empresas
apresentaram um pedido de patente. Todavia, os pedidos de patentes estão escritos
em linguagem tão complexa que é difícil compreendê-los.
Depois,
teria de pedir a um laboratório que sequenciasse as suas plantas, para se
certificar de que a caraterística patenteada não está incluída nas suas
variedades, tarefa que exige tempo e custos.
“É preciso
muito trabalho para lutar contra as patentes, e eu faço-o para lá do meu
trabalho. Sou um criador, gosto de estar com as minhas plantas”, diz Carree.
Nos últimos
anos, o desenvolvimento de novas técnicas de edição, as Novas Técnicas
Genómicas (NGT), permitiu aos cientistas serem mais cirúrgicos na edição
genética das sementes.
As NGT
permitem que os especialistas melhorem as funções existentes de genes
específicos ou acrescentem novas funções, sem afetar outras partes do genoma.
Os defensores das NGT veem aí um grande potencial: menos pesticidas e
fertilizantes, plantas resistentes a doenças e à seca e até campos de cereais
irrigados pelo mar são concebíveis. Atualmente, todas as plantas derivadas de
NGT são tão rigorosamente regulamentadas como os organismos geneticamente
modificados (OGM) – criados através da inserção de genes de um organismo
noutro. Porém, dado o seu potencial, as empresas agroquímicas e os cientistas
vêm pressionando a UE para desregulamentar as NGT. Em fevereiro de 2024, o
Parlamento Europeu (PE) votou a favor da desregulamentação das NGT no mercado,
permitindo que algumas fossem consideradas equivalentes às plantas
convencionais. Ora, o número de patentes sobre sementes pode aumentar com a
potencial desregulamentação das NGT a nível da UE.
Michael
Kock, ex-diretor de propriedade intelectual da Syngenta, prevê que, no futuro, a
maioria das novas variedades que entram no mercado seja afetada por patentes. E
o PE propôs a proibição de patentes para as NGT, para responder às preocupações
do aumento dos custos e das novas dependências para os agricultores e
criadores. A decisão sobre as NGT não se prevê para breve.
O PE está em
negociações com os estados-membros, muitos dos quais, incluindo a Áustria, a
França e a Hungria, se opõem à engenharia genética na agricultura em geral. No
entanto, ainda que os líderes dos estados-membros da UE cheguem a acordo sobre
a proibição de patentes, esta pode revelar-se ineficaz. Martin Häusling,
eurodeputado alemão dos Verdes e corresponsável pelas regras da NGT, avisa que a
proibição “de nada valerá”, porque o IEP tem a palavra final sobre o que pode
ou não ser patenteado na Europa, não seguindo a legislação da UE.
Esta questão
poderia ter terminado em 2017. Durante anos, pequenos criadores, grupos de
agricultores e organizações ambientais fizeram soar o alarme de que cada vez
mais material biológico está a ser privatizado através de patentes. Em
resposta, em 2017, a Comissão Europeia emitiu uma nota interpretativa sobre
a Diretiva Biotecnologia de 1998, declarando que não podem ser patenteados os “produtos
obtidos por processos essencialmente biológicos”.
O IEP,
seguindo a interpretação da Comissão, proibiu as patentes de plantas convencionalmente
cultivadas, decisão bem recebida por criadores e agricultores. Mas, rapidamente,
se aperceberam de que subsistiam lacunas importantes. O Conselho de
Administração do IEP não fez distinção clara entre as variantes genéticas
naturais e as mutações aleatórias, por um lado, e as intervenções técnicas
geradas pela engenharia genética, por outro. Isto permite que as empresas usem
os instrumentos da NGT para requerer patentes sobre plantas convencionalmente cultivadas.
“Se forem
concedidas, os seus detentores podem controlar o acesso às plantas,
independentemente de ser ou não utilizada a engenharia genética”, adverte Christoph
Then, porta-voz da No Patents on Seeds. Já existe um precedente. Em 2022, o IEP
concedeu uma patente à empresa alemã KWS para o milho com melhor
digestibilidade (permite absorver mais nutrientes). Segundo a patente, as
variantes genéticas foram originalmente encontradas em plantas de milho de
reprodução convencional. Assim, a KWS pode controlar a produção de plantas
com estes genes, resultem eles de mutações aleatórias ou de engenharia
genética, impedindo outros criadores de os utilizarem.
O IEP, que
avalia cada pedido de patente e verifica se a invenção é verdadeiramente
técnica, nova e inventiva e, por conseguinte, patenteável, recusou comentar a
forma como garante que os métodos técnicos não são utilizados para reinventar
caraterísticas encontradas na natureza.
Desde as
alterações de 2017 à Lei das Patentes, a reivindicação tem de declarar,
explicitamente, que a patente não abrange plantas produzidas por meios
biológicos. Esta medida, aparentemente protetora, criou um encargo
significativo aos obtentores. Se o criador desenvolver uma planta com
resistência similar à de variedade patenteada, deve provar que não infringiu a
patente.
O criador
tem de demonstrar que determinada caraterística foi selecionada naturalmente,
para a sua planta não ser afetada pela patente, mas pode ser intentada ação judicial
em qualquer altura, o que se torna difícil para os pequenos criadores, que, ao
invés das multinacionais, não podem pagar a advogados especializados em
patentes. A ação judicial pode dar ruína financeira.
O IEP tem
sido alvo de críticas de pequenos criadores, de organizações ambientais, de políticos
e até da indústria. Os críticos afirmam que é incentivado a conceder patentes,
pois o seu orçamento de 2,5 mil milhões de euros provém, inteiramente, das
taxas de utilização, desde o depósito até ao exame. O facto suscita
preocupações quanto a potenciais conflitos de interesses.
Até as
empresas agroquímicas criticam o IEP por distribuir patentes “como se fossem
rebuçados”.
Filip De
Corte, Diretor de Proteção de Culturas da Syngenta, sustenta que a qualidade
das patentes é problema. Não se pede ao IEP a concessão de patentes, mas “que
examine e recuse as patentes que não cumprem os requisitos de patenteabilidade”,
considerou De Corte, deixando um apelo aos examinadores do IEP: “Sejam céticos
e críticos!”
***
Dezenas de milhares de pessoas, em toda a Europa, pedem que o
direito de produzir sementes esteja nas mãos dos agricultores e dos horticultores.
As sementes de cultivo são um bem comum, criado por ações humanas, ao longo de
milénios, pelo que devem permanecer no foro público e sob condições, algumas,
entregues para a exploração exclusiva da indústria de sementes.
Os pedidos da campanha
europeia pelas Sementes Livres abrangem o direito dos agricultores e dos horticultores à livre
reprodução, guarda, troca e venda das suas sementes; a promoção da
biodiversidade agrícola, pela preservação das sementes de origem regional e
biológica; a recuperação dos conhecimentos tradicionais e da cultura
gastronómica local; o fim às patentes sobre a vida e uso de organismos
geneticamente modificados na agricultura e na alimentação; e uma nova política
agrária que, em vez de apoiar a produção industrial intensiva e as
monoculturas, promova a produção ecológica e biodiversa.
Urge inverter a legislação e a apoiar a biodiversidade
agrícola e a agricultura tradicional, com informação online e offline, com seminários
e com campanhas de sensibilização e protesto, com petições, com a dinamização
de hortas guardiãs de sementes e com feiras de troca de sementes.
2024.08.18
– Louro de Carvalho
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