sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Advogados em protesto podem fazer parar processos nos tribunais

 

A comunicação social noticiava, a 13 de agosto, que a Ordem dos Advogados (OA) prometeu lançar diversas ações de protesto, ainda em agosto, porque as negociações com governo sobre a alteração das tabelas de honorários do Sistema de Acesso ao Direito e Tribunais (SADT) para o Orçamento de Estado de 2025 não estão a decorrer com a prioridade que se impõe. Assim, a Ordem abrirá a possibilidade aos advogados de não se manterem inscritos nas escalas do SADT.

O SADT é o sistema permite o acesso aos tribunais aos cidadãos com menor poder económico, para defesa dos seus direitos. Como a Justiça não se pode negar a ninguém, foi criado um sistema sustentado pelo Estado que paga a advogados oficiosos, para defenderem estes casos.

Ora, segundo a OA, a tabela remuneratória dos advogados oficiosos não é atualizada há quase 20 anos. E, por respeito à importância, à essencialidade e à qualidade daquele serviço público prestado pela advocacia, considera urgente a revisão da referida tabela, pois “não há, no país, nenhuma classe ou profissional que, em contrapartida pela prestação de um serviço qualificado, seja paga por valores tão desfasados da realidade atual”.

Nos termos do comunicado enviado às redações, a OA sustenta que as negociações com o Ministério da Justiça [MJ], sobre a alteração da tabela de honorários do SADT, não decorrem com a prioridade que se impõe, não demonstrando aquele Ministério intenção de acomodar essa alteração no Orçamento de Estado para 2025.

Assim, a OA abre a possibilidade de os advogados não se manterem inscritos nas escalas da SADT. E Fernanda de Almeida Pinheiro, bastonária da OA, frisa que um dos serviços públicos essenciais prestados pela advocacia é a realização de escalas, de prevenção ou presenciais, que ocorre todos os dias do ano, “em que os advogados têm de estar disponíveis para se deslocarem ao tribunal e assegurarem a representação dos cidadãos”.

O funcionamento do serviço de escalas depende da prévia inscrição dos advogados num sistema informático gerido pela OA, em que demonstram disponibilidade para o efeito. No caso das escalas de prevenção não presenciais, os advogados, se não forem chamados para nenhum serviço, não recebem qualquer valor, apesar tal prevenção condicionar a sua vida pessoal e profissional.

“Os advogados poderão e deverão, individualmente, caso entendam que a remuneração atual não é proporcional aos serviços prestados, não se inscrever nas escalas presenciais e de prevenção, no âmbito do SADT, dando um sinal claro ao poder político de que a advocacia não está disponível para continuar a trabalhar com os valores de uma tabela que fará, este ano, 20 anos”, vinca a OA.

Em protesto, a OA vai abrir um período extraordinário de inscrições exclusivamente para escalas presenciais e de prevenção para o período de um mês. Esta decisão do Conselho Geral tem por base três grandes vetores: possibilitar a todos os advogados a não inscrição em escalas, até haver sinal claro do MJ de atualização da tabela; ter a não inscrição, caso o profissional assim entenda, o menor impacto possível na atividade económica do advogado, que poderá voltar a inscrever-se, querendo, no final de setembro; e não acarretar nova inscrição nenhum impacto disciplinar. No final de setembro serão abertas, novamente, inscrições para escalas, esperando a OA que, nessa altura, haja “condições” para que os profissionais voltem a inscrever-se “com uma tabela que dignifique o exercício da profissão”.

É de vincar que o SADT está no centro das críticas, visto que quase só indigentes têm acesso aos advogados oficiosos e porque a tabela remuneratória está quase na mesma, há vários anos.

Só em 2022, foram pagos pelo Estado 132,6 milhões de euros em apoio judiciário, o que representa um aumento de quase 50%, nos últimos 10 anos. Em 2023, foram cerca de 140 mil pessoas que recorreram a este serviço. Mais de um terço daquele valor, cerca de 50 milhões, foi pago pelo MJ, em serviços de advogados oficiosos, nomeados pela OA, sendo o restante valor relativo a despesas com perícias do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, a serviços de interpretação e tradução, a atos de notariado (por exemplo, em processos de inventário) e a mediação e arbitragem.

Dados de novembro de 2023 revelam que a Segurança Social (AA) recebe, em média, quase 400 pedidos diários de proteção jurídica da parte de cidadãos sem capacidade para pagar a advogado. A maioria é aceite, mas há milhares de solicitações rejeitadas, todos os anos. Segundo dados do Instituto da Segurança Social (ISS), entre 1 de janeiro de 2018 e 30 de setembro de 2023, foram apresentados 823659 pedidos de proteção jurídica. O pico dos últimos seis anos aconteceu em 2019, com a entrega de 166073 requerimentos. O número caiu abruptamente, para 122642 solicitações, no ano seguinte, com a pandemia de covid-19. Em 2022, foram apresentados 137108 requerimentos e, nos primeiros nove meses deste ano, 106574.

Segundo o Relatório Justiça 2015-2021, do MJ, o número de advogados a que se procedeu ao pagamento de honorários, no âmbito do apoio judiciário, tem vindo a aumentar, ligeiramente, nos últimos seis anos, havendo apenas um decréscimo de 2019 (13607) para 2020 (13564). Em 2021, houve ligeiro aumento do número de advogados, tendo sido contabilizados 13795. No total, em 2021, cerca de 40% da classe estava inscrita no sistema de apoio judiciário.

O mesmo relatório demonstra que um advogado oficioso recebe, em média, 389 euros por cada apoio. Relativamente a apoios judiciários por 100 mil habitantes, são feitos cerca de 1503.

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A 30 de maio, a bastonária da OA garantia que o governo mostrara “total disponibilidade para retomar, quer as negociações relativas à atualização da tabela do SADT, quer a comissão de trabalho relativa ao assunto da previdência. Era o que resultava, de acordo com o site da OA, da reunião da líder dos mais de 37 mil advogados com a secretária de Estado Adjunta e da Justiça, Maria Clara Figueiredo.

Dias antes, quando Fernanda de Almeida Pinheiro completava 500 dias de mandato, a bastonária fazia o balanço desde a sua tomada de posse, a 9 de janeiro de 2023, referindo que, na reunião com a então ministra da Justiça, foram transmitidas as preocupações e posições “relativamente às alterações ao Estatuto da Ordem dos Advogados e ao regime dos Atos Próprios de Advogados e Solicitadores, pugnando para que as mesmas sejam rapidamente revistas e revertidas”, pois, “colocam em causa a segurança jurídica e os direitos, liberdades e garantias das populações”. E acrescentou que o Conselho Geral continua a trabalhar na revisão da tabela remuneratória do SADT e na melhoria das condições de previdência para a Advocacia, reiterando o compromisso contínuo com o reforço da proteção social e com a remuneração justa para todos/as os/as advogados/as que asseguram um serviço essencial para o/a cidadão/ã e para o país.

As negociações e os trabalhos relativos a estas matérias estavam em avançado desenvolvimento quando ocorreu a queda do governo anterior, o que levou à sua estagnação temporária. Porém, a OA teve a confirmação de que os trabalhos e negociações seriam retomados em breve, para que se pudesse chegar a soluções o mais rapidamente possível.

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Segundo Fernanda de Almeida Pinheiro, a OA deixou uma proposta de atualização da tabela, a 7 de maio, na primeira reunião com a ministra da Justiça. Reuniu-se depois com a secretária de Estado Adjunta e da Justiça, em 28 de maio, em 26 de junho e a 1 de agosto, sem que haja uma proposta concreta do governo, que, instado a explicar-se, diz que está a fazer o seu trabalho.

E a bastonária adiantou que lhe foi comunicado que será preciso realizar “mais quatro reuniões”, em setembro, para que o MJ apresente uma proposta sobre o assunto.

“Se precisam de oito reuniões para perceber se isto é acomodável, a OA está preocupada”, contrapôs a bastonária, reiterando que o que é pedido de aumento pela AO, ao fim de 20 anos, são os “mínimos olímpicos”. Esta preocupação, revelou a bastonária, levou a que o Conselho Geral da OA se reunisse até final daquela semana, para adotar medidas, face a esta situação.  

Fernanda de Almeida Pinheiro referiu que a proposta da OA contempla “o mínimo indispensável” e que se traduz numa atualização de 1% ao ano. Como a tabela não é revista há 20 anos, o aumento seria de 20%, mas, de acordo com os cálculos da bastonária, esses 20% não significavam, na prática, um aumento global superior a 50 euros.

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Em suma, a OA decidiu lançar diversas ações de protesto, em agosto, porque as negociações com o governo sobre a alteração das tabelas de honorários do SADT para o Orçamento de Estado de 2025 não decorrem com a prioridade que se impõe. A tabela remuneratória dos advogados oficiosos não é atualizada há quase 20 anos. A OA propôs a atualização da tabela de 1% ao ano (ou seja, 20%). A bastonária teve várias reuniões com o MJ, mas ainda não foi alcançado acordo.

A OA vai abrir a possibilidade de os advogados não se manterem inscritos nas escalas da SADT pelo período extraordinário de um mês, o que pode levar a que dezenas de processos fiquem paralisados, caso se verifique a falta de advogados oficiosos.

Esta ação de protesto está prevista para o período de um mês, mantendo-se inalteradas as inscrições efetuadas para as nomeações para processos, realizadas em novembro de 2023. E, no final de setembro, serão abertas, novamente, inscrições para escalas, esperando a OA que já haja “condições” para que os profissionais possam voltar a inscrever-se com uma nova tabela.

A OA alega que não há nenhuma norma que a proíba de organizar um protesto, pelo que sustenta que pode só não pode parar, unilateralmente, o SADT, impedindo, por sua iniciativa, os advogados de trabalharem, pois isso violaria os Estatutos da Ordem dos Advogados, a Lei do Acesso ao Direito e a Lei Fundamental, podendo originar responsabilidade civil extracontratual.

O MJ assegura que “está a fazer o seu trabalho” e “dará notícias quando chegar o momento”.

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A OA é uma associação pública, representativa dos seus profissionais, regida pelo direito público, livre e autónoma, desempenhando as funções de forma independente dos órgãos do Estado. Na função social, sobressai o seu papel na defesa do Estado de Direito e dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, na colaboração com a administração da Justiça e na garantia do acesso ao direito, nos termos constitucionais. São ainda suas atribuições zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão, promovendo os valores e princípios deontológicos, representar a profissão e defender os interesses, direitos, prerrogativas e imunidades dos seus membros.

Promover o conhecimento e a aplicação do Direito e contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e para aperfeiçoamento do Direito são também suas competências, pelo que é ouvida sobre projetos de diplomas legislativos atinentes à advocacia e ao patrocínio judiciário.

Obviamente, que a tabela remuneratória não pode estar 20 anos sem ser revista. Todavia, é de questionar o motivo por que a OA deixou arrastar a situação até agora.

Por outro lado, há uma questão preocupante. A obrigatoriedade de haver defensor oficioso vem desde que se convencionou que todo o arguido (antes, réu) tem direito à defesa. É o advogado designado pela autoridade judiciária (Ministério Público ou juiz) para defender o arguido; a designação pode ser feita oficiosamente ou a requerimento. Aquando do despacho de acusação, é obrigatório nomear defensor, se o arguido não o tiver constituído. Contudo, no Estado Novo, em pequenas comarcas, quando o acusado não tinha advogado, o tribunal nomeava alguém que podia não ser advogado, bastando que tivesse um curso superior ou equivalente. Tal defensor, que não conhecia o processo, limitava-se a proclamar a fórmula: “Peço justiça!”

Por isso, pergunto se aos advogados inscritos na dita escala, é distribuído, atempadamente, o processo que são chamados a defender, para o estudarem, e se têm capacidade (e a usam) para todas as hipóteses que a lei processual permita: reclamação, recursos, aclarações, etc. Não afirmo: pergunto. A serem figuras necessárias por lei, mas quase decorativas, na prática, pouco importa que os honorários sejam revistos ou não. É que “peço justiça” todo o cidadão o pensa e o diz.

2024.08.16 – Louro de Carvalho

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