terça-feira, 13 de agosto de 2024

Por estes dias, em Fátima, houve um trono em modo de jardim

A ornamentação floral confere natural beleza às celebrações das grandes peregrinações da Cova da Iria. E, nestes dias 12 e 13 de agosto, as flores que adornavam os espaços falavam da Eucaristia, de uma tradição e do pino do verão.

A meio da manhã do dia 12, do altar do Recinto de Oração do Santuário já se sentia a movimentação de peregrinos que chegava à Cova da Iria para participar nas celebrações comemorativas da 4.ª Aparição e da peregrinação do migrante e do refugiado. Ali, também se sentia outra azáfama. Entre verduras, flores e esponjas florais, Manuela, Otília, Rosa, Dora e Conceição ornamentavam o presbitério. Desde maio, esta equipa de funcionárias do Santuário, responsável pelas ornamentações florais, conta com a ajuda de Diogo Figueiredo,  voluntário que está, desde maio, a dinamizar um workshop de ornamentação floral destinado às colaboradoras do Santuário de Fátima. “Precisamos de uma pessoa assim, que saiba tudo”, afirma Manuela, ao apontar para o voluntário, que, no cimo de um escadote, termina um arranjo que sobe pelo ambão. “Nós não somos especialistas, e ele, que estudou para isto, tem sido uma ajuda preciosa”, vinca.

A opinião do jovem de 27 anos, formado em organização de eventos e com formação em arte floral, é solicitada, sem receio, em qualquer momento e também ao terminar um dos arranjos da ornamentação floral do Recinto de Oração que, nesta peregrinação, tinha referências à Eucaristia, no lilás das rosas amnésia; à tradição da entrega do trigo pelos peregrinos, nas espigas de trigo; e ao culminar da época estival. “Como o agosto é o mês que liga o verão quente ao outono, usámos folhas castanhas de faia e espigas de trigo-selvagem”, pormenorizou o voluntário, que as colheu diretamente do seu ambiente autóctone, na Serra da Estrela, de onde é natural, para reforçar a opção assumida na ornamentação floral no Santuário de Fátima.

“Agora, tentamos recriar um estilo mais inglês ou francês, quase como aqueles quadros do barroco francês, onde eram pintadas misturas de flores campestres, até porque, antigamente, quando se começou a fazer arranjos florais, as pessoas ornamentavam com o que tinham nos seus jardins e não compravam flores. [Já] no Santuário, são usadas flores compradas e oferecidas. Como até os peregrinos acabam por oferecer uma flor de cada nação, nós tentamos recriar uma espécie de jardim”, explica o voluntário, a justificar a mudança de estilo de ornamentação formal para estilo natural, que, parecendo mais espontâneo, exige tanto ou mais esforço na disposição das flores.

Tentam agrupá-las num arranjo equilibrado, por cores, como se fosse um jardim natural, mas sem uma forma propriamente dita. A ideia é tudo parecer mais orgânico e solto, na diversidade floral presente: girassóis, jarros, antúrios, gladíolos, coroas imperiais, lisianthus, camomilas, espigas de trigo, cártamos, rosas amnésia, rosas inglesas e ranúnculos, que habitam entre diferentes tons de uma verdura igualmente diversa.

Muitos peregrinos que passavam não resistiam a tirar foto de um trabalho de que, apesar de não estar completo, já brotava uma beleza incontornável, fruto de um labor dedicado e minucioso.

Os responsáveis já ali estavam desde as 8h00 e por ali continuaram até meio da tarde, com uma curta pausa para almoçarem e para montarem a ornamentação da Capelinha das Aparições, trabalhada antecipadamente. O andor que transporta a imagem da Virgem também já estava devidamente embelezado, trabalho no qual Diogo gosta de colaborar. “Em maio passado, pude ajudar na ornamentação do andor pela primeira vez e, no momento da procissão das velas, ao vê-lo descer o recinto, fartei-me de chorar de alegria. Neste serviço, sentimos que há também aqui obra do Espírito Santo, porque, para fazermos algo tão bonito, temos de estar inspirados”, frisa o voluntário, ao constatar a mudança de estilo no embelezamento do andor.

Antes do Centenário das Aparições, o andor era enfeitado com cravos brancos; após o Centenário, usaram-se sobretudo rosas, para representar o Rosário; e, doravante, coloca-se Nossa Senhora, que parece numa serra, no campo, num trono em jeito de jardim, num andor mais campestre, como se fosse uma seara, que acaba por simbolizar os diferentes povos que ali vêm.

Ao fim do dia, o trabalho de três dias estava concluído. Os espaços centrais da peregrinação estavam adornados em tons silvestres, conferindo beleza natural às celebrações, vividas intensamente por todos os que ali peregrinam. Os ornamentadores viram, enfim, o seu trabalho a cumprir o propósito, que, apesar de efémero, enche o olhar de quem o admira e a alma de quem o fez. “Poder embelezar o Santuário de Fátima, nestes dias, é uma oportunidade única e, ao mesmo tempo, um trabalho duro, mas ao nível da fé é uma recompensa muito grande”, confessam.

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Foi com este cenário de referência que D. Virgílio Antunes, bispo da Diocese de Coimbra e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), na vigília da noite do dia 12, clamando que, “para Deus não há estrangeiros, mas somente homens e mulheres que caminham sobre esta terra”, considerou que a igual dignidade de todos é ainda um sonho por concretizar.

Convidado a presidir à Peregrinação Internacional Aniversária que integra a peregrinação nacional do migrante e do refugiado, o prelado coimbrão afirmou que, “de entre as sombras que obscurecem pessoas e povos, sobressai, na atualidade, a experiência dramática dos refugiados e exilados, devido à guerra, à fome, às perseguições, às injustiças, às políticas totalitárias, às condições de vida desumanas”.

Assim, a realidade das migrações forçadas e a experiência dramática dos refugiados e exilados mereceram especial relevo na homilia de D. Virgílio Antunes na Celebração da Palavra noturna.

Para o também ex-reitor do Santuário, “o facto de, ao longo de todos os períodos da História, sempre ter havido fenómenos semelhantes, não diminui a magnitude do problema nem a responsabilidade da comunidade humana”. Pelo contrário, o bispo defende que a responsabilidade é maior, por se conhecerem as experiências negativas do passado.

Lamentando que, em alguns domínios, se estejam a verificar “muitos retrocessos”, o presidente da peregrinação sublinhou que já não se pode olhar para a vivência dos migrantes e dos refugiados como uma realidade desconhecida. Lembrou que, em Portugal, na Europa e em muitos outros lugares do Mundo, é conhecido o fenómeno das migrações forçadas, não só pelos órgãos de comunicação social, mas também pela experiência pessoal e direta. E exemplificou: “Temos vizinhos que são refugiados e exilados, trabalhamos com eles, encontramo-nos com eles nos mesmos bancos das igrejas e nas mesmas enfermarias dos hospitais, as crianças sentam-se às mesmas carteiras das salas de aula e brincam nos mesmos recreios das escolas.”

Tomando por base a Sagrada Escritura, relevou que, “para Deus, não há estrangeiros, mas somente homens e mulheres que caminham sobre esta terra, uns porventura beneficiados pelas possibilidades de uma vida pacífica e com condições normais para a sua peregrinação, e outros que fogem do passado e almejam um presente e um futuro mais felizes. Para Deus não há estrangeiros, há filhos e filhas”.

O prelado do Mondego trouxe à colação o teor da primeira leitura, extraída do Livro do Deuteronómio, para reforçar o direito do estrangeiro e do pobre e para afirmar que a igual dignidade de todos “é ainda um sonho por concretizar”. E, a partir do Evangelho, partilhou a convicção de que, “em Fátima, não pedimos outro milagre, senão o do amor e o da fraternidade entre os povos, sabendo que é dom de Deus e fruto da nossa oração e da nossa conversão”.

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Nas celebrações do dia 12, que decorreram no Recinto de Oração, participaram cerca de 45 mil peregrinos. Em termos de grupos organizados, fizeram-se anunciar nos serviços do Santuário de Fátima dois de Portugal e 21 de outros países: Alemanha (dois), Bélgica (um), Costa do Marfim (um), Espanha (quatro), Filipinas (um), Irlanda (dois), Itália (dois), Malta (um), Polónia (três), Senegal (um), Sri Lanka (um), Vietname (dois). As celebrações da noite contaram ainda com a presença de três bispos e 59 sacerdotes.

A vigília prolongou-se por toda a noite no Santuário de Fátima.

Nas celebrações da manhã do dia 13 (Terço, Procissão e Missa com Bênção dos doentes e Procissão do Adeus), em que se cumpriu a tradicional oferta do trigo, participaram cerca de 50 mil peregrinos e concelebraram quatro bispos e 90 sacerdotes.

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Na homilia da missa a que presidiu, esta manhã, no Recinto de Oração, o bispo de Coimbra evocou a negra sombra que é a exploração dos migrantes. “O povo migrante crê que Nossa Senhora de Fátima o ajudou a aguentar a dureza da vida e foi o auxílio sem o qual não conseguiria guardar a fé”, disse o presidente da peregrinação, para quem “Fátima continua a ser para os migrantes, reduto de fé, lugar de súplica e de gratidão”.

Esta é a razão pela qual homens e mulheres, de sucessivas gerações, regressam regularmente à Cova da Iria. “Fátima continua a ser para os migrantes, reduto de fé, lugar de súplica e de gratidão a Deus, símbolo de confiança na Virgem Maria e compromisso face ao Evangelho”, vincou.

A atualidade nacional continua marcada pelas migrações. E o presidente da celebração referiu que, assim como os jovens continuam a sair o país, nem sempre “por uma decisão livre e isenta de constrangimentos”, também a Portugal chegam populações provenientes de outros lugares e de contextos culturais e religiosos. Vêm em fuga da pobreza ou da guerra, em busca de novas oportunidades de vida que não encontram nas suas origens. “Também os que chegam têm de enfrentar a novidade do desconhecido em terra estrangeira como fonte de apreensões e, não raro, de imensa solidão”, lembrou o prelado, que trouxe ainda à reflexão a mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, que refere “uma luz que nos guie e uma casa para habitar” como condições essenciais ao caminho de bem-estar e felicidade.

Contudo, por vezes, a luz transforma-se em negras sombras e a casa em lugar de rejeição. “O mundo tem notícia da existência de muitos rostos escondidos que, sem escrúpulos, prometem paraísos aos pobres das periferias do Mundo”, referiu o bispo de Coimbra, para lembrar que, “por detrás de uns milhares de euros ou de dólares, rostos dos que se apresentam como de bons samaritanos acabam por revelar-se rostos de cruéis malfeitores, que abandonam desiludidos à beira do caminho ou os entregam à sua sorte nas vagas do mar, prelúdio de morte ou de embate contra a dura realidade que os espera na praia”.

Já o simbolismo da casa, igualmente presente na mensagem do Papa Francisco, levou o presidente da celebração a partilhar que, por vezes, “a casa, a sociedade, torna-se um lugar de rejeição; a comunidade, um lugar de discriminação; o trabalho, um meio de exploração”; e a sublinhar que “quem tem Cristo como luz e Lhe confia a condução da sua vida, trabalha em favor da hospitalidade, ou seja, dispõe-se a receber com alegria, os irmãos na casa que é a sua terra, a sua cultura, a sua Igreja, a sua economia, o seu trabalho, a sua convivência e a sua amizade”.

A mesma reflexão foi agradecida e partilhada, no final da celebração, por D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e presidente da CEP, ao evocar que Maria acompanhou três crianças “para nos ensinar que é precisamente desses que mais precisam, que nós precisamos de ser guias acolhedores, cuidadores”.

O bispo diocesano trouxe à memória as palavras do Papa Francisco, a 5 de agosto de 2023, na Capelinha das Aparições: “Esta é a imagem da casa da mãe, uma casa que tem colunas e tem um teto para acolher e ser abrigo para quem chega”.

“Rezemos para que o nosso país, esta nossa Europa, para que o Mundo se torne uma habitação destas, acolhedora, para que todos tenham aquilo que é preciso para a sua peregrinação na terra. E rezemos sobretudo pela paz que é uma das marcas deste Santuário”, concluiu.

A celebração, na Cova da Iria, integrou a Peregrinação Nacional dos Migrantes e Refugiados, no âmbito da 52.ª Semana Nacional das Migrações, promovida pela Igreja Católica em Portugal, com o tema ‘Deus caminha com o seu povo’. Por isso, a saudação aos doentes esteve a cargo de Eugénia Quaresma, diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM). “Rezemos pelas políticas de saúde, pelos acordos de cooperação para que sirvam o bem comum com justiça e não se detenham nas fronteiras e nos egoísmos”, apelou, desejando que a Senhora de Fátima ajude todos a sermos “artífices de proximidade e de relações fraternas”.

2024.08.13 – Louro de Carvalho

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