É óbvio que a obtenção ilícita
de dinheiros é crime e o crime leva à punição de quem o pratica.
Quem, com
intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio
de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à
prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (Código Penal,
artigo 217.º, n.º 1).
Por outro lado o artigo 227.º,
n.º 1 do Código Penal estabelece que é punido, se
ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente,
com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias, “o devedor
que, com intenção de prejudicar os credores, destruir, danificar, inutilizar ou
fizer desaparecer parte do seu património; diminuir ficticiamente o seu ativo,
dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo
créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por
qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade,
nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou
ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade, apesar
de devida; criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou,
para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender
ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente”.
Por isso, estranha-se que haja empresas e sociedades
que entrem em situação de falência ou de insolvência, acabando na liquidação,
mas que sócios com responsabilidades no currículo possam constituir outra
empresa ou criar ou integrar outras sociedades. Também se estranha que, Ana
Abrunhosa, ex-ministra da Coesão Territorial tenha vindo a terreiro sustentar
que “quem comete fraudes com fundos deve
entrar numa lista negra e nunca mais ter apoios públicos”.
Disse-o no podcast do ECO dedicado aos fundos europeus: “Quem
é apanhado em esquemas de fraude com fundos europeus deve ‘entrar numa lista negra, a nível europeu, e jamais ter acesso a
fundos públicos, sejam europeus, sejam de outra natureza’ [ou proveniência]”,
E a deputada socialista, que tutelou os programas regionais
no anterior governo, defende: “Quando se comprova que praticaram atos
fraudulentos, independente do sítio ou da empresa onde estejam a trabalhar,
nunca mais podem candidatar-se a fundos europeus. Não nos [devemos] circunscrever à entidade jurídica, à empresa,
porque assim vão constituir outra empresa. Mas as próprias pessoas [devem]
ficar marcadas para o resto da vida, porque não são de confiança.”
A ex-governante – a quem o Presidente da República
(PR) admoestou, publicamente, sobre o eventual atraso na execução do Plano de
Recuperação e Resiliência (PRR), como se fosse a única responsável pela
execução daquele programa de reformas e de investimentos –, admite que “o risco é grande”, sendo, eventualmente, necessário recorrer
ao Orçamento do Estado para devolver a Bruxelas os apoios pagos, indevidamente,
a Manuel Serrão, no âmbito da Operação Maestro, que investiga a
atribuição indevida de 39 milhões de euros de fundos europeus ao longo de oito
anos, pois, quando as pessoas fazem estes esquemas protegem-se a si e ao seu
património. Todavia, alerta para o risco da tentação de
adicionar “mais camadas de controlo”, que aumentarão a “carga
burocrática”. “Não há sistemas completamente blindados à fraude”, admite. Total
adepta da simplificação, adverte: “Quando simplificamos, temos,
depois, de monitorizar e fiscalizar.”
Elogia a intenção de o governo voltar a tentar
simplificar a contratação pública, lamenta o facto de, no discurso político, se ter deixado de falar do território e do
interior e de haver “alguma oportunidade política” nas críticas do atual
Executivo à execução dos fundos europeus, vincando que, “nestes quatro
meses, a execução não deu um salto”, antes “se mantém quase igual”.
E concluiu: “Também não era expectável que desse. É a realidade dos factos.”
Vê, como preocupação as críticas do Executivo à má
execução dos fundos europeus. Porém, anota
que “quem está a frente da pasta atual dos fundos europeus é um conhecedor da realidade
e sabe perfeitamente que é comum os quadros comunitários atrasarem-se, neste
caso, o Portugal 2020 e, por isso, também atrasa o início do Portugal 2030”.
***
Sobre o PRR, programa adicional que emergiu como
resposta à crise económica e social resultante da pandemia de covid-19, refere:
“Creio que a sua grande preocupação é o PRR, preocupação que partilhamos,
porque temos pouco tempo para o executar. Mas também acho que há
alguma oportunidade política, porque, passados uns meses, verificamos que a
execução se mantém quase igual. É prova de que, antes de vermos execução
física, uma obra, antes de ter execução financeira, tem, no mínimo, dois
anos de trabalho, com tudo a correr bem, porque temos um conjunto de
procedimentos. Aí, quero deixar uma nota de congratulação ao esforço que está a
ser feito para a simplificação, mas também deixar uma preocupação: quando simplificamos, temos, depois, de monitorizar e fiscalizar.
E não temos máquina para isso.”
Releva que está o mercado da construção “aquecido”,
após a pandemia, que parou tudo, e o período inflacionista, com obras cujo
preço duplicou. As empresas que ganharam obras desistiam delas, porque diziam
que o preço de adjudicação era impraticável, pois, “os preços mudavam de semana
para semana”. Considera que, “um ano ou dois depois de passarmos a pandemia e
este período inflacionista terrível, é fácil agora estar a criticar”, mas quem
está à frente dos fundos “não se deteve muito tempo na crítica”
e merece elogio, por se preocupar mais com a execução e com o olear da máquina.
A maior preocupação não é o Portugal 2030, mas o PRR, por ter prazo de execução
muito curto, para investimentos muito grandes e, sobretudo, de investimento na
administração do Estado.
Vê com bons olhos a
iniciativa do Executivo de rever as regras dos contratos públicos, pois foi
iniciativa do seu governo, que ainda fez alterações. Por exemplo, só carecem de
visto prévio do Tribunal de Contas (TdC) as obras com custo a partir dos 750
mil euros. Porém, sempre que isso acontece, o TdC alerta que “estamos a mexer nas regras, para permitir fazer
contratos com amigos”. Por isso, Ana
Abrunhosa sustenta que “temos de encontrar um equilíbrio” também no que
é “a visão política e pública destas questões, porque simplificar é, de facto,
eliminar algumas regras”, o que exige “monitorizar e fiscalizar e mão pesada
para quem não cumpre” e, sobretudo, “grande relação de confiança”.
Nos contratos públicos, Espanha e outros países adotaram regras de contratação
públicas especiais para os projetos do PRR. Aqui, todas as tentativas eram
contestadas. Entretanto, flexibilizou-se pela retirada de regras que
pesam nos prazos, sobretudo, na execução. E temos entidades que, em geral, “são
muito cumpridoras e têm muitos níveis de fiscalização, independentemente de
terem ou não fundos europeus”.
Sobre a existência de mais
de dez entidades fiscalizadoras dos fundos europeus e ter sido possível a
alegada fraude perpetrada ao longo de oito anos (Operação Maestro), considera que, por mais regras
que existam, as autoridades de gestão não têm os meios
das autoridades judiciais. Quando há
falsificação, com operação concertada, demora tempo. Porém, foi a autoridade de
gestão que detetou, teve a suspeita e que a transmitiu ao Ministério Público
(MP). O Compete, quando viu provas e indícios, alertou as autoridades
judiciais. Não tem escutas, nem meios para investigar, mas tem procedimentos que
se cruzam. E hoje, com os sistemas de informação disponíveis, é mais fácil.
Porém, não há sistemas completamente blindados à fraude. Quando há
várias entidades concertadas para aproveitamento, são coisas já muito
elaboradas. No caso vertente, foram apanhados pela autoridade de gestão. “Os
mecanismos de controlo funcionaram”, frisou.
Se, depois desta situação, pusermos mais camadas de
controlo, a seguir, os que vêm por bem terão enorme carga burocrática. É o dilema de confiar e de
fiscalizar, mas não blindar e considerar que os próximos vêm com má
intenção. Quem gere os fundos sabe que há um nível de risco, que tem de ser
controlado. Por isso, há procedimentos e auditorias. Uma autoridade
de gestão tem uma entidade de controlo e de auditoria, separada do resto da
equipa, para auditar com independência. Depois, temos a Agência para o
Desenvolvimento & Coesão, a Inspeção Geral de Finanças, o TdC e entidades
europeias, que fazem auditorias. Todavia, nunca teremos o sistema blindado.
Vai-se aperfeiçoando. Ora, se depois de um caso, pusermos camadas de proteção e
de verificação, “voltamos à situação de penalizar quem vem por bem”.
A solução seria penalizar,
de modo mais pesado, os prevaricadores (entidade
e indivíduos), para desincentivar a fraude. Comprovando-se
que praticaram atos fraudulentos, independentemente do sítio ou da empresa onde
trabalhavam, nunca mais poderiam candidatar-se a fundos europeus. Se nos circunscrevermos à entidade jurídica,
constituirão outra. Ora, se as pessoas ficarem marcadas
para o resto da vida, por não serem de confiança, protegeremos os nossos
impostos e evitaremos a repetição de casos de verbas desviadas e que podiam ser
aplicadas noutros projetos. Há elevado custo de oportunidade e perde-se capital
de confiança. O país não tem tido más avaliações da Comissão Europeia (antes, pelo
contrário), mas estes casos mancham a nossa reputação. E, se as entidades
apanhadas no controlo e na Justiça não têm verbas para devolver e se não as recuperamos é o nosso Orçamento de Estado, que é
utilizado para devolver os fundos à UE.
Parece que o risco é grande. Parte destes apoios europeus não era a fundo
perdido, mas reembolsável. Mas, a partir do momento em que tais entidades vão
para a falência, não haverá lugar a reembolso. Terá de ser o tribunal a tentar
encontrar meios de conseguir o reembolso destas verbas, nem que seja ir ao património
das pessoas. Porém, quando as pessoas fazem estes esquemas, protegem-se a si e ao
seu património. Por isso, as pessoas apanhadas nestes esquemas
terão de entrar numa lista negra, a nível europeu, e jamais ter acesso a fundos
públicos. Estas entidades e os indivíduos nunca mais deveriam de ter apoios com
fundos públicos: do Orçamento de Estado, das autarquias ou dos fundos europeus.
Questionada se teria feito
diferente para acelerar a execução dos fundos, releva que tentou, durante muito tempo, alterar o Código da Contratação
Pública, mas a própria Associação Nacional de
Municípios (ANMP) foi contra. Não queria ser sujeita a
comentários permanentes, a suspeição pública. Lamenta não ter o governo de maioria conseguido tudo. Ainda
tentou e fez alterações. No caso do PRR, ter-se-ia justificado, como outros
países fizeram, porque aprovaram um Código da Contratação Pública especial para
os projetos do PRR. É difícil fazer alterações, quando a preocupação é com a
forma como se combate a inflação. Teve de se reprogramar o PRR, o que este governo
terá de fazer, novamente. E leis, como as dos estatutos das ordens
profissionais, tiveram forte oposição na sociedade civil, incluindo o veto
presidencial.
O PRR tem uma parte dos projetos paga com o fundo
perdido e outra com empréstimos. Na última reprogramação,
passaram para os empréstimos os projetos que derrapariam no tempo, porque
os empréstimos não são tão arriscados de perder. Passaram a financiamento a
fundo perdido projetos em que o prazo estava controlado. Passado meses, é
normal que quem está com a coordenação e com a responsabilidade do dossiê
reveja os projetos, que estão identificados na pasta de transição. Há
coisas que não controlamos, como concursos desertos, que obrigam a lançar
novos. Tem de haver ajuste do real à possibilidade de execução e aos projetos
que conseguimos executar.
Quanto à crítica de que o
PRR investiu em excesso no litoral, em detrimento do interior, Ana Abrunhosa
releva que o PRR tem
muito investimento no interior, mas visava resolver problemas da
pandemia. E, enquanto ministra da Coesão, ficou pacificada com a repartição
do bolo para o litoral e interior, porque muito do apoio dependia de
candidaturas, como no caso da habitação. Os municípios do interior
estão a investir em habitação, porque fizeram as suas estratégias locais de habitação
e amadureceram os projetos. Porém, a ex-governante não podia
fechar os olhos a áreas com terríveis problemas de mobilidade nos transportes. Há
que fazer face a tais problemas, porque estão lá as pessoas. Temos de melhorar
a qualidade na mobilidade, na habitação e na saúde. Investiu-se, na área
metropolitana de Lisboa (AMP), em equipamentos hospitalares (não em hospitais),
porque é a área do país onde há maior concentração de população e onde há
hospitais ou unidades de saúde com grandes necessidades de investimento. E o
PRR foi para isso. A defesa do interior não obsta à colocação dos recursos onde
estão os problemas. E não se pode pôr o litoral contra o interior ou
vice-versa. Nalgumas áreas, investir no litoral é fazer coesão, porque é
pôr os recursos onde há problemas. Coesão é encontrar “medidas específicas para
os problemas em concreto”.
***
Falar em volume enorme de fundos europeus pode ser
falacioso. Verba disponível nem sempre equivale a verba conseguida. Há
contrapartidas legislativas (com oposição política ou dos setores interessados),
concursos (que podem ficar desertos), trabalhos a mais não previstos,
candidaturas complexas, contrapartida nacional e/ou privada, despesas consideradas
inelegíveis. Enfim, não é fácil a execução física e financeira dos projetos.
Por isso, é ignóbil usar os fundos europeus como arma de arremesso político-partidário.
2024.08.08 –
Louro de Carvalho
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