quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O lutador pela justiça social que ofereceu o Tintim aos Portugueses

 

Assinalou-se, a 20 de Agosto, o 60.º aniversário da morte do padre Abel Varzim, ocorrida na aldeia de Cristelo, no concelho de Barcelos, onde nascera, em 1902, e que se tornou uma das figuras mais singulares e admiráveis da Igreja portuguesa do Século XX.  

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Fundador da Ação Católica Portuguesa (ACP), dinamizador de projetos sociais, preocupado com a situação dos operários e das prostitutas, Abel Varzim tem parte do seu espólio digitalizado e acessível, o que pretextara uma homenagem, a 6 de novembro de 2021, na sua aldeia natal. 

“Elas procuram espontaneamente quem lhes acuda e as não condene! Isso depende de cada um de nós! […] Abandoná-las, não querer ver, acusá-las e deixar correr, não é pudor social mas verdadeira cumplicidade no negócio da prostituição”, referia o folheto a apelar à ajuda (não à condenação) das mulheres obrigadas à prostituição e cujas palavras não podiam ser mais esclarecedoras do que desejava o Instituto de Sant’Ana, fundado pelo padre Varzim, em 1954.

O antigo assistente da ACP e fundador do jornal O Trabalhador, à conta do qual foi censurado e perseguido pelo Estado Novo, fora nomeado pároco da paróquia de Nossa Senhora da Encarnação, ao Chiado, em Lisboa, onde se deparou com um quadro social em que a prostituição era problema grave. Empenhou-se em promover iniciativas dedicadas à sua reintegração. O Instituto de Sant’Ana e a Liga Nacional Contra a Prostituição, em 1955, foram duas delas – ambas olhadas de soslaio pelo regime. O referido folheto é um dos documentos digitalizados que podem ser encontrados na coleção Documental Abel Varzim, disponibilizado na PAPIR (Plataforma de Arquivos Pessoais e de Instituições Religiosas), por colaboração do CEHR (Centro de Estudos de História Religiosa), da Universidade Católica (UCP), com o Fórum Abel Varzim.

“Trata-se de colocar no domínio público uma figura marcante do catolicismo português do século XX, antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial”, referia, então, Nuno Estêvão, membro do CEHR e responsável pelo processo de digitalização, vincando: “Abel Varzim foi político, empenhado no campo social, deputado do regime, depois opositor ao regime, assinou manifestos de católicos contra Salazar, foi jornalista… Foi uma figura multifacetada, marcante para várias gerações. Sinal disso mesmo é o facto de ainda haver pessoas que se juntam para o evocar.”

O arquivo foi apesentado, a 6 de novembro daquele ano, em Cristelo, no âmbito da homenagem ao padre d’O Trabalhador, que foi pretexto para a evocação do jornalista católico e político socialista João Gomes, que morreu em março de 2020 e criou o Fórum Abel Varzim.

Além do Fórum, João Gomes promoveu a ideia de um centro social em Cristelo, com o nome do padre Abel Varzim. Daí a escolha da data e do local para juntar os dois na mesma homenagem, que terminou com a celebração da eucaristia.

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Desde cedo, atento às questões sociais, Varzim doutorou-se em Ciências Políticas e Sociais na Universidade de Lovaina, na Bélgica, em 1934, tendo conhecido, nessa altura, Joseph Cardijn, fundador do Movimento Operário Católico (MOC). “De regresso a Portugal, não mais baixou os braços no combate pela justiça social, tendo sido dos mais destacados membros da Igreja a erguer-se contra a ditadura salazarista”, como escreveu o arquiteto Nuno Teotónio Pereira, também um lutador contra o Estado Novo. Ainda em Lovaina, Abel Varzim empenhou-se, com o padre Manuel Rocha, na criação dos organismos operários da ACP. Em Portugal, seria o assistente geral da Liga Operária Católica (LOC), até 1948. Dinamizou o jornal O Trabalhador, subscrevendo textos que desagradaram ao regime, o que levou o jornal a ser suspenso pela censura.

No escrito para assinalar o 30.º aniversário da morte do padre Abel Varzim, Nuno Teotónio Pereira recordou que, em 1938, o sacerdote foi convidado, “por Salazar, para integrar as listas únicas da União Nacional [UN] para a Assembleia Nacional [AN], pois o regime tinha por costume incluir em todas as legislaturas um ou dois padres na sua lista de deputados”. Mas, no início de 1939, Abel Varzim questionou o funcionamento dos sindicatos nacionais, denunciando arbitrariedades cometidas no mundo laboral: “Estou convencido de que a situação em que se encontram os sindicatos nacionais e de que a facilidade com que muitos patrões abusam dos operários se deve algumas vezes ao próprio Estado.”

Esta asserção fez com que fosse “alcunhado de comunista e considerado um opositor ao regime”. Acabaria nomeado pároco da freguesia da Encarnação, em Lisboa. A paróquia abrangia o Bairro Alto, zona de prostituição, cujas vítimas preocuparam o padre Varzim. Em 1953, fundou um lar para a reintegração social das prostitutas e um posto médico. Mas as elites da paróquia não descansaram, enquanto não o afastaram do cargo. Em “Procissão dos Passos – Uma vivência no Bairro Alto”, Varzim legou um vibrante testemunho desse trabalho sacerdotal.

Em 1957, cansado, doente e abatido pela maledicência e pela calúnia, regressou a Cristelo, onde Francisco Lino Neto o encontrou, em 1959, para lhe pedir que subscrevesse dois documentos que denunciavam a subserviência da Igreja ao Estado e os crimes da PIDE. Assinou-os, integrando o grupo de 47 católicos, entre os quais vários padres, que se demarcavam do regime. E, na lista das assinaturas, organizada por ordem alfabética, o seu nome é, simbolicamente, o primeiro. Aos signatários foi aberto um processo pela PIDE, mas logo veio uma amnistia, pois o caso era demasiado embaraçoso para a ditadura.

Nuno Teotónio Pereira e a mulher, Maria Natália, visitaram-no em Cristelo, pouco antes da sua morte. Mesmo ali, não descansava: organizou a cooperativa SAMI (Sociedade Avícola do Minho), para defesa dos interesses dos avicultores, dizendo sonhar que, mais tarde, sem alteração da sigla, a associação se pudesse transformar em Sociedade Agrícola do Minho.

O sacerdote, que foi um dos homens imprescindíveis que lutam toda a vida, também se incumbiu de tarefas algo inexpectáveis. Ao seu empenho se deve a publicação das aventuras de Tintim (Tim-Tim, nome usado na altura) em Portugal, o primeiro país não francófono a acolhê-las. As histórias da amizade com Hergé e da publicação de Tintim no nosso país encontram-se relatadas por Albert Algoud no livro Le Senhor Oliveira da Figueira & les aventures de Hergé et Tim-Tim au Portugal, publicado pelas Éditions Chandeigne, em 2021. “Abbé Abel Varzim” é a primeira entrada do “Glossário de uma longa colaboração”, com retrato do sacerdote desenhado por Philippe Dumas. “À tout seigneur tout honneur” – “O seu a seu dono” – escreve o autor, lembrando que foi Varzim, que tinha conhecido, em Lovaina, Georges Remi, o famoso Hergé, quem se encarregou de pedir autorização para reproduzir, em O Papagaio, as histórias publicadas em “Le Petit Vingtième”, o suplemento semanal de Le Vingtième Siècle, como comprova a carta ao diretor do jornal belga, em 25 de maio de 1935.

Foram várias as questiúnculas conexas com a edição portuguesa de Tintim, apresentado em O Papagaio como “um repórter português residente em Lisboa”, não como o repórter belga que era. A colorização (foi em Portugal, não na Bélgica, que as aventuras de Tintim foram, pela primeira vez, publicadas a cores) e a remontagem de imagens (recortadas e montadas em função do espaço disponível nas páginas do Papagaio“) originaram embaraços entre Hergé e os editores.

Outro imbróglio tem a ver com o facto de Adolfo Simões Müller querer levar o Tintim para a nova revista, Diabrete, concorrente de O Papagaio, que pretendia manter o “repórter português” ao serviço. Albert Algoud nota que Abel Varzim manteve as aventuras de Tintim, ficando o concorrente com as de outros heróis de Hergé: Jo, Zette e Jocko, além das de Quick e Flupke.

Curioso é o modo de remuneração do trabalho de Hergé. A partir de 1940, estando a Bélgica sob a Alemanha nazi, com severos racionamentos alimentares, o criador de Tim-Tim disponibilizou-se, bem como o irmão prisioneiro na Alemanha, a ser pago em sardinhas, chocolate e café.

A 23 de Fevereiro de 1943, Hergé escreve a Adolfo Simões Müller e ao padre Abel Varzim sobre a questão dos pagamentos. A este pede que lhe continue a fazer chegar latas de sardinhas e de frutos secos; àquele pede cigarros de tabaco inglês, que fariam do criador de Tintim o homem “mais feliz do Mundo”. Albert Algoud dá conta de recibo de 24 de maio de 1943, comprovativo de que Hergé recebera 40 embalagens contendo 219 latas de sardinhas, com o peso total de 18 quilogramas. A quantidade foi tão elevada que Hergé se tornou suspeito de as negociar no mercado negro, pelo que, após denúncia anónima, prestou contas à administração alfandegária.

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Ao perfazerem-se 30 anos da morte do Padre Abel Varzim, falecido a 20 de agosto de 1964, na sua aldeia natal, a sua vida brilhava como claro testemunho de como um autêntico apóstolo cristão era combatido, até à destruição física e psicológica, no regime de Salazar, com a complacência e até colaboração da hierarquia religiosa.

Logo após a ordenação, em 1925, põe-se ao serviço da diocese de Beja, muito carenciada de padres, que abundavam no Norte do País. Neste gesto, revela-se um primeiro aspeto da sua personalidade: estar, e estar ativo, onde fizesse mais falta. Ali se manteve como responsável pelo seminário de Serpa, até 1930. Neste ano, estimulado pelo desejo de aprender e de tomar contacto com os problemas sociais, matriculou-se na universidade de Lovaina, onde conheceu o fundador da Juventude Operária Católica (JOC), Cardijn, tendo como colega Manuel Rocha, que seguiu caminho paralelo ao seu, mas foi exilado para os Estados Unidos da América (EUA), onde passou a viver. Doutorou-se em Ciências Políticas e Sociais, em 1934, com tese sobre uma obra que o apaixonou: o Boerenbond (Federação dos Agricultores), que velava pela defesa dos agricultores através da sua organização e da elevação do seu nível moral, intelectual, técnico e económico. Escreveu Domingos Rodrigues, um biógrafo de Varzim: “Com as fronteiras abertas, deu-se a invasão dos produtos do exterior, enquanto o liberalismo económico tinha tirado a direção dos mercados aos produtores e aos consumidores. Os agricultores belgas começaram a sentir a asfixia económica, visto que os preços de venda eram inferiores aos preços de custo. Os agricultores estremeceram, mas encontraram a sua força na associação. O Boerenbond salvou-os.”

De regresso a Portugal, Varzim vem para Lisboa, integrando-se no Patriarcado, onde pontificava o cardeal Cerejeira. Ainda em Lovaina, ele e o padre Manuel Rocha são encarregados de elaborar as bases da ACP, que vieram a ser publicadas em 1933, em sincronia com a constituição salazarista. Passa pela revista Renascença e escreve, assiduamente, no órgão oficial da Igreja, Novidades, artigos doutrinários sobre problemas sociais.

Em 1938 é convidado por Salazar para integrar as listas únicas da UN para a AN. Porém, logo em janeiro de 1939, apresenta um aviso-prévio a questionar o funcionamento dos sindicatos nacionais. Efetivamente, acreditava no sistema corporativo, mas feito de baixo para cima, e não ao contrário. Também se manifestou contra o decreto que obrigava os oficiais das Forças Armadas a fazerem casamento com meninas dotadas de bens materiais.

Mas a maior obra de Abel Varzim foi a que desenvolveu à frente do jornal O Trabalhador. Fundado a 1 de maio de 1934, publicou-se até 1946 como quinzenário, como órgão da ACP. Os editoriais ardentes de Varzim, em defesa da libertação dos operários, enfureciam o regime. “O Trabalhador causa confusão a muita gente” – lê-se num deles – “porque a classe operária está calada, está resignada e contenta-se com o que tem. Que nós a andamos a espicaçar, a desinquietá-la, que a andamos a revolucionar, sem necessidade nenhuma, porque ela lá se vai aguentando como está, e continuaria calada se nós não falássemos dos seus direitos”. Porém, a Censura cortava páginas inteiras do jornal, agravando-lhe a situação económica, o que levou sua à autossuspensão. Porém, Varzim não desiste: funda a “Sociedade Editorial O Trabalhador”, com ações a 100 escudos, e retoma a publicação, em 1948, de um semanário com o mesmo nome. Ousou escrever, num editorial: “ Se o operário não e resgatar a si mesmo, ninguém o resgatará.”

A partir daqui, o destino do jornal estava traçado: primeiro, foi a nota oficiosa de intimação do subsecretário das Corporações; depois, a Censura obrigava a compor 12 páginas de texto para que se aproveitassem oito; a seguir, chegava ao jornal uma proposta de compra, sem identificação do comprador, que foi rejeitada. Já anteriormente, tinha havido uma proposta de subsídio, também rejeitada. Foi assim que, a 9 de julho de 1948 o jornal foi suspenso sine die pela Censura.

A hierarquia católica, como era habitual, não reagiu. Nem um protesto, apesar de os responsáveis do jornal terem pedido apoio ao Núncio Apostólico e ao cardeal Cerejeira. Este ouviu-os com simpatia, mas dececionou-os, ao dizer-lhes que haviam de ter ocasião de fazer algo.

Entretanto, Varzim dispunha de mais três postos onde exercia a sua catividade social: diretor do Secretariado Económico-social da ACP, professor do Instituto do Serviço Social e assistente da Liga Operária Católica (LOC). O governo não podia intervir diretamente, mas fê-lo, pressionando a hierarquia, que o demitiu destes cargos, num curto intervalo de tempo.

No seu diário, escrevia Varzim, em 1948: “Os nossos chefes hierárquicos vêm cometendo, desde há muito, um gravíssimo erro – são covardes – ou pelo menos parecem-no – e são comodistas e burgueses.” O oportunismo marcou o seu modo de agir, como atesta a conversa relatada no diário com Cerejeira, que lhe dissera que o guardava como reserva da Igreja: “Esta situação política não pode durar muito; nós não temos ninguém, a não ser o padre Varzim, com prestígio suficiente para desfraldar, depois da queda disto, uma bandeira. Isto não é maquiavelismo, mas prudência.”

Após dois anos de inatividade, Varzim foi nomeado pároco da freguesia da Encarnação, em Lisboa, onde desenvolveu a atividade já descrita (em que ressalta a criação do lar, para a reintegração social das prostitutas, e do posto médico) e com o desfecho que o regime impôs.

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Foi este homem, ostracizado pela Igreja, sacrificado pelos superiores às razões do Estado de um poder ditatorial, e condecorado, a título póstumo, com a Ordem da Liberdade, em 1980, que os seus discípulos, acompanhados, tarde de mais, por um cortejo póstumo de bispos, homenagearam no 30.º aniversário de uma morte solitária. Tudo isto é tão póstumo que faz doer.

 

Porém, no cinquentenário da morte do patrono, o Fórum Abel Varzim prestou-lhe homenagem com várias iniciativas, com destaque para a reedição de “Procissão dos Passos”, em parceria com a Editorial Cáritas. Obra singular e mostra impressiva da atenção ao outro, que lhe caraterizou a vida toda. Publicou-se, ainda, um excerto de outro texto de Varzim, intitulado “Porque Fugiste, Senhor?”, que seria o princípio do livro que, só mais tarde, sairia do prelo. Enriquecem esta edição a nota de “Apresentação”, de Paulo Fontes, e o testemunho sobre o impacto da vida e obra de Abel Varzim, de Juan Ambrósio, ambos docentes na UCP.  

2024.08.21 – Louro de Carvalho

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