Não percebo o furor levantado relativamente à comissão parlamentar de inquérito (CPI) em curso, sobre o caso das gémeas luso-brasileiras que, supostamente, foram objeto de tratamento preferencial no Hospital de Santa Maria, já que foi constituída ao abrigo do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP), nomeadamente, para matéria inscrita no n.º 2 do artigo 1.º.
Dá-me a impressão de que há, nesta atitude contra os
deputados que integram a referida CPI, uma animosidade, ainda não resolvida,
para com o partido que tomou a iniciativa. É óbvio que não me revejo, de modo
nenhum, na ideologia e no comportamento parlamentar, político e social do
partido em causa, muito menos nos ataques que fez ao Presidente da República
(PR), a propósito da sugestão de reparação pelos erros do colonialismo e das
atitudes esclavagistas em terras “descobertas” ou “conquistadas”. Porém, não
devo misturar as coisas. Além disso, a CPI segue os termos legais e tem
interesse político. E, se há excessos, os elementos que integram a Comissão,
que é constituída em termos proporcionais à representação parlamentar dos
diversos partidos, têm a faculdade e o dever de impor moderação e cortesia.
Assim, eventuais erros, nomeadamente, no respeitante aos direitos dos cidadãos
e ao âmago da vida privada, não havendo razões de força maior, não podem ser
assacados, em exclusivo, ao partido que requereu a CPI.
Parece haver, também, excessiva e descabida
solidariedade para com certas figuras públicas, alvo da CPI e cuja probidade
alguns querem preservar, por a acharem intocável, no quadro do politicamente
correto. Contudo, esta CPI é tão relevante, do ponto de vista político (não do
ponto de vista justiçoso, que não este o foro), como tantas que mereceram
encómios da generalidade dos observadores, tendo feito subir à ribalta o modo
como negócios públicos ou de interesse público têm sido lançados e geridos de
forma tão medíocres e, às vezes, de forma tão desastrosa.
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O RJIP
foi aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1 de março, alterada pelas Leis n.os
126/97, de 10 de dezembro, 15/2007, de 3 abril, 29/2019, de 23 de abril, e
30/2024, de 30 de abril.
A decisão de realizar um inquérito parlamentar é
tomada pelo plenário da Assembleia da República (AR), que aprova a constituição
da CPI, através da qual este será concretizado. Trata-se de um instrumento de fiscalização
da AR, que tem “por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e
apreciar os atos do governo e da Administração” e que pode “ter por objeto
qualquer matéria de interesse público relevante para o exercício das atribuições”
da AR.
É obrigatória a constituição de CPI, quando solicitada
a requerimento de um quinto dos deputados em efetividade de funções, até ao
limite de um por deputado e por sessão legislativa.
A composição da comissão deve ser proporcional à
representatividade dos grupos parlamentares, devendo o número de membros e a
sua distribuição pelos diversos grupos parlamentares ser fixados por deliberação
da AR, sob proposta do presidente, ouvida a Conferência de Líderes, a qual deve
mencionar, no caso de serem os requerentes do inquérito, os deputados únicos
representantes de um partido que integram a comissão.
As reuniões e diligências efetuadas pelas CPI são, em
regra, públicas, salvo se a Comissão, assim o não entender, por deliberação
tomada em reunião pública e devidamente fundamentada num dos seguintes motivos:
as reuniões e diligências tiverem por objeto matéria sujeita a segredo de
Estado, a segredo de justiça ou a sigilo por razões de reserva da intimidade
das pessoas; os depoentes se opuserem à publicidade da reunião, com fundamento
na salvaguarda de direitos fundamentais; e as reuniões e diligências colocarem
em perigo o segredo das fontes de informação, salvo autorização dos
interessados.
O presidente da AR comunica ao procurador-geral da
República o conteúdo da resolução ou a parte dispositiva do requerimento que
determine a realização do inquérito. O procurador-geral da República informa a
AR se, com base nos mesmos factos, se encontra em curso algum processo criminal
e em que fase. Caso exista processo criminal em curso, cabe à AR deliberar
sobre a eventual suspensão do processo de inquérito parlamentar até ao trânsito
em julgado da correspondente sentença judicial. De facto, não há arguidos pronunciados
para julgamento.
Algumas das caraterísticas mais relevantes das CPI são
a de gozarem “dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas
não estejam constitucionalmente reservados”, terem “direito à coadjuvação das
autoridades judiciárias, dos órgãos da polícia criminal e das autoridades
administrativas, nos mesmos termos que os tribunais” e poderem pedir, por
escrito, “ao governo, às autoridades judiciárias, aos órgãos da administração
ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à
realização do inquérito”, os quais deverão ser obrigatoriamente remetidos no
prazo de 10 dias. A não comparência na CPI, quando haja convocação para
prestação de depoimento, a recusa de depoimento ou o não envio dos documentos
ou informações solicitados, constituem “crime de desobediência qualificada para
os efeitos previstos no Código Penal”. Ocorrendo algum destes factos, o
presidente da CPI deve comunicá-los ao presidente da AR, “com os elementos
indispensáveis à instrução do processo, para efeitos de participação à
Procuradoria-Geral da República”.
Os trabalhos terminam com a aprovação do Relatório
Final, de que constam, designadamente, os depoimentos e os documentos obtidos
pela Comissão, sejam eles públicos ou estejam eles sujeitos a reserva e/ou
confidencialidade, e as conclusões e os seus fundamentos. Porém, a matéria
confidencial não poderá ser publicitada, pelo que não integrará o Relatório que
for disponibilizado ao público. Deverá, entretanto, ser remetida à
Procuradoria-Geral da República para eventual instauração de inquérito
judicial, ou para ser carreada para processo que esteja já em curso.
O trabalho desenvolvido pelas CPI suscita, em regra, o
interesse dos meios de comunicação social, criando-se, assim, condições para alargado
debate na sociedade civil e para o envolvimento da opinião pública na discussão
de matérias que são da maior relevância para os cidadãos.
Importa ter presente que as CPI, enquanto órgãos da AR,
levam a cabo uma atividade de fiscalização política e não judicial, não podendo
a Comissão ordenar, por exemplo, a detenção do faltoso, para assegurar a sua comparência,
uma busca e apreensão de documentos ou a aplicação de sanções, pois tais
competências cabem apenas às autoridades judiciais.
Muito importante é a atividade legislativa que pode
vir a resultar das conclusões aprovadas por estas Comissões, e este aspeto
inscreve-se diretamente nas competências política e legislativa, constitucionalmente
fixadas para a AR. De facto, além de ser frequente o Relatório Final ser
seguido da apresentação de projetos de resolução, da parte dos grupos parlamentares,
podem igualmente ser apresentados projetos de lei que venham ao encontro das
dificuldades que tenham sido identificadas, seja propondo a criação de normas
inovadoras, seja sugerindo a alteração de procedimentos que demonstraram não ser
eficazes ou adequados.
É certo que, em regra, o Relatório Final reflete a
ótica da força parlamentar maioritária; e, se esta não existir, o documento é
aprovado com base numa redação de compromisso, podendo nada resultar em termos
de projeto de resolução ou de projeto de lei. No entanto, a opinião pública
fica na posse de verdades que, dantes, estavam no segredo das administrações ou
dos homens de negócios do Estado ou negócios privados com interesse público.
Por exemplo, ficámos a saber coisa impensáveis sobre o Grupo Espírito Santo,
sobre a Caixa Geral de Depósitos e sobre a TAP.
***
Talvez não houvesse lugar à CPI, se os principais
apontados tivessem, de início, assumido os factos, pelo lado humanitário, e o
erro, tendo pedido desculpas públicas. Contudo, ficámos a saber coisas algo
mirabolantes. Desde logo, o secretário de Estado da Saúde revelou, na AR, que
nunca falara, sobre o caso, com o PR ou com a ministra da Saúde e que não se lembrava
de qualquer diligência da sua secretária, com quem não falara, há muito tempo. Disse
ter recebido Nuno Rebelo de Sousa (NRS) em reunião que lhe fora solicitada para
apresentação de cumprimentos. Porém, garantiu que não exerceu qualquer pressão e
que ninguém ficou para trás.
NRS disse ter contactado o secretário de Estado e a Presidência
da República, porque os cidadãos têm direito a ser recebidos pelos órgãos de
soberania, mas esqueceu que estes devem dar a resposta adequada e que os
cidadãos, para serem recebidos em tribunal, de pagam e constituem advogado.
A assessora da Presidência da República para os
assuntos sociais admitiu ter telefonado para o Hospital da Estefânia, não para
o de Santa Maria. Questionada sobre o teor de um determinado e-mail, alegou que se terá perdido (estranho
um documento de serviço perder-se!) Pelos vistos, já apareceu e foi enviado à
CPI com outros documentos.
O chefe da Casa Civil da Presidência da República
revelou à CPI que, no encaminhamento do material organizado nos seus serviços e
enviado ao gabinete do primeiro-ministro (PM), omitira, deliberadamente, o nome
de NRS. É de questionar o motivo por que procedeu a tal omissão deliberada. Porém,
disse outra coisa pior, do meu ponto de vista. O caso das gémeas é um dos
muitos casos de pedidos que chegam à Presidência da República, sendo a todos
dado o mesmo tipo de encaminhamento: envio ao gabinete do PM, que reencaminha
para a respetiva tutela. Quer dizer: as estruturas públicas têm dificuldades em
garantir oportuno e eficaz serviço aos cidadãos. Porém, se os cidadãos se dirigirem
à Presidência da República, terão a certeza de que serão atendidos a tempo e
horas.
Ora, nada obsta, do meu ponto de vista, que o PR ouça
os cidadãos, mas a provedoria não é a sua missão. Para isso, existe a Provedoria
de Justiça, com a missão de, a pedido dos cidadãos ou por iniciativa própria,
analisar o que se passa nas administrações públicas e fazer as críticas e as
recomendações que entender. Um despacho “neutro” da Presidência da República
pode levar a administração a agir por indevido temor reverencial. No entanto,
houve carta de protesto de médicos do Hospital de Santa Maria, devido à pressão
exercida pela sua administração.
O ex-chefe de gabinete do PM (ao tempo) referiu ter conhecido
o caso pela comunicação social, no início de novembro de 2023. Quer isso dizer que
não controlava o seu expediente.
Uma das médicas que trataram do caso trabalhava no
Hospital de Santa Maria e no Hospital d’Os Lusíadas, pelos vistos o hospital
com que tem acordo a AMIL, a seguradora de que a mãe das gémeas é cliente. Por
isso, a CPI quer saber se, além do favor às gémeas, a seguradora teve poupanças
com o tratamento gratuito em Portugal.
A ex-secretária de Lacerda Sales pediu para ser ouvida
à porta fechada. Terá medo de represálias? É óbvio que o depoente não tem obrigação
de declarar o que os deputados querem ouvir. E, embora o convocado seja
obrigado a comparecer, pode não responder a uma ou outra questão. Houve tantos
que não sabiam, não se lembravam ou tinham memória difusa!
Por fim, vem a questão do chefe de Estado. É óbvio que
os deputados não têm o direito de lhe exigir a comparência na CPI, nem qualquer
depoimento oral ou escrito, pois não responde politicamente perante a AR.
Portanto, se não quer responder, não responde. Contudo, deveria tê-lo dito já e
não se guardar para depois de todos os outros depoentes serem ouvidos.
Não alinho com os que alegam a separação de poderes.
Aliás, o atual PR tem sido aquele que mais deixa em dúvida a não interferência
sobre outros poderes (até de forma pública e explícita). Nem está em causa a
sua destituição por via parlamentar (além de ser inconstitucional, a não ser no
caso arcaico da ausência sem autorização da AR). Todavia, já que o PR foi
apontado como estando na mediação entre o filho e o governo, no caso, bem
poderia dar uma explicação à AR.
O chefe de Estado só responde judicialmente perante o
Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Porém, se a AR detetar indícios de crime de responsabilidade
na ação presidencial, poderá, em votação no plenário, desencadear o respetivo
processo junto do STJ.
Por tudo, a CPI em curso tem interesse político. Corrijam-se
os abusos, mas não se peça à Casa da Democracia que pare para pensar, como
querem alguns.
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