sexta-feira, 30 de agosto de 2024

As “madonnelle” ou “santuários marianos” nas esquinas de Roma

 

Em Roma, há centenas de museus para visitar, com inúmeras obras-primas para admirar. No entanto, há uma arte, muitas vezes, esquecida que os transeuntes encontram diretamente na Cidade Eterna: a chamada madonnelle.

Localizadas logo acima do nível dos olhos em muitos cruzamentos da cidade, as madonnelle são minissantuários marianos cujo nome pode ser traduzido como “pequenas Madonas” (pequenas Nossas Senhoras). Há centenas delas nas ruas da cidade de Roma, instaladas com o intuito de que Nossa Senhora zele pelos habitantes da cidade capital da cristandade e os proteja.

A devoção começou há pouco mais de 500 anos, com um primeiro santuário mariano instalado na rua, em 1523. Essa madonnella, chamada Imago Pontis, devido à sua localização junto de uma ponte, ainda hoje pode ser vista no bairro de Ponte, em Roma. No auge desta criação artística e espiritual, havia cerca de três mil madonnelle espalhadas pela cidade. Cerca de metade delas existe ainda hoje.

Há várias cidades com o bairro da Ponte. Lamego é um dos casos e o seu Bairro da Ponte, junto ao rio Balsemão, venera Nossa Senhora dos Meninos numa ampla capela mariana.   

Madonnelle foi especialmente popular entre os séculos XVII e XIX, coincidindo com o fim da Contrarreforma. Nesse período, a fé católica foi criticada pela sua devoção às imagens, a que os católicos prestam o culto de dulia (veneração) e, em especial, a Nossa Senhora a quem os católicos prestam o culto de hiperdulia (veneração em grau eminente) – muito distinto da adoração ou latria, reservado a Deus como Pai, como Filho e como Espírito Santo.

Em resposta, a Igreja Católica fortaleceu a arte, encomendando algumas das iconografias religiosas mais conhecidas da História e erigindo templos sumptuosos (mesmo os templos mais pobres nas aldeias tinham um aparente fausto arquitetónico e escultórico), a enfatizar a glória de Deus e dos seus anjos e santos. Surgiu, assim, a esplendente arte barroca, oposta à proporção da arte da Renascença, ao caráter esguio do gótico e ao estilo fechado e escuro (pelo tipo de fortaleza que representava e servia) do românico. No barroco, tudo era burilado, esplendoroso, grandiloquente. Os espaços vazios tendiam a ser recamados de talha dourada ou de azulejos – o que, não raro “invadiu” os antigos espaços do românico e do gótico e os criados pela arte renascentista, a menos que os vigilantes dos templos estivessem atentos e oferecessem oposição a esse movimento.  

A maioria dessas obras-primas de que vínhamos falando estava instalada nas igrejas de Roma, mas muitos artistas anónimos canalizaram os seus dons para a criação das madonnelle.

Originariamente, as madonnelle eram iluminadas por pequenas lamparinas de azeite, que serviam como grande parte da iluminação pública. Os suportes que estão por baixo de algumas dessas madonas podem ter servido, no passado, como suporte para uma lamparina de azeite. Este azeite, não utilizado no tempero das comidas, por ser demasiado ácido, mas aproveitado para as lamparinas, é denominado azeite lampante.

Os Romanos mantinham essas lamparinas acesas em sinal de devoção a Nossa Senhora. Essa devoção continuou com a prática dos fiéis locais a acenderem velas ou a cuidarem das flores perto desses minissantuários. Aliás, até à generalização das lamparinas elétricas, o tabernáculo do Santíssimo Sacramento era simbolicamente honrado pela presença da lamparina de azeite (designada, simplesmente, por “lâmpada”), muitas vezes suspensa de um sistema de ferro forjado, contendo, até ao meio, uma boa porção de água e, por cima da água, uma espessa camada de azeite sobre a qual uma boia (normalmente uma cruzeta metálica guarnecida em cada uma das três pontas por um taco de cortiça) suportava acesa uma flor (embebida em azeite) de uma planta adequada, tendo o mordomo o cuidado de manter sempre a lamparina acesa.

Também havia lamparinas móveis para quando o Santíssimo Sacramento fosse transferido, provisoriamente, para uma capela lateral (por exemplo, na Quinta-feira Santa ou em caso de obras no templo) ou para iluminar alguma imagem da devoção particular dos fiéis de uma comunidade.   

Embora a madonnella mais antiga tenha apenas 500 anos, a prática de erguer santuários devocionais públicos remonta a tempos antigos. Desde a fundação da Cidade Eterna, os Romanos construíram santuários aos deuses Lares, antigas divindades guardiãs romanas.

Embora a sua História documentada seja fragmentada, estudiosos dizem que os Lares foram especialmente importantes para a população local. Acreditava-se que essas divindades eram os espíritos positivos dos mortos reverenciados como observadores e protetores. Santuários, chamados lararia, foram construídos em diversas casas (não é por acaso que as nossas casas são os lares das famílias e a casa tradicional tinha como peça essencial a lareira), para devoção pessoal e para a proteção contra o mal. Alguns deles ainda podem ser encontrados em Pompeia, onde foram preservados.

À medida que os Lares se tornaram objeto de devoção popular, santuários chamados “Lares compitales” (de encruzilhada) foram instalados nas ruas. Foram colocados em cruzamentos onde o tráfego de pedestres e de veículos fazia com que os Romanos diminuíssem a velocidade. Lá, os Lares compitales tinham maior visibilidade.

Com o tempo – e à medida que o tráfego nas ruas piorou – os santuários compitales cumpriram outra função: proteger os viajantes nestes cruzamentos. Evidentemente, o tráfego romano não mudou muito desde a antiguidade.

À medida que o cristianismo se espalhava em Roma, os Lares compitales desapareceram lentamente. Nossa Senhora substituiu as divindades pagãs como protetora das ruas de Roma, especialmente nos seus cruzamentos e na esquina ou na fronte de algumas casas. No final do século XIX, apenas a Nossa Senhora era confiada a missão de zelar pela cidade, posição que ainda se mantém.

Numerosos milagres foram atribuídos às madonnelle, nos últimos 500 anos. A maioria deles refere-se aos olhos de Nossa Senhora nessas imagens, que dizem chorar, sangrar ou mover-se de um lado para o outro.

Em 9 de julho de 1796, com as forças de Napoleão a varrer a Itália, dezenas de pessoas relataram que os olhos das madonnelle os seguiam enquanto passavam. Cinco desses casos foram confirmados como milagrosos pela Igreja, e foi construída uma capela em torno de uma dessas madonelle: a Madonna dell’Archetto. Essa continua a ser, hoje, a menor igreja de Roma, com uma entrada muito estreita, localizada a poucos quarteirões da famosa Fontana Di Trevi.

Algumas madonnelle são dedicadas a certas aparições marianas, como a dedicada a La Beata Virgen del Carmine, Nossa Senhora do Carmo; outras madonnelle funcionam como devoções pessoais, como o santuário dedicado à Mater Itineris, ou Mãe do Caminho.

Algumas “madonas” dedicadas à Mãe do Caminho são adornadas com objetos devocionais e com placas de agradecimento pela sua intercessão.

Essa madonnelle são regularmente visitada pelos fiéis do respetivo bairro, que as decoram com flores, velas e outros objetos devocionais. As placas agradecem a Nossa Senhora pelo nascimento dos filhos, alguns dos quais trazem as iniciais “PGR”, que significa “Pela Graça Recebida”.

Depois da Segunda Guerra Mundial, as madonnelle tiveram um renascimento, em Roma. O venerável papa Pio XII consagrou a cidade a Nossa Senhora do Divino Amor, em 4 de junho de 1944, pedindo-lhe que protegesse Roma durante os bombardeamentos. Nesse mesmo dia, o Quinto Exército dos Estados Unidos da América (EUA) entrou na cidade, libertando Roma da ocupação alemã nazista.

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Entre nós, acontece algo parecido. Várias casas estão marcadas por esculturas ou painéis de azulejos com imagem de Cristo, da Virgem, de anjo ou de santo/a. Tal acontece nas ruas, nas praças e nos cruzamentos. Há placas a assinalar o centenário da Imaculada Conceição. Há imagens (algumas abrigadas por templete) de Nossa Senhora de Lurdes, do Coração de Maria, de Nossa Senhora de Fátima, de Nossa Senhora do Emigrante, da Senhor da Mensagem. Há conjuntos a representar aparições ou visões marianas (Nossa Senhora de Lurdes e Bernardete; Nossa Senhora de Fátima, os três pastorinhos e o rebanho; Nossa Senhora da Lapa, a pastora Joana e o rebanho;…).

Em muitas localidades, aquando dos funerais, no percurso da casa do defunto para a igreja, o féretro para, a fim de que se reze um responso, com o pai-nosso. E, se o padre ou o diácono não para, para rezar, pode haver sarilho.

Muitos cruzamentos e muros estão marcados por nichos de alminhas (Purgatório, Calvário, etc.). Cruzes em largos ou em muros assinalam o facto de alguém ter ali sofrido um acidente mortal ou um assalto em que perdeu a vida. Abundam os cruzeiros nos largos e nos muros e temos algumas irmandades que ostentam o pendão com as letras SPQR, que nada têm de cristão. São, apenas, reminiscência do paganismo romano imperial: SPQR é sigla que se desdobra em “Senatus PopulusQue Romanus”. Nas procissões romanas do império, à frente figurava o pendão a assinalar: “Aqui vai o senado (os patres conscripti – senadores) e (em latim, “que” no fim da palavra a que se refere) o povo romano (os patrícios ou nobres). O resto das pessoas era a plebe, sem voz no senado, embora com voz nos comícios da plebe (e tinham os seus tribunos), e os escravos, que não tinham voz.

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Na verdade, a devoção popular não tem limites. E, se nem sempre é ortodoxa, a via não é desprezá-la ou vilipendiá-la, mas corrigi-la com a delicadeza e a paciência que se impõem, obviamente ajudas pela correta formação, maia à base da Bíblia, em especial do Evangelho.     

2024.08.30 – Louro de Carvalho

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