sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A CPI sobre o caso das gémeas tem especial interesse político

Não percebo o furor levantado relativamente à comissão parlamentar de inquérito (CPI) em curso, sobre o caso das gémeas luso-brasileiras que, supostamente, foram objeto de tratamento preferencial no Hospital de Santa Maria, já que foi constituída ao abrigo do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP), nomeadamente, para matéria inscrita no n.º 2 do artigo 1.º.   

Dá-me a impressão de que há, nesta atitude contra os deputados que integram a referida CPI, uma animosidade, ainda não resolvida, para com o partido que tomou a iniciativa. É óbvio que não me revejo, de modo nenhum, na ideologia e no comportamento parlamentar, político e social do partido em causa, muito menos nos ataques que fez ao Presidente da República (PR), a propósito da sugestão de reparação pelos erros do colonialismo e das atitudes esclavagistas em terras “descobertas” ou “conquistadas”. Porém, não devo misturar as coisas. Além disso, a CPI segue os termos legais e tem interesse político. E, se há excessos, os elementos que integram a Comissão, que é constituída em termos proporcionais à representação parlamentar dos diversos partidos, têm a faculdade e o dever de impor moderação e cortesia. Assim, eventuais erros, nomeadamente, no respeitante aos direitos dos cidadãos e ao âmago da vida privada, não havendo razões de força maior, não podem ser assacados, em exclusivo, ao partido que requereu a CPI.

Parece haver, também, excessiva e descabida solidariedade para com certas figuras públicas, alvo da CPI e cuja probidade alguns querem preservar, por a acharem intocável, no quadro do politicamente correto. Contudo, esta CPI é tão relevante, do ponto de vista político (não do ponto de vista justiçoso, que não este o foro), como tantas que mereceram encómios da generalidade dos observadores, tendo feito subir à ribalta o modo como negócios públicos ou de interesse público têm sido lançados e geridos de forma tão medíocres e, às vezes, de forma tão desastrosa.        

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RJIP foi aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1 de março, alterada pelas Leis n.os 126/97, de 10 de dezembro, 15/2007, de 3 abril, 29/2019, de 23 de abril, e 30/2024, de 30 de abril.

A decisão de realizar um inquérito parlamentar é tomada pelo plenário da Assembleia da República (AR), que aprova a constituição da CPI, através da qual este será concretizado. Trata-se de um instrumento de fiscalização da AR, que tem “por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do governo e da Administração” e que pode “ter por objeto qualquer matéria de interesse público relevante para o exercício das atribuições” da AR.

É obrigatória a constituição de CPI, quando solicitada a requerimento de um quinto dos deputados em efetividade de funções, até ao limite de um por deputado e por sessão legislativa.

A composição da comissão deve ser proporcional à representatividade dos grupos parlamentares, devendo o número de membros e a sua distribuição pelos diversos grupos parlamentares ser fixados por deliberação da AR, sob proposta do presidente, ouvida a Conferência de Líderes, a qual deve mencionar, no caso de serem os requerentes do inquérito, os deputados únicos representantes de um partido que integram a comissão.

As reuniões e diligências efetuadas pelas CPI são, em regra, públicas, salvo se a Comissão, assim o não entender, por deliberação tomada em reunião pública e devidamente fundamentada num dos seguintes motivos: as reuniões e diligências tiverem por objeto matéria sujeita a segredo de Estado, a segredo de justiça ou a sigilo por razões de reserva da intimidade das pessoas; os depoentes se opuserem à publicidade da reunião, com fundamento na salvaguarda de direitos fundamentais; e as reuniões e diligências colocarem em perigo o segredo das fontes de informação, salvo autorização dos interessados.

O presidente da AR comunica ao procurador-geral da República o conteúdo da resolução ou a parte dispositiva do requerimento que determine a realização do inquérito. O procurador-geral da República informa a AR se, com base nos mesmos factos, se encontra em curso algum processo criminal e em que fase. Caso exista processo criminal em curso, cabe à AR deliberar sobre a eventual suspensão do processo de inquérito parlamentar até ao trânsito em julgado da correspondente sentença judicial. De facto, não há arguidos pronunciados para julgamento.

Algumas das caraterísticas mais relevantes das CPI são a de gozarem “dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados”, terem “direito à coadjuvação das autoridades judiciárias, dos órgãos da polícia criminal e das autoridades administrativas, nos mesmos termos que os tribunais” e poderem pedir, por escrito, “ao governo, às autoridades judiciárias, aos órgãos da administração ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito”, os quais deverão ser obrigatoriamente remetidos no prazo de 10 dias. A não comparência na CPI, quando haja convocação para prestação de depoimento, a recusa de depoimento ou o não envio dos documentos ou informações solicitados, constituem “crime de desobediência qualificada para os efeitos previstos no Código Penal”. Ocorrendo algum destes factos, o presidente da CPI deve comunicá-los ao presidente da AR, “com os elementos indispensáveis à instrução do processo, para efeitos de participação à Procuradoria-Geral da República”.

Os trabalhos terminam com a aprovação do Relatório Final, de que constam, designadamente, os depoimentos e os documentos obtidos pela Comissão, sejam eles públicos ou estejam eles sujeitos a reserva e/ou confidencialidade, e as conclusões e os seus fundamentos. Porém, a matéria confidencial não poderá ser publicitada, pelo que não integrará o Relatório que for disponibilizado ao público. Deverá, entretanto, ser remetida à Procuradoria-Geral da República para eventual instauração de inquérito judicial, ou para ser carreada para processo que esteja já em curso.

O trabalho desenvolvido pelas CPI suscita, em regra, o interesse dos meios de comunicação social, criando-se, assim, condições para alargado debate na sociedade civil e para o envolvimento da opinião pública na discussão de matérias que são da maior relevância para os cidadãos.

Importa ter presente que as CPI, enquanto órgãos da AR, levam a cabo uma atividade de fiscalização política e não judicial, não podendo a Comissão ordenar, por exemplo, a detenção do faltoso, para assegurar a sua comparência, uma busca e apreensão de documentos ou a aplicação de sanções, pois tais competências cabem apenas às autoridades judiciais.

Muito importante é a atividade legislativa que pode vir a resultar das conclusões aprovadas por estas Comissões, e este aspeto inscreve-se diretamente nas competências política e legislativa, constitucionalmente fixadas para a AR. De facto, além de ser frequente o Relatório Final ser seguido da apresentação de projetos de resolução, da parte dos grupos parlamentares, podem igualmente ser apresentados projetos de lei que venham ao encontro das dificuldades que tenham sido identificadas, seja propondo a criação de normas inovadoras, seja sugerindo a alteração de procedimentos que demonstraram não ser eficazes ou adequados.

É certo que, em regra, o Relatório Final reflete a ótica da força parlamentar maioritária; e, se esta não existir, o documento é aprovado com base numa redação de compromisso, podendo nada resultar em termos de projeto de resolução ou de projeto de lei. No entanto, a opinião pública fica na posse de verdades que, dantes, estavam no segredo das administrações ou dos homens de negócios do Estado ou negócios privados com interesse público. Por exemplo, ficámos a saber coisa impensáveis sobre o Grupo Espírito Santo, sobre a Caixa Geral de Depósitos e sobre a TAP.

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Talvez não houvesse lugar à CPI, se os principais apontados tivessem, de início, assumido os factos, pelo lado humanitário, e o erro, tendo pedido desculpas públicas. Contudo, ficámos a saber coisas algo mirabolantes. Desde logo, o secretário de Estado da Saúde revelou, na AR, que nunca falara, sobre o caso, com o PR ou com a ministra da Saúde e que não se lembrava de qualquer diligência da sua secretária, com quem não falara, há muito tempo. Disse ter recebido Nuno Rebelo de Sousa (NRS) em reunião que lhe fora solicitada para apresentação de cumprimentos. Porém, garantiu que não exerceu qualquer pressão e que ninguém ficou para trás.

NRS disse ter contactado o secretário de Estado e a Presidência da República, porque os cidadãos têm direito a ser recebidos pelos órgãos de soberania, mas esqueceu que estes devem dar a resposta adequada e que os cidadãos, para serem recebidos em tribunal, de pagam e constituem advogado.

A assessora da Presidência da República para os assuntos sociais admitiu ter telefonado para o Hospital da Estefânia, não para o de Santa Maria. Questionada sobre o teor de um determinado e-mail, alegou que se terá perdido (estranho um documento de serviço perder-se!) Pelos vistos, já apareceu e foi enviado à CPI com outros documentos.

O chefe da Casa Civil da Presidência da República revelou à CPI que, no encaminhamento do material organizado nos seus serviços e enviado ao gabinete do primeiro-ministro (PM), omitira, deliberadamente, o nome de NRS. É de questionar o motivo por que procedeu a tal omissão deliberada. Porém, disse outra coisa pior, do meu ponto de vista. O caso das gémeas é um dos muitos casos de pedidos que chegam à Presidência da República, sendo a todos dado o mesmo tipo de encaminhamento: envio ao gabinete do PM, que reencaminha para a respetiva tutela. Quer dizer: as estruturas públicas têm dificuldades em garantir oportuno e eficaz serviço aos cidadãos. Porém, se os cidadãos se dirigirem à Presidência da República, terão a certeza de que serão atendidos a tempo e horas.

Ora, nada obsta, do meu ponto de vista, que o PR ouça os cidadãos, mas a provedoria não é a sua missão. Para isso, existe a Provedoria de Justiça, com a missão de, a pedido dos cidadãos ou por iniciativa própria, analisar o que se passa nas administrações públicas e fazer as críticas e as recomendações que entender. Um despacho “neutro” da Presidência da República pode levar a administração a agir por indevido temor reverencial. No entanto, houve carta de protesto de médicos do Hospital de Santa Maria, devido à pressão exercida pela sua administração.

O ex-chefe de gabinete do PM (ao tempo) referiu ter conhecido o caso pela comunicação social, no início de novembro de 2023. Quer isso dizer que não controlava o seu expediente.

Uma das médicas que trataram do caso trabalhava no Hospital de Santa Maria e no Hospital d’Os Lusíadas, pelos vistos o hospital com que tem acordo a AMIL, a seguradora de que a mãe das gémeas é cliente. Por isso, a CPI quer saber se, além do favor às gémeas, a seguradora teve poupanças com o tratamento gratuito em Portugal.

A ex-secretária de Lacerda Sales pediu para ser ouvida à porta fechada. Terá medo de represálias? É óbvio que o depoente não tem obrigação de declarar o que os deputados querem ouvir. E, embora o convocado seja obrigado a comparecer, pode não responder a uma ou outra questão. Houve tantos que não sabiam, não se lembravam ou tinham memória difusa!

Por fim, vem a questão do chefe de Estado. É óbvio que os deputados não têm o direito de lhe exigir a comparência na CPI, nem qualquer depoimento oral ou escrito, pois não responde politicamente perante a AR. Portanto, se não quer responder, não responde. Contudo, deveria tê-lo dito já e não se guardar para depois de todos os outros depoentes serem ouvidos.

Não alinho com os que alegam a separação de poderes. Aliás, o atual PR tem sido aquele que mais deixa em dúvida a não interferência sobre outros poderes (até de forma pública e explícita). Nem está em causa a sua destituição por via parlamentar (além de ser inconstitucional, a não ser no caso arcaico da ausência sem autorização da AR). Todavia, já que o PR foi apontado como estando na mediação entre o filho e o governo, no caso, bem poderia dar uma explicação à AR.

O chefe de Estado só responde judicialmente perante o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Porém, se a AR detetar indícios de crime de responsabilidade na ação presidencial, poderá, em votação no plenário, desencadear o respetivo processo junto do STJ.  

Por tudo, a CPI em curso tem interesse político. Corrijam-se os abusos, mas não se peça à Casa da Democracia que pare para pensar, como querem alguns.

2024.08.02 – Louro de Carvalho

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