Ocorreu, a 24 de agosto, o 33.º aniversário da Independência da Ucrânia –
sem fogo-de-artifício e sem outras atividades de festa nacional, quando a
guerra do país contra a agressão continuada da Rússia perfaz já 30 meses. Neste
contexto sombrio, o presidente ucraniano, Volodymyr
Zelenskyy, garantiu que o país irá “retribuir
o mal que lhe foi feito”.
Num vídeo
gravado na região de Sumy, que faz fronteira com a Rússia, o presidente
Volodymyr Zelenskyy disse aos Ucranianos que a guerra “regressou” à Rússia. “Aqueles
que procuram semear o mal na nossa terra colherão os frutos no seu próprio solo”,
disse o chefe de Estado, referindo-se à incursão da Ucrânia, no início do mês
de agosto, na região russa de Kursk, vincando: “A independência é o silêncio
que sentimos, quando perdemos o nosso povo. […] A independência desce ao abrigo,
durante um ataque aéreo, apenas para resistir e [para] se erguer, uma e outra
vez, para dizer ao inimigo: ‘Não conseguirás nada!’.”
Não se
previram fogos-de-artifício, desfiles nem concertos, mas os Ucranianos
assinalaram o dia com comemorações em memória dos civis e dos soldados mortos
na guerra. Nestes termos, inundaram as redes sociais com mensagens de gratidão
e apoio, saudando-se uns aos outros e agradecendo aos soldados da linha da
frente. Nesta efusão de unidade, há um reconhecimento partilhado de que os dois
anos e meio foram difíceis, com o cansaço a instalar-se cada vez mais.
“Há 913
dias, a Rússia lançou a sua guerra contra nós, em parte, através da região de
Sumy”, afirmou Zelenskyy, para acusar: “Violaram, não só as fronteiras
soberanas, mas também os limites da crueldade e do bom senso, movidos por um
desejo insaciável de nos destruírem.”
A incursão
surpresa da Ucrânia, na região russa de Kursk, deu surpreendente reviravolta à
guerra, acrescentando uma nova frente ao conflito para contrariar os avanços da
Rússia, na região de Donetsk, no Leste da Ucrânia. A Ucrânia apoderou-se,
rapidamente, de um território russo considerável, incluindo dezenas de pequenas
cidades, e capturou centenas de soldados russos, ações que podem influenciar a
trajetória da guerra.
“Aqueles que
tentaram transformar as nossas terras numa zona-tampão devem agora preocupar-se
com o facto de o seu próprio país não se tornar uma federação-tampão, disse o presidente
ucraniano, frisando: “É assim que a independência responde.”
As forças
armadas ucranianas afirmam deter 1200 quilómetros quadrados de território russo,
em Kursk; e, na última semana, lançaram ataques de drones que atingiram pontes
estratégicas e campos de aviação e bases de drones russos. No entanto, ao mesmo
tempo que a Ucrânia pressiona a sua ofensiva contra a Rússia, está também a
evacuar os residentes de Pokrovsk, no Leste da Ucrânia, já que as forças russas
estão, agora, a 10 quilómetros daquela cidade estratégica.
***
Além de ter prometido, que a Rússia sofrerá “retaliações”,
por ter invadido o seu país, Volodymyr Zelensky promulgou a lei que proíbe as
atividades da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo, que foi, durante
muito tempo, a principal da Ucrânia.
Esta denominação cristã cortou os laços com Moscovo, em 2022,
mas as autoridades ucranianas continuaram a considerá-la sob influência russa e
multiplicaram as ações legais que levaram à prisão de dezenas de padres. “Os
ortodoxos ucranianos hoje dão um passo para se libertarem dos demónios de
Moscovo”, declarou Zelensky.
O patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cyril, que está expressamente
do lado de Putin (em quem reconhece uma missão divina especial), acusou as
autoridades ucranianas de “perseguirem” os fiéis e pediu aos líderes de outras
confissões cristãs e organizações internacionais que “levantem suas vozes em defesa
dos fiéis perseguidos”.
O presidente ucraniano participou nas celebrações do 33.º aniversário
da independência, na praça Santa Sofia, em Kiev, ao lado do presidente polaco,
Andrzej Duda, e da primeira-ministra lituana, Ingrida Simonyte, dois
importantes aliados da Ucrânia contra a Rússia.
O presidente ucraniano revelou que as forças ucranianas
testaram, com sucesso, uma nova arma, o míssil drone “Palianytsia”, “muito mais
rápido e poderoso” do que os atualmente disponíveis.
Entretanto, a Rússia e a Ucrânia anunciaram, a 24 de agosto,
a troca de 230 prisioneiros de guerra, 115 de cada lado, entre eles, soldados
capturados pelas forças ucranianas na região de Kursk. Segundo o comissário
ucraniano para os direitos humanos, Dmytro Lubinets, 82 dos 115 prisioneiros
recuperados por Kiev participaram na defesa da fábrica Azovstal, durante o
cerco russo a Mariupol, em 2022, um marco na guerra que começou com a invasão
russa em fevereiro daquele ano.
Os Emirados Árabes Unidos (EAU), que atuaram como mediadores
da troca, apelaram a uma “desescalada” como “única forma de resolver o
conflito”.
A ofensiva ucraniana na região russa de Kursk levou as
hostilidades ao território do agressor, mas o epicentro dos combates continua a
ser a bacia do Donbass, no Leste da Ucrânia, onde as tropas russas são mais
equipadas e numerosas. As forças de Moscovo aproximaram-se de Pokrovsk, um
importante centro logístico com cerca de 53 mil habitantes, cujas autoridades
apelaram à evacuação urgente. E um bombardeamento russo matou cinco pessoas e
feriu outras cinco, no Dia da Independência, em Kostiantinivka, outra grande
cidade da região.
Por seu turno, a Ucrânia indicou que bombardeou um depósito
de munições, na região de Voronezh, no Oeste da Rússia. E as autoridades locais
russas relataram ataques de drones e a evacuação de uma cidade. E considera que
a sua incursão procura criar uma “zona de segurança”, forçar Moscovo a
redistribuir forças de outras frentes, além de usar essas regiões como moeda de
troca em possíveis negociações de paz. Contudo, a ofensiva em Kursk não parece,
até agora, ter aliviado a pressão russa no Leste da Ucrânia.
***
A 24 de agosto de 1991, a Ucrânia votou a secessão do país da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou União Soviética, o que
foi confirmado em referendo nacional, a 1 de dezembro, com votação esmagadora
pela independência – incluindo nas províncias supostamente pró-russas do Leste,
como Lugansk e Donetsk. Por irónica coincidência, 24 de agosto deste ano perfaz
três anos e meio ano de guerra.
O caminho da
independência começou a ser trilhado no início de 1990, com uma manifestação
popular a 21 de janeiro: uma corrente humana com 300 mil pessoas a unir a
capital, Kiev, a Lviv, a Oeste, perto da fronteira com a Polónia.
Este
protesto pacífico a exigir a independência emulava a “cadeia báltica”, uma outra
corrente humana com cerca de dois milhões de pessoas a atravessar os três
estados bálticos, Estónia, Letónia e Lituânia, no ano anterior, a 23 de agosto
de 1989.
Foi um dia
não escolhido ao acaso: assinalava-se meio século da assinatura do pacto
Molotov-Ribbentrop, entre a Alemanha Nazi e a URSS, que levaria, dias depois, à
invasão dupla da Polónia e ao início da II Guerra Mundial. Os países bálticos
foram ocupados pelos soviéticos, em 1940, ao abrigo desse acordo.
De 1989 a
1991, a URSS encontrava-se em estado de implosão, com várias das suas
repúblicas a avançarem com processos unilaterais de crescente autonomia. Tal
fraqueza facilitou a Declaração da Soberania Estatal da Ucrânia, aprovada pelo
Conselho Supremo da República Socialista Soviética da Ucrânia, a 16 de julho de
1990, com 355 votos a favor e quatro contra. O dia chegou a ser comemorado como
feriado, um ano depois, no 1.º aniversário da assinatura da declaração.
Porém, esse
documento, apesar de implementar uma série de medidas que, na prática, tornavam
a Ucrânia independente, ainda não era a declaração formal de completa
independência. A 24 de agosto de 1991, o Soviete Supremo da Ucrânia (o órgão
legislativo da República, antecessor da Verkhovna Rada, parlamento ucraniano)
aprovou, finalmente, com 321 votos a favor, dois contra e seis abstenções, a
Declaração de Independência da Ucrânia. A decisão veio na sequência da
tentativa de golpe de Estado da URSS, por parte de membros da linha dura do
Partido Comunista.
Assim, o 24
de agosto passou a ser o dia nacional da Ucrânia, substituindo o anterior dia identitário
da nação ucraniana – 22 de junho de 1918, quando foi proclamada a República
Popular da Ucrânia, que existiu, durante um curto período, antes de ser
engolida pelos bolcheviques russos e integrada, enquanto república, na URSS.
A 1 dezembro
de 1991, a independência foi confirmada pelo voto popular, num referendo em
todo o país, que coincidiu com as primeiras eleições presidenciais ucranianas.
O apoio da população à independência da Ucrânia venceu com uns categóricos 93%.
Mesmo províncias onde a maior parte das pessoas falava russo ou se identificava
como etnicamente russa votaram claramente a favor da independência. Em Lugansk
e em Donetsk, as alegadas “repúblicas separatistas”, 83% da população votou
pela independência. Mesmo na Crimeia, historicamente ligada à Rússia (em 1954,
Nikita Khrushchev transferira o controlo da província da Rússia para a
Ucrânia), 54% do povo votou pelo “sim” à independência.
Muitos Ucranianos
defendiam, então, que o Dia da Independência deveria ser o do referendo, mas
manteve-se o 24 de agosto.
Todos os
anos, o dia era efusivamente celebrado por todo o país. Porém, desde 24 agosto
de 2022, os festejos estão proibidos, por decisão do presidente ucraniano.
Volodymyr Zelensky avisou que a Rússia estava a preparar, para aquele dia “um
ataque particularmente sórdido” contra a Ucrânia.
***
E a guerra
continua, apesar de ter havido algumas tentativas de mediação (Turquia, China
e, atualmente a Índia, esta no sentido que agrada a Zelensky), mas com os beligerantes
a imporem, cada um, as suas condições em absoluto.
O presidente
dos Estados Unidos da América (EUA) prometeu um novo plano de apoio militar à
Ucrânia e a União Europeia (UE) mantém a sua incontornável posição de apoio.
Vladimir Putin pensava que o governo ucraniano cairia, que o presidente fugiria
e que a UE ficaria dividida, incapaz de congregar uma reação vigorosa. Contudo,
os Ucranianos mobilizaram‑se em defesa do país e da sua soberania, mostrando impressionante
bravura; e a UE e os seus parceiros demonstraram unidade e determinação, sem
precedentes, no apoio à Ucrânia em todos os domínios, em defesa do direito
internacional e da Carta das Nações Unidas.
Esta não é uma guerra só europeia, nem no atinente
aos princípios envolvidos, nem respeitante aos efeitos. Num Mundo em que um
país de maiores dimensões pudesse, sem mais, invadir o vizinho e violar, de
forma tão flagrante, o princípio da não utilização da força, todos estaríamos
em insegurança. A guerra tem repercussões maciças em todo o Mundo, sendo a mais
notória o excessivo aumento dos preços da energia e dos alimentos. E, como é
habitual, são as pessoas com menos possibilidades económicas que suportam com o
fardo mais pesado.
A UE está ao lado da Ucrânia, desde o início,
ciente de que é a segurança comum que está em perigo. Adotou inúmeros pacotes
de sanções,
muitas das quais recaem sobre os cidadãos. Pela primeira vez, financiou a
entrega de apoio militar a um país sob ataque, a fim de lhe dar condições para
ripostar. Presta apoio humanitário e assistência macrofinanceira para o
manter a funcionar. E aceitou que a Ucrânia se torne futuro membro da UE,
porque faz parte da sua família.
Graças também ao apoio militar do Ocidente, a Ucrânia travou a
ofensiva russa e vem libertando algumas zonas. Houve vários ataques eficazes
contra depósitos de munições e bases militares bem no interior do território
ilegalmente controlado pela Rússia, ataques com enorme efeito simbólico e
psicológico na Rússia e na elevação a moral dos Ucranianos.
***
É imperioso defender a liberdade, mas respeitar os acordos internacionais
e não aproveitar a guerra para desdizer dos valores, dos princípios, dos direitos
e dos deveres que preconizamos.
2024.08.24 –
Louro de Carvalho
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