sexta-feira, 9 de agosto de 2024

O caos na Saúde continua e agrava-se

 

Está visto que não vale a pena utilizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como arma de arremesso partidário.

Os recentes governos do Partido Socialista (PS) quiseram resolver os problemas do SNS herdados do tempo em que a troika ditava as reformas no país, sujeito a um programa de resgate económico-financeiro. Porém, eram resolvidos uns problemas e surgiam outros, pelo aumento de utentes, pela degradação de instalações, pela míngua de profissionais e pela falta de perspetiva de carreira dos mesmos. Criou-se a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), que dizia ter procedido à maior reforma alguma vez feita na Saúde. Não obstante, os problemas continuavam a aflorar, nomeadamente, no respeitante ao encerramento de serviços de urgências.

Com a vitória tangencial da Aliança Democrática (AD) nas últimas eleições legislativas, veio a promessa de imediata resolução dos problemas no SNS e foi apresentado, em 60 dias de governo, um programa de emergência para a Saúde. Todavia, pelos vistos, ainda só uma medida está em pé. O encerramento de serviços de urgências continua, sobretudo, no quadro de Obstetrícia e Ginecologia. Pior ainda: uma grávida que abortara e tinha um feto num saco não seria atendida no Hospital de Caldas da Rainha, se não fosse a teimosia dos bombeiros; e o encerramento dos serviços de urgência de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Leiria levou a que as grávidas fossem atendidas no Hospital Universitário de Coimbra e (esquisito e incómodo) que as parturientes fossem assistidas no Centro Materno Infantil do Norte (área do Hospital de Santo António), um muito bom serviço, mas muito distante de Leiria.       

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A 9 de agosto, véspera de um fim de semana com previsão do encerramento de 10 urgências de Obstetrícia/Ginecologia e Pediatria, Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), exigiu um ministro da Saúde “com competência para a função”, alertando para o risco de a atual “política catastrófica” poder resultar em mortes de grávidas e de bebés.

“Em última análise, podem morrer grávidas, podem morrer bebés e isto só se deve à política catastrófica deste Ministério de Saúde da Saúde, de Ana Paula Martins, isto não se deve a mais ninguém. E nós entendemos que estas medidas destroem o SNS”, disse a presidente da FNAM à agência Lusa, sustentando que, nestas condições, “era inevitável o que está a acontecer agora”.

“Isto só tem um responsável, chama-se Ministério da Saúde. Ana Paula Martins não teve vontade política para reverter esta situação e isto acontece, devido à falta de médicos”, acusou.

Questionada sobre se a falta de médicos para assegurar as urgências se deve ao facto de os profissionais estarem a apresentar minutas de escusa às horas extra, além das obrigatórias, a sindicalista disse que “nem é necessária a sua entrega, para as urgências não funcionarem” e salientou que o problema também se passa nas urgências de Pediatria, além da Obstetrícia, “que não têm sido muito faladas” e que “também são um drama”. E, considerando que a ministra da Saúde o que está a fazer é encerrar as urgências de Obstetrícia na região de Lisboa e Vale do Tejo, em Leiria e nas Caldas da Rainha, onde ocorreu uma situação dramática que a FNAM lamenta, referiu o caso da mulher que, após sofrer um aborto espontâneo viu, alegadamente, negada a assistência no hospital, cuja urgência obstétrica estava encerrada. Mais apontou que a situação do Hospital de Leiria terá a urgência ginecológica-obstétrica fechada até ao dia 19, pelo que as grávidas com partos programados terão de escolher entre ser encaminhadas para Coimbra ou Porto. “Isto é que parece ser o novo normal e esta ministra da Saúde está a obrigar as grávidas a fazer 200 quilómetros para irem ter os seus bebés”, acusou, alertando para os riscos desta situação.

A FNAM continua a defender e a exigir um SNS forte, mas “exige também um Ministério da Saúde, uma ministra da Saúde com competência para a sua função, ou seja, um ministro ou uma ministra que consiga, de facto, servir o SNS, porque isso não está a acontecer”. “Se as coisas tivessem sido feitas, logo a tempo e horas, quando tomaram posse, se tivéssemos um processo negocial em curso, capaz de devolver e fixar médicos ao SNS, se calhar a situação não seria tão dramática e não havia tantos profissionais a deixarem o SNS”, afirmou Joana Bordalo e Sá, insistindo que é necessário ter “pessoas com competência para o cargo e para a função”.

A sindicalista lamentou a “atitude de intransigência, inflexibilidade, em relação aos médicos” e assegurou que a FNAM vai continuar a defender os 31 mil médicos do SNS, dos quais dez mil são internos, e “têm que ser protegidos”. “A escolha de não negociar com os médicos foi deste ministério de Ana Paula Martins. Isto é muito urgente resolver”, vincou.

Segundo a FNAM, grande parte dos médicos já ultrapassou as 150 horas extraordinárias obrigatórias por lei e as 250 para os profissionais que estão no regime de dedicação plena.

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O PS acusou, a 6 de agosto, o governo de trazer instabilidade ao SNS, por ter interrompido a reforma que a DE-SNS tinha em curso, recusando lições de moral do Partido Social Democrata (PSD), nesta matéria. “Ao longo dos últimos meses, aquilo que nós temos visto é o governo trazer instabilidade para o SNS, em vez de cuidar de ultrapassar as dificuldades; e, quando no início deste mandato, o governo procurou questionar as funções da direção executiva, mudar a direção executiva e a sua forma de trabalhar, criou uma pressão adicional sobre o verão, que é, hoje, visível, com muito pouca transparência no funcionamento das urgências e muita instabilidade na resposta aos cidadãos”, defendeu a deputada Mariana Vieira da Silva.

A ex-ministra falava aos jornalistas, no Hospital Santa Maria, em Lisboa, depois de uma comitiva de deputados socialistas se ter reunido, naquela tarde, com a administração da instituição.

Interrogada sobre o desafio do líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, que aconselhou o PS a “meter a mão na consciência” e a aceitar que é preciso unidade para recuperar o SNS do “colapso que resultou dos últimos oito anos”, rejeitou lições, pois o que “estamos a viver é um agravar da situação, face ao ano passado”, por se “terem desmontado as estruturas e a organização que o professor Fernando Araújo e a direção executiva estavam a fazer das urgências”. Afirmou que nunca fugirá a responsabilidades do governo do PS, “mas era o que faltava não poder acompanhar a forma como os problemas são resolvidos no terreno e não poder criticar”.

A ex-ministra dos governos de António Costa atirou que há, na ótica do PSD, “uma dimensão de investimento na relação com o setor privado e não de reforço no investimento do setor público e o PS não acompanha”. Contudo, o PS está disponível para falar sobre questões de carreiras dos profissionais de saúde. “Agora, não podemos esconder que aquilo a que assistimos a partir de março: foi um desmontar do que estava feito: o afastamento de pessoas, a criação de instabilidade que começa na direção executiva e acaba no INEM”, frisou.

O governo criou a expectativa de resolução de um problema complexo em 60 dias, cabendo-lhe responder pelas expectativas que criou e não cumpriu, deixando os serviços “pior do que estiveram no verão passado”. “O problema não é novo, mas […] tem instrumentos para ser enfrentado, como seja a dedicação plena, os centros de responsabilidade integrada, mecanismos que permitam pagar mais aos profissionais, para assim os poder fixar nos territórios”, defendeu a deputada socialista.

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Apesar de o portal do SNS indicar que a urgência de obstetrícia do Hospital de Santa Maria está encerrada, o presidente do conselho de administração da Unidade Local de Saúde Santa Maria (ULSSM), Carlos Martins, esclarecendo que essa informação não está correta, rejeitou qualquer situação de caos no hospital. Ao mesmo tempo, sublinhou que a urgência de Obstetrícia, por enquanto, está aberta apenas para grávidas até às 22 semanas. Contudo, “por uma questão de segurança da mulher grávida e da sua família, se uma situação, mesmo dentro das 22 semanas, for detetada e for necessário uma intervenção em bloco cirúrgico” é aberta uma sala “de bloco cirúrgico no bloco central”. O novo Bloco de Partos – Maternidade Luís Mendes da Graça, cujas obras foram iniciadas no último trimestre de 2023, estará pronto a 1 de setembro. E Carlos Martins, defendendo uma articulação e complementaridade de resposta entre o setor público e privado, alertou para a necessidade de valorizar recursos humanos. “Podemos ter as melhores instalações, podemos ter a melhor tecnologia e podemos ter o maior número de portas abertas, agora, o essencial e determinante chama-se capital humano. Tem de haver capital humano, eu diria, em quantidade, para haver qualidade”, avisou.

Para o secretário-geral do PS, os “inúmeros Serviços de Ginecologia e Obstetrícia encerrados” nos últimos dias são a evidência de que “o Plano de Emergência e Transformação na Saúde da AD está a falhar”. Está em curso um plano “de degradação, não de transformação”, que reflete a “instabilidade que o atual governo introduziu na Área da Saúde”, atirou Pedro Nuno Santos.

Do lado do governo, há a consciência de que “a situação é crítica”. Mas “é o reflexo da forma como o PS deixou esta área”, aponta Miguel Guimarães, deputado do PSD e ex-bastonário da Ordem dos Médicos (OM), referindo que, “ao longo dos últimos anos, a economia tornou-se mais importante do que o Estado Social, que se foi degradando”. Esta situação, acusa Miguel Guimarães, foi herdada do PS e ouvir socialistas a criticá-la “é profundamente injusto”.

Referindo que o PS “não conseguiu alargar a reorganização dos Serviços de Urgência”, Miguel Guimarães sustenta que “a população médica reflete um pouco a população do país: está envelhecida e isso prejudica os serviços hospitalares” por causa das restrições profissionais, devido à idade. Além disso, releva que “o Plano de Emergência é para ser aplicado até 2025” e que não se resolvem estes problemas de um dia para o outro, são situações que levam tempo.

Na sequência dos vários encerramentos de Urgências, os socialistas manifestaram a intenção de se reunirem com as administrações das Unidades Locais de Saúde que tiveram Urgências de Ginecologia/Obstetrícia e Pediatria encerradas. Pela voz do deputado João Paulo Correia (que coordena a Área da Saúde no grupo parlamentar), o PS considera que estas reuniões permitirão ter “um nível de informação importante passar para o público e para a opinião pública”.

Reagindo ao caso da grávida das Caldas da Rainha, que lhe viu negada a assistência na Urgência, estando a sangrar e com o feto morto num saco após aborto espontâneo, João Paulo Correia atirou, na rede social X: “O Serviço Nacional de Saúde está nas mãos de uma Direção Executiva e de um Plano de Emergência impostos pelo atual governo. Há grávidas a fazer 200 quilómetros da sua zona de residência. A Ministra da Saúde está em silêncio. O primeiro-ministro tem de se explicar ao país.”

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A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) decidiu abrir inquérito ao caso da grávida que terá visto recusada a assistência no Hospital de Caldas da Rainha após ter sofrido um aborto espontâneo, quando estava com uma hemorragia e o feto morto num saco. O caso foi denunciado pelo comandante dos Bombeiros de Caldas da Rainha, Nélson Cruz, que afirmou que a sua corporação foi chamada à porta do Hospital de Caldas da Rainha após chamada da grávida para o 112. Aí, acrescentou, encontraram a mulher dentro do carro “com uma hemorragia abundante” e “um feto num saco”. O hospital recusou a entrada da grávida, segundo o comandante dos bombeiros e só após muita insistência destes é que a unidade de saúde, cuja urgência de obstetrícia estava encerrada, acabou por atender a mulher. 

Também a Entidade Reguladora da Saúde (ERS), no âmbito das suas competências, abriu inquérito ao atendimento no Hospital de Caldas da Rainha a uma mulher com hemorragias que sofreu um aborto espontâneo e prometeu colaborar com a IGAS.

Por fim, a OM (por que carga de água a OM?) vai, a pedido da DE-SNS, reorganizar tarefas de obstetras nas urgências, para evitar fechos em pleno.

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Não é o Ministério da Saúde máquina de triturar ministros(as). Os erros provêm da OM, que tem dificultado a entrada de alunos nas escolas de Medicina; da proliferação de especialidades e subespecialidades; da ditadura do Ministério das Finanças; da União Europeia (UE), que prefere despesas não estruturais a encargos com carreiras; e, sobretudo, da ideologia neoliberal, privilegiar, em detrimento do setor público, o privado e, a dourar a pílula, o social e o solidário.

2024.08.09 – Louro de Carvalho

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