terça-feira, 20 de agosto de 2024

Maria Sibylla Merian, a mulher que descobriu a metamorfose

 

Nasceu, no século XVII e viveu ainda no século XVIII, a alemã Maria Sibylla Merian, que se propôs investigar o universo dos insetos, desenvolvendo uma forma diferente de pensar e de olhar a Natureza, pelo que é considerada a primeira ecologista do Mundo, mercê dos seus feitos, quando pouca gente desbravava o continente americano, abaixo da linha do Equador.

Aos 52 anos de idade, deixou a Europa e partiu para uma perigosa aventura na América do Sul, para pormenorizar os ciclos de vida de borboletas, de mariposas e de outros insetos.

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Maria Merian, nascida na Cidade Livre de Frankfurt, a 2 de abril de 1647, naturalista e ilustradora científica estudou plantas e insetos, do que fez pinturas detalhadas. Era descendente do ramo suíço da família Merian e foi uma das primeiras naturalistas a observar insetos, diretamente.

Era filha do gravurista Mattäus Merian, o Velho, que morreu, em 1650, quando ela tinha apenas três anos. A mãe, Johanna Sibila Heim, era a segunda esposa de Matthäus Merian. E Maria Sibylla era a nona filha do casal. Mais tarde, Jakob Marell, o padrasto, famoso pelas suas pinturas de flores, estimulou as artes em Maria e ensinou-lhe como desenhar e como pintar.

Assim, o conhecimento científico de Sibylla começou com o seu padrasto, Jacob Marrel, estudante e aprendiz do pintor Georg Flegel. Enfim, nascera numa família de editores, de escultores e de comerciantes, tendo cedo aprendido a arte da ilustração.

Aos 13 anos, pintou os seus primeiros quadros de insetos e de plantas, baseando-se nos espécimes que capturava. Desde pequena, teve acesso a livros de História Natural, essenciais na sua carreira posterior. E, mais tarde, contava que, na sua juventude, passara tempo a investigar insetos. No início, começou com o bicho-da-seda, na sua cidade natal, e percebeu que as lagartas produziam lindas borboletas ou mariposas e que os bichos-da-seda faziam o mesmo. Isso levou-a a recolher todas as lagartas que encontrasse, para ver como elas mudavam.

O seu primeiro livro foi lançado em 1675, aos 28 anos de idade, com várias ilustrações naturais. Na adolescência começou a colecionar insetos e aos 13 anos criava bichos-da-seda. Em 1679, publicou o primeiro de dois volumes, sobre lagartas, e publicou o segundo, em 1683. Cada volume continha 50 pranchas gravadas e destacadas por si. Além da ilustração, também documentou os processos de metamorfose e as plantas hospedeiras de 186 espécies de insetos da Europa, com ilustrações e descrições dos respetivos ciclos de vida.

Em maio de 1665, casou com o aprendiz de Marrel, Johann Andreas Graff, de Nuremberg, cujo pai era poeta e diretor da escola local de ensino médio, uma das principais escolas do século XVII, na Alemanha. Em janeiro de 1668, nasceu a primeira filha do casal, Johanna Helena Herolt. A família mudar-se-ia para Nuremberg, em 1670. Maria continuou os seus estudos e as suas ilustrações, trabalhando principalmente com linho e com pergaminho, criando padrões para bordados. Deu aulas de desenho a filhas solteiras de famílias ricas, o que ajudou, financeiramente, a família e elevou o seu status social.

Trabalhando com famílias ricas, teve acesso a ricos jardins mantidos pela elite de Nuremberg, onde continuou a colecionar insetos e a desenhar. Em 1675, ingressou na academia de Joachim von Sandrat. E, além de pintar flores, fez gravuras e impressões em cobre. Foi como estudante da escola de Sandrart que publicou os seus primeiros livros com flores.

Em 1678, nasceu a sua segunda filha, Dorothea Maria.

Ainda que outras pintoras suas contemporâneas, como Margaretha de Heer, incluíssem insetos nas suas ilustrações de plantas e flores, apenas Maria Merian fazia estudos científicos dos insetos. Outras mulheres colecionavam borboletas, mas o naturalismo amador era privilégio masculino, quase em exclusivo. Em 1679, publicou o seu primeiro livro sobre insetos, uma edição em dois volumes que focava na metamorfose de insetos.

Em 1678, a família mudou-se, novamente, para Frankfurt am Main, mas o seu casamento era infeliz. Acabou por se mudar para viver com a mãe, após a morte do padrasto, em 1681. Em 1683, viajou para Gottorp, onde se interessou pela comunidade labadista. Esta comunidade professava a doutrina do teólogo protestante francês Jean de Labadie, que preconizava o retorno aos usos da Igreja primitiva, com a comunidade dos bens, e pretendia que a Bíblia só podia ser interpretada pela inspiração imediata do Espírito Santo.

Em 1685, viaja com a mãe, com o marido e com as filhas, para Friesland, onde Caspar, seu meio-irmão, morava desde 1677. De 1685 a 1691, a família e a mãe moram com a comunidade labadista, onde Maria Merian estuda História Natural e Latim, idioma dos livros científicos, observando o nascimento e o desenvolvimento de sapos, coligindo e dissecando alguns.

Em 1699, viajou para o Suriname, ainda colónia holandesa, para estudar e registar diversos insetos tropicais. Em 1705, publicou Metamorphosis insectorum Surinamensium (Metamorfose de insetos surinameses), que influenciou diversos naturalistas da época, com as suas vívidas imagens coloridas de animais do Novo Mundo. Devido à sua cuidadosa e detalhista observação e registo da metamorfose da borboleta, é considerada por David Attenborough, naturalista britânico, uma das mais importantes estudiosas da entomologia. Foi a grande entomóloga da sua geração, elevando o conhecimento sobre insetos, na época, pelos seus estudos e ilustrações.

Em 1690, morreu a mãe. No ano seguinte, mudou-se, com as filhas, para Amsterdão. Em 1692, o casal Merian divorciou-se. Nesse ano, Johanna casou com Jakob Hendrik Herolt, bem-sucedido comerciante do Suriname. A pintora Rachel Ruysch tornou-se aprendiz de Maria Merian. O modo que encontrou para sobreviver foi vender as suas pinturas junto de Johanna para um colecionador.

Em 1698, vivia numa boa casa, na rua Kerkstraat, no centro de Amesterdão. E, em 1699, a cidade concedeu-lhe autorização para viajar ao Suriname, com a sua filha mais nova, Dorothea Maria. A 10 de julho, as duas embarcaram no porto da cidade, com o objetivo de passarem cinco anos a ilustrar novas espécies de insetos. Para financiar a sua expedição, vendeu 255 das suas pinturas. Porém, embora não tivesse contrato com nenhuma empresa ou corporação comercial, parte da sua expedição foi financiada pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.

Maria e a filha chegaram, em setembro do mesmo ano, ao Suriname, país vizinho da Venezuela e do Brasil, onde conheceram o governador, Paulus van der Veen. Trabalhou lá durante dois anos, viajando pela colónia, desenhando animais e plantas, registando nomes locais nativos de plantas e descrevendo os seus usos medicinais. Maria não foi bem recebida pelos comerciantes da colónia, que achavam não haver nada de interessante para ser registado. E ela condenou o tratamento cruel dado aos escravizados, tendo consultado muitos deles para os seus registos.

Em junho de 1701, Maria Merian contraiu  a malária e foi forçada a voltar para Amesterdão, onde abriu uma loja, onde vendia espécimes, pinturas, gravuras e livros sobre a vida local do Suriname. Em 1705, publicou o livro Metamorphosis Insectorum Surinamensium, já referido.

Em 1715, Maria sofreu um AVC e, mesmo parcialmente paralisada, continuou a trabalhar, até falecer, a 13 de janeiro de 1717, em Amesterdão, aos 69 anos. Foi sepultada no cemitério de Leiden. O livro Erucarum Ortus Alimentum et Paradoxa Metamorphosis (Incremento do nascimento das lagartas e paradoxos da metamorfose), uma coleção dos seus trabalhos, foi publicado, postumamente, pela sua filha Dorothea.

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Maria Merian começou a interessar-se pelos insetos, no jardim da sua casa, ainda na infância. Aos 13 anos, pintou o ciclo de vida de um bicho-da-seda, quando o comércio da seda era muito importante em Frankfurt. Para registar em imagens o bicho-da-seda, fez uma pesquisa meticulosa e anotou tudo o que prejudicava e ajudava a sua ‘criação de lagartas’. Colocou as lagartas em cones de papel, para neles serem tecidos os casulos, e alimentou-as com alface, por não conseguir folhas de amoreira. Nas anotações, questionava se era melhor oferecer folhas molhadas ou secas e se as tempestades faziam diferença na evolução dos casulos.  

A observação cautelosa resultou numa série completa de desenhos de todo o ciclo: ovos, lagartas, pupas, e, finalmente, borboletas e mariposas. E o interesse da infância transformou-se em paixão de toda uma vida. O casamento e a maternidade não lhe diminuíram o fascínio pelos insetos. Passava horas a investigar o próprio jardim e convencia amigos a darem-lhe acesso a parques. Os seus registos descreviam o que observava: “grandes números de lagartas douradas, amarelas e pretas, na grama do poço da Universidade de Nuremberg”. O interesse por ciclos completos é claro nas anotações. Numa delas, escreveu: “Encontrei uma grande quantidade de limo verde nas folhas verdes dos lírios dourados. Toquei com a minha vara e parecia que as folhas estavam a apodrecer, e então encontrei muitas criaturas pequenas, vermelhas, semelhantes ao besouro na concha. Pequenos. Levei vários deles para investigar o que eles se tornarão.”

Embora, na sua época, fosse comum pintar flores e insetos para ornar porcelanas e outros objetos, era atípico o interesse sobre como os bichos viviam, se reproduziam e se desenvolviam. Poucos faziam de tudo para os observarem na Natureza e para analisarem como se desenvolviam.

Em 1670, Merian publicou o livro A maravilhosa transformação e peculiar alimentação das lagartas, uma obra ilustrada com 50 telas de borboletas em todas as fases do ciclo e com as plantas das quais se alimentavam. No prefácio, Merian afirmou: “Todas as lagartas, sempre quando as borboletas se acasalam de antemão, emergem dos seus ovos.” As suas descobertas, registadas em texto e em imagens a metamorfose, passaram quase despercebidas. O livro estava escrito em alemão, pois, ao tempo, o idioma da ciência era o Latim. Ainda assim, a obra vendeu bem, a ponto de lhe garantir uma renda que lhe permitiu embarcar em demanda de mais detalhes dos insetos.

A alemã tinha visto insetos da América do Sul em coleções europeias e viajou decidida a observar algo mais: as coisas que não existiam no seu jardim europeu e que não haviam sido catalogadas. Mãe e filha ficaram dois anos no Suriname. Viajaram pelo interior do país, explorando e desenhando, não apenas insetos como também cenas da vida real.

Apesar do calor tropical e da humidade, Maria Merian continuava a usar as roupas europeias, com anágua e espartilho. Vestida assim, desbravava a selva amazónica à procura de lagartas. Fez isso mais de um século antes de Charles Darwin fazer fama ao cruzar o Atlântico.

Os seus desenhos no Suriname, tal como os que fizera na Europa, destoavam dos trabalhos da época. Em vez de fazer associações religiosas, comuns ao tempo, descreveu o que via. E, enquanto alguns pesquisadores tentavam separar e catalogar espécies, ela procurava o que os animais tinham em comum e tentava descobrir como faziam para sobreviverem.

Os registos de Merian ainda hoje são considerados os mais completos de algumas espécies do Suriname. As suas ilustrações e anotações podem ser usadas para se entender como os insetos se adaptaram às mudanças climáticas, nos últimos 300 anos, uma vez que ela desbravou o Suriname, antes de muitas intervenções humanas. O seu trabalho continua a ser relevante para o universo académico e para a preservação do meio ambiente. Por isso, muitos a consideram a primeira ecologista. Além disso, os desenhos e escritos da alemã que descobriu a metamorfose deitaram por terra a ideia de geração espontânea. Os repolhos já não são vistos como produtores de lagartas.

No entanto, Maria Merian continua a ser pouco lembrada pela ciência. Um dos seus grandes talentos acabou por ser um dos seus pontos fracos. As suas pinturas eram tão deslumbrantes que ofuscaram as suas descobertas científicas. À medida que os livros foram reeditados e reimpressos, os textos científicos acabaram por ser eliminados, ficando somente as imagens.

Contudo, três séculos após a sua morte, a borboleta está a sair do casulo e a investigadora merece destaque na História da Ciência, como meticulosa observadora e como comunicadora e artista de ciência.

2024.08.20 – Louro de Carvalho

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