domingo, 11 de agosto de 2024

A escalada da violência no Reino Unido

 

O Reino Unido tem sido palco de atos de violência (uma das piores dos últimos anos) nos últimos dias de julho e nas primeira semana de agosto, com multidões a gritarem slogans anti-imigração e islamofóbicos e em confrontos com a polícia, o que levou a centenas de detenções, enquanto o governo promete que os desordeiros sentirão “toda a força da lei”, após terem atirado tijolos e outros objetos à polícia, saqueado lojas e atacado hotéis que acolhem requerentes de asilo.

A 4 de agosto, na cidade de Rotherham, um grupo de manifestantes atirou objetos contra agentes da polícia e outro tentou invadir um hotel utilizado para acolher requerentes de asilo.

Incidentes da mesma índole já tinham ocorrido na véspera, nas cidades de Middlesbrough e Hull. Em Hull, várias lojas foram arrombadas e saqueadas, uma delas até incendiada, e a polícia foi atacada com tijolos e com fogo-de-artifício.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, condenou veementemente os ataques e, numa declaração, no 10 Downing Street, prometeu que as autoridades “farão o que for preciso para levar estes bandidos à justiça”.

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Quando o governo pretende conter a agitação e anuncia a criação de um “exército permanente” de polícias especializados para lidar com os tumultos, é de pensar no que está a acontecer.

Na Grã-Bretanha, houve grande choque com o que a polícia descreveu como “feroz ataque com faca” a uma aula de dança, que vitimou três meninas entre os seis anos e os nove, a 29 de julho, em Southport, cidade costeira a Norte de Liverpool. Oito crianças e dois adultos ficaram feridos.

No dia seguinte, enquanto as pessoas se reuniam para se consolarem e depositarem flores no local, centenas de manifestantes atacaram uma mesquita a tijolos, garrafas e pedras. A polícia supôs que os desordeiros eram “apoiantes da Liga de Defesa Inglesa”, grupo de extrema-direita que vem organizando protestos antimuçulmanos, desde 2009. E, a 1 de agosto, as autoridades deram o passo invulgar de identificar o suspeito menor de idade, na tentativa de pôr fim aos rumores sobre a sua identidade, que estavam a alimentar a violência.

Axel Muganwa Rudakubana, que foi acusado de três crimes de homicídio e dez de tentativa de homicídio, nasceu no País de Gales, em 2006, e mudou-se para a zona de Southport, em 2013. Os pais eram naturais do Ruanda.

Segundo o governo e a polícia, os tumultos espalharam-se por cidades e vilas, em muitas partes do Reino Unido, à medida que ativistas de extrema-direita faziam circular informações erradas sobre o ataque. Menos de duas horas após o esfaqueamento, um utilizador das redes sociais conhecido como European Invasion afirmou que o agressor era “alegadamente um imigrante muçulmano”. A alegação publicada no X (antigo Twitter) apareceu, mais tarde, no Facebook e no Telegram, de acordo com a Logically, empresa sediada no Reino Unido que utiliza inteligência artificial e humana para combater a propaganda online. O boato foi incluído num artigo publicado pelo Channel 3Now, site suspeito de ligações à Rússia, e citado por organizações noticiosas russas afiliadas ao Estado, incluindo a RT e a Tass. “É provável que o Channel 3Now seja um ativo russo com o objetivo de semear informação destinada a causar danos online e a criar divisão no Reino Unido”, afirmou a Logically, numa análise publicada no X.

Vídeos nas redes sociais encorajam as pessoas que pensam de igual modo a envolverem-se na agitação que veem online, disse Stephanie Alice Baker, socióloga da City University de Londres. “Há sempre um ponto de viragem em que as pessoas se sentem encorajadas e habilitadas a agir de acordo com esses sentimentos, e é normalmente quando veem outros a fazer a mesma coisa, certo?”, considerou.

Em dezembro de 2023, foi instaurado um processo judicial contra o X, por ter conteúdos ilegais e desinformação na sua plataforma. E, agora, a sua reação aos motins no Reino Unido pode ser tida em conta pela Comissão Europeia no processo desta contra a plataforma, ao abrigo da Lei dos Serviços Digitais (DSA).

O processo da Comissão, em dezembro, foi o primeiro a ser instaurado ao abrigo da DSA, o marco das regras da União Europeia (UE) sobre plataformas digitais. E a investigação – desencadeada em resposta à falta de moderação de conteúdos ilegais e de desinformação, nomeadamente conteúdos terroristas e violentos no contexto da guerra entre Israel e o Hamas – está a avaliar se o X terá violado a DSA em áreas atinentes à gestão de riscos, à moderação de conteúdos, a padrões obscuros, à transparência da publicidade e ao acesso a dados para investigadores.

Até agora, o X tem desempenhado um papel central na saga: foi utilizado, pela primeira vez, como instrumento para fomentar o frenesim e a desinformação sobre o ataque de Southport e, desde então, tornou-se um canal para Elon Musk, bilionário da tecnologia e proprietário do X,  criticar o primeiro-ministro e amplificar a retórica que conduziu à violência subsequente.

O organismo regulador da radiodifusão do Reino Unido instou, em carta aberta, as empresas de redes sociais, a evitarem que as suas plataformas sejam usadas para espalhar a violência no meio dos tumultos em curso no país. E um porta-voz da Comissão Europeia, considerando que “não podemos ser ingénuos” e que “pode haver potenciais repercussões na UE” conjeturou: “Estes incidentes que se verificam, atualmente, no Reino Unido e a resposta do X a estes acontecimentos poderão ser, potencialmente, tidos em conta nos processos em curso contra o X, nomeadamente em matéria de desinformação e de conteúdos ilegais.”

Se a investigação concluir pela existência de uma infração e o X não tomar medidas corretivas, poderão ser aplicadas à plataforma coimas até 6% do volume de negócios anual a nível mundial.

Porém, Musk já tinha refutado as conclusões sobre a violação da DSA.

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Mais de uma dúzia de cidades foram palco dos distúrbios, incluindo Londres, Hartlepool, Manchester, Middlesborough, Hull, Liverpool, Bristol, Belfast, Nottingham e Leeds. Alguns episódios de maior violência ocorreram a 4 de agosto. Centenas de desordeiros invadiram um Holiday Inn Express que albergava requerentes de asilo na cidade de Rotherham, nos arredores de Birmingham. A polícia com equipamento antimotim foi atingida com tijolos e cadeiras enquanto defendia o hotel dos atacantes que pontapearam as janelas e empurraram para o interior um contentor de lixo em chamas. Mais tarde, outro grupo atacou um hotel em Tamworth.

Os agitadores vêm explorando as tensões existentes sobre a imigração e o crescente número de migrantes que entraram ilegalmente atravessando o Canal da Mancha em barcos insufláveis.

Estas preocupações foram uma questão central nas eleições de 4 de julho, com o antigo primeiro-ministro, Rishi Sunak, a prometer acabar com os barcos, deportando os imigrantes para o Ruanda. Embora o atual primeiro-ministro, Keir Starmer, tenha cancelado o plano, após ter obtido vitória eleitoral esmagadora, prometeu reduzir a imigração, trabalhando com outras nações europeias e acelerando a remoção dos requerentes de asilo falhados.

A política do anterior governo alimentou a frustração dos eleitores, alojando os requerentes de asilo em hotéis, com o custo de 2,5 mil milhões de libras (3,2 mil milhões de dólares), em 2023, num contexto de serviços públicos falhados, enquanto o governo tentava equilibrar o orçamento.

Para Stephanie Alice Baker, o ataque à aula de dança alimenta sentimentos latentes de descontentamento. “Estas são tensões que se verificam em muitos países, atualmente. Eu incluiria os Estados Unidos da América [EUA], em certa medida, nessa situação, onde surgem sentimentos de nacionalismo, uma sensação de que as pessoas estão a ser deixadas para trás, uma sensação de que as liberdades das pessoas estão a ser negadas, de que a soberania da nação está em jogo. [EUA] E muito disto coincide com o aumento da imigração e a crise do custo de vida”, vincou.

Embora a polícia tenha trabalhado arduamente para restabelecer a ordem, foi prejudicada pela falta de informação, obrigando os agentes a responder às manifestações, em vez de tomarem medidas para as impedir. “Se soubessem onde as manifestações vão acontecer, obviamente poderiam fazer algo para as evitar”, disse à The Associated Press Peter Williams, antigo inspetor da polícia e, agora, professor no Centro de Estudos Avançados de Policiamento de Liverpool. As forças policiais ainda lutam para recuperarem dos cortes orçamentais que, em grande parte, desmantelaram o policiamento de proximidade, cuja grande vantagenm é a existência de um fluxo consistente de informações, o que está a faltar, especialmente em áreas de minorias.

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Entretanto, no dia 7 de agosto, à noite, manifestantes antirracismo saíram às ruas do Reino Unido.

A polícia britânica previu manifestações de extrema-direita em dezenas de locais, em todo o país, para essa noite, que não se concretizaram, porque os pacíficos manifestantes antirracismo apareceram em força. De facto, o grupo Stand Up to Racism e outros planearam contraprotestos, mas, na maioria dos locais, não encontraram oposição.

Em Londres, Bristol, Oxford, Liverpool e Birmingham, grandes multidões pacíficas reuniram-se à porta de agências e de escritórios de advogados especializados em imigração, que grupos da Internet tinham listado como possíveis alvos de atividades da extrema-direita.

Foi uma grande mudança em relação ao caos que irrompeu nas ruas de Inglaterra e de Belfast, na Irlanda do Norte, desde 30 de julho. Cerca de 1300 forças especializadas estavam de prevenção para o caso de problemas graves em Londres. Porém, ao início da noite, para lá de distúrbios dispersos e de algumas detenções, não se registaram problemas. E o chefe do Serviço de Polícia Metropolitana de Londres revelara que os agentes estavam concentrados na proteção dos advogados e dos serviços de imigração. “Protegeremos essas pessoas”, disse o Comissário Mark Rowley. “É completamente inaceitável, independentemente das suas opiniões políticas, intimidar qualquer setor de atividade legal, e não deixaremos que o sistema de asilo da imigração seja intimidado”, concluiu.

Uma multidão de apoiantes imigrantes cresceu rapidamente para várias centenas no bairro londrino de North Finchley, encontrando-se em grande parte sozinha com várias dezenas de polícias. A multidão gritava: “Refugiados bem-vindos” e “Londres contra o racismo”. Alguns seguravam cartazes onde se lia: “Parem a extrema-direita”, “a imigração não é um crime” e “Finchley contra o fascismo”.

A certa altura, um manifestante deu um murro num homem indisciplinado que gritava com o grupo e puxava a camisa para cima para mostrar uma tatuagem de águia. O homem foi levado e os agentes interrogaram um possível suspeito.

Também, a 10 de agosto, milhares de pessoas se reuniram nas ruas, em manifestações antirracistas realizadas em todo o Reino Unido. A organização Stand Up to Racism organizou até 22 manifestações “Stop the Far Right”, em cidades como Londres, Manchester e Birmingham, com os manifestantes a gritarem: “Os refugiados são bem-vindos aqui!”

Em Londres, milhares de pessoas (umas 2500) reuniram-se em frente à sede da Reform UK, para acusar o político britânico Nigel Farage de “incitar desordeiros fascistas”, antes de marcharem em frente à residência do primeiro-ministro, em Downing Street, em apoio aos refugiados.

Gary McFarlane, da organização Stand up for Racism, bradou: “A maioria das pessoas na Grã-Bretanha é a favor de uma sociedade multicultural e é contra a violência dos racistas e fascistas.”

O rei Carlos III aplaudiu os que saíram às ruas para se oporem ao racismo, pois a situação difícil com que o país se depara é um microcosmo dos desafios mais vastos com que se confrontam muitos países europeus, que enfrentam uma série de problemas conexos com a migração e com o aumento do sentimento de extrema-direita.

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É indesejável, mas provável, que manifestações xenófobas e racistas persistam, em vários países. Ao mesmo tempo que devem ser contrariadas pelas polícias e por manifestações de outra ordem, há que eliminar as causas que fazem crescer as extremas-direitas, nomeadamente, colmatando as lacunas económicas, sociais e culturais que as democracias não resolveram. Migrar é um direito e um fenómeno cada vez mais moral. Por isso, o discurso do ódio e da exclusão deve cessar.

2024.08.11 – Louro de Carvalho

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