“Reforçar o recurso aos gabinetes jurídicos do Estado,
evitando o uso excessivo de assessoria jurídica externa”, é uma das 31 medidas
da agenda anticorrupção (a n.º 4) dada a conhecer a 20 de junho, depois de
aprovada pelo Conselho de Ministros. O objetivo é capacitar a assessoria
jurídica dentro do Estado com menor exposição a interesses de terceiros, ou
seja, evitando despesa pública desnecessária.
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Diga-se, entre parêntesis que, de acordo com o respetivo
comunicado do Ministério da Justiça (MJ), terminou, a 14 de agosto, a consulta
pública da agenda anticorrupção, tendo sido recebidas, no total, cerca de 40 propostas de 29 participantes. As
contribuições provieram de associações profissionais, de empresas, de organizações
não-governamentais, de profissionais liberais, de funcionários do Estado e de outros
cidadãos. “Uma nota comum aos contributos e comentários recebidos é o seu
caráter construtivo e comprometido na luta contra a corrupção. Os participantes versaram uma grande variedade de temas, tendo
sido a regulamentação do lóbi uma das medidas que mais comentários recebeu”,
lê-se no comunicado.
Os principais contributos centraram-se nas regras de ética, de transparência e de integridade no Estado, na
gestão de fraude, na pegada legislativa, no registo de interesses, no regime
sancionatório, na perda alargada de bens, nos meios de obtenção de prova no
direito premial e na celeridade processual. E apesar de o tema
central ser a corrupção, o MJ explicou que os
participantes nem sempre se cingiram a um único tema, fazendo comentários a
outros tópicos. Entre eles o funcionamento do Mecanismo Nacional
Anticorrupção, a contratação pública, os concursos públicos, o enriquecimento
ilícito, o funcionamento dos mercados e da economia, o acesso aos documentos
administrativos, a responsabilidade dos órgãos da Administração Pública e os
impedimentos para o desempenho de funções públicas.
“O Ministério da Justiça vai ter
em consideração os contributos enviados nos trabalhos de execução das medidas
da agenda”, sublinha o Executivo.
As medidas da agenda anticorrupção
foram dadas as conhecer no dia 20 de junho, após terem sido aprovadas em
Conselho de Ministros. Regulamentar o lóbi, ter atenção às autarquias e
a sua relação com empresas locais, voltar a pôr na agenda a delação premiada,
reforçando o seu alcance, criar uma “lista negra” de fornecedores do Estado e
recorrer, mais vezes, aos advogados do Estado e menos a sociedades de advogados
são algumas das medidas incluídas na agenda.
O MJ assegura que já estão em curso algumas medidas,
como o pedido de autorização legislativa para estabelecer a citação e a
notificação eletrónicas, a criação da comissão para a revisão do Processo
Tributário e Administrativo (PTT) ou a adoção, pelo Centro de Estudos
Judiciários (CEJ), do plano de formação para 2024-2025.
“Em breve, serão atualizadas as
concretizações de outras medidas, cujos trabalhos estão em curso“,
refere.
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Porém, a medida cujo anúncio foi reiterado a 16 de agosto,
não é propriamente uma novidade. A legislação em vigor já
estipula que os “estudos, pareceres, projetos e serviços de consultoria, bem
como quaisquer trabalhos especializados e a representação judiciária e mandato
forense, devem ser realizados por via de recursos próprios das entidades contratantes”,
com algumas exceções de situações pontuais e “devidamente fundamentadas”. E já
existe um mecanismo interno, composto com cerca de 20 juristas, para esse fim,
a JurisApp – Centro de Competências Jurídicas do Estado. Este serviço, que
sucede ao extinto Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros
(CEJUR), foi criado pelo governo, em 2017, pelo Decreto-Lei n.º 149/2017, de 6 de dezembro
(cuja última alteração lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/2023, de 8
de fevereiro) e é composto por uma equipa que trabalha,
exclusivamente, para o setor público, contribuindo com consultoria, com assessoria
e com aconselhamentos jurídicos.
A este respeito, o artigo 18.º do referido diploma
estabelece:
“1. O recurso à
contratação externa, pelos serviços e organismos integrados na administração
direta e indireta do Estado, de quaisquer serviços jurídicos apenas é
admissível nos casos em que se encontrem preenchidos os seguintes requisitos:
a) inexistência, no serviço ou
organismo que pretenda recorrer à contratação externa, bem como no JurisAPP, de
recursos humanos disponíveis e com experiência, formação e grau de
especialização adequados, que permitam assegurar os trabalhos em causa; b) identificação do recurso à
contratação externa como a modalidade mais apta à prossecução do interesse público.
“2. A
contratação externa de serviços jurídicos pelos serviços e organismos
integrados na administração direta e indireta do Estado é precedida de parecer
prévio obrigatório e vinculativo do/a diretor/a do JurisAPP, que se pronuncia
exclusivamente sobre o preenchimento das condições mencionadas no número
anterior.
“3.
O pedido de parecer deve: a) fundamentar
o preenchimento das condições previstas no n.º 1, salvo a que se refere, na
alínea a), à inexistência de recursos
humanos no JurisAPP; b) ser formulado
pelo titular do órgão ou dirigente superior do serviço ou organismo que
pretenda proceder à contratação externa de serviços jurídicos; c) ser eletronicamente comunicado ao/à
diretor/a do JurisAPP.
“4.
Não se aplica o disposto no n.º 2: a)
à contratação de serviços jurídicos externos cujo objeto seja o patrocínio
judiciário, devendo essa contratação ser comunicada, no prazo de 10 dias, ao/à
diretor/a do JurisAPP, que procede ao respetivo registo; b) à contratação externa de serviços
jurídicos por parte do setor empresarial do Estado, devendo essa contratação
ser comunicada, no prazo de 10 dias, ao/à diretor/a do JurisAPP, que procede ao
respetivo registo; c) à
contratação externa de serviços jurídicos pelos serviços periféricos externos
do Ministério dos Negócios Estrangeiros.”
Não obstante, só nos últimos cinco anos, o
Estado pagou quase 45 milhões de euros a sociedades de advogados, por ajustes
diretos. Só neste ano, o Estado já gastou cerca de quatro milhões de euros
no recurso à assessoria jurídica externa.
O teto máximo para celebração de ajustes diretos
relativos a prestação de serviços é de 20 mil euros, mas, em muitos casos,
esses valores são superiores nos contratos feitos com os escritórios de
advogados, pois o código da contratação pública permite evitar os concursos
públicos, quando “a natureza das respetivas prestações, nomeadamente as
inerentes a serviços de natureza intelectual, não possibilite a elaboração de
especificações contratuais suficientemente precisas”.
Apesar da criação
e do funcionamento do JurisApp, nos últimos cinco anos, as entidades
públicas pagaram quase 45 milhões de euros a sociedades de advogados por
ajustes diretos. Desse valor, 36% “pertence” à Vieira de Almeida (VdA),
segundo o portal BASE. No top 3 estão ainda a Sérvulo & Associados (22%) e
a Morais Leitão (12%).
O
contrato que coloca a Sérvulo no ranking dos últimos cinco
anos é a compra do SIRESP. A 13 de junho de 2019, o governo aprovou a compra
da totalidade da SIRESP SA, após negociações com as duas restantes acionistas.
Em causa estava a promessa do governo de controlar o SIRESP, após as falhas que
dificultaram o combate às chamas nos incêndios de 2017, incluindo o de Pedrógão
Grande e os de outubro. A Sérvulo patrocinava a Autoridade Nacional de Emergência
e Proteção Civil (ANEPC). Para os 9,3 milhões de euros auferidos pela VdA, contribuiu a
assessoria ao Banco de Portugal (BdP), com a resolução do Banco Espírito Santo
(BES) e do Banco Internacional do Funchal (BANIF). Já a Morais Leitão tem a autarquia de
Cascais e a Imprensa Nacional da Casa da Moeda (INCM) entre os maiores clientes
no Estado. E, em 2024, as três sociedades voltam a estar no topo, com a Sérvulo a liderar,
assegurando 30% do valor.
O Orçamento do Estado para 2024, nos gastos em estudos,
pareceres, projetos e consultadoria, incluindo pareceres jurídicos e
assessoria, prevê gastar 284,4 milhões de euros, mais 38,7 milhões de euros que
o previsto para 2023 (245644213 euros), mais do que os 181535534 euros
previstos para 2022 e quase o dobro dos 136200249 alocados em 2021.
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A medida, cujos contornos estão
por definir, pode impactar as contas dos escritórios.
Bruno Ferreira, da PLMJ, sustenta que o peso
da assessoria jurídica a entidades públicas é pouco relevante, na firma, já
que as equipas trabalham, principalmente, para empresas. Por isso, a medida
anunciada “pouco impactará o escritório”. E, considerando que a assessoria a
entidades públicas está, não raro, em cima da mesa, associada à despesa pública
e à boa gestão dos recursos públicos, observa: “O debate é sempre saudável, mas,
para ser verdadeiramente enriquecedor, é preciso ir mais além. Aquilo que julgo
que todos queremos é que os melhores interesses do Estado – de todos nós –
estejam, em cada situação, salvaguardados.”
Mais refere que, na maioria das vezes, o Estado
recorre às firmas, porque não ter recursos internos que garantam a defesa dos
melhores interesses. Nem se tratará da qualidade das equipas internas do
Estado, mas da exigência do assunto, que implica equipas de grande dimensão e
muito experientes em determinado setor ou tipo de contrato. Assim, vê com dificuldade
que o Estado internalize a quantidade de pessoas e o talento que a medida
exige. Por outro lado, como anota, “hoje
o nível de escrutínio e de mecanismos de controlo e compliance é
tal – e bem – que a exposição a interesses de terceiros que é mencionada no
pacote é algo que tem pouca ou nenhuma aderência à realidade, quando falamos da
melhor assessoria jurídica em Portugal”.
Por sua vez, Nuno de Oliveira Garcia, da Gómez-Acebo
& Pombo, concorda que os gabinetes sejam mais bem apetrechados, mas, não
concorda com a associação subjacente ao anúncio da medida, “excessivamente
genérica”. Não duvida da importância de
reforçar e de capacitar os gabinetes jurídicos do Estado, nem que se
entenda que o Estado depende “excessivamente” de um ou dois escritórios, apesar
das regras de contratação pública, mas alerta: “Porém, associar recurso à
assessoria jurídica externa a qualquer prática de corrupção não faz qualquer
sentido.”
“Se é o Estado que contrata esses serviços externos,
cabe ao Estado decidir como segui-los e pô-los em prática. […] Sendo que os
prestadores de serviços jurídicos externos agirão, seguramente, de acordo com o
interesse do Estado, nesses casos, pois é o Estado o seu cliente”, explica,
observando que há situações em que a assessoria externa é fundamental, na medida em
que a assessoria interna – por regra, a cargo de juristas, não de advogados –
segue uma lógica estadista e governante, desde logo por força da forte hierarquia
existente na Administração, em contraste com a assessoria externa, mais
independente, por natureza, e mais especializada.
A VdA acredita que esta é uma boa medida, porque
aprofunda as opções dos últimos anos, dando sequência a passos importantes como
a criação da JurisApp. E, defendendo que há transações, litígios e outras
situações da gestão pública e privada que ganham com assessoria jurídica de
intensidade e de amplitude temática que aconselha o recurso a advogados
externos, entende que que o Estado deve evitar a contratação externa para
aconselhamento que pode ser obtido internamente, mas deve procurar assessoria
especializada ou mais apetrechada em “determinadas circunstâncias ligadas à
decisão pública”.
Sobre se a medida evita a exposição a conflito de interesses,
o escritório de Paula Gomes Freire releva que há regras apertadas que as firmas
têm implementado com rigor. Não conhece nenhuma situação em que uma entidade
pública (ou privada) tenha sentido que o escritório incumpre os deveres legais
e deontológicos. E acredita que a situação no mercado não é diferente da sua.
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Enfim, uma medida colocada em termos muito genéricos,
que não se vê como concretizar por via legislativa! Não bastaria ponderar mais
cada situação e aumentar o quadro do JurisAPP?
2024.08.18 –
Louro de Carvalho
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