sábado, 24 de agosto de 2024

Discurso de vingança no 33.º aniversário da independência da Ucrânia

 

Ocorreu, a 24 de agosto, o 33.º aniversário da Independência da Ucrânia – sem fogo-de-artifício e sem outras atividades de festa nacional, quando a guerra do país contra a agressão continuada da Rússia perfaz já 30 meses. Neste contexto sombrio, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, garantiu que o país irá “retribuir o mal que lhe foi feito”.

Num vídeo gravado na região de Sumy, que faz fronteira com a Rússia, o presidente Volodymyr Zelenskyy disse aos Ucranianos que a guerra “regressou” à Rússia. “Aqueles que procuram semear o mal na nossa terra colherão os frutos no seu próprio solo”, disse o chefe de Estado, referindo-se à incursão da Ucrânia, no início do mês de agosto, na região russa de Kursk, vincando: “A independência é o silêncio que sentimos, quando perdemos o nosso povo. […] A independência desce ao abrigo, durante um ataque aéreo, apenas para resistir e [para] se erguer, uma e outra vez, para dizer ao inimigo: ‘Não conseguirás nada!’.”

Não se previram fogos-de-artifício, desfiles nem concertos, mas os Ucranianos assinalaram o dia com comemorações em memória dos civis e dos soldados mortos na guerra. Nestes termos, inundaram as redes sociais com mensagens de gratidão e apoio, saudando-se uns aos outros e agradecendo aos soldados da linha da frente. Nesta efusão de unidade, há um reconhecimento partilhado de que os dois anos e meio foram difíceis, com o cansaço a instalar-se cada vez mais.

“Há 913 dias, a Rússia lançou a sua guerra contra nós, em parte, através da região de Sumy”, afirmou Zelenskyy, para acusar: “Violaram, não só as fronteiras soberanas, mas também os limites da crueldade e do bom senso, movidos por um desejo insaciável de nos destruírem.”

A incursão surpresa da Ucrânia, na região russa de Kursk, deu surpreendente reviravolta à guerra, acrescentando uma nova frente ao conflito para contrariar os avanços da Rússia, na região de Donetsk, no Leste da Ucrânia. A Ucrânia apoderou-se, rapidamente, de um território russo considerável, incluindo dezenas de pequenas cidades, e capturou centenas de soldados russos, ações que podem influenciar a trajetória da guerra.

“Aqueles que tentaram transformar as nossas terras numa zona-tampão devem agora preocupar-se com o facto de o seu próprio país não se tornar uma federação-tampão, disse o presidente ucraniano, frisando: “É assim que a independência responde.”

As forças armadas ucranianas afirmam deter 1200 quilómetros quadrados de território russo, em Kursk; e, na última semana, lançaram ataques de drones que atingiram pontes estratégicas e campos de aviação e bases de drones russos. No entanto, ao mesmo tempo que a Ucrânia pressiona a sua ofensiva contra a Rússia, está também a evacuar os residentes de Pokrovsk, no Leste da Ucrânia, já que as forças russas estão, agora, a 10 quilómetros daquela cidade estratégica.

***

Além de ter prometido, que a Rússia sofrerá “retaliações”, por ter invadido o seu país, Volodymyr Zelensky promulgou a lei que proíbe as atividades da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo, que foi, durante muito tempo, a principal da Ucrânia.

Esta denominação cristã cortou os laços com Moscovo, em 2022, mas as autoridades ucranianas continuaram a considerá-la sob influência russa e multiplicaram as ações legais que levaram à prisão de dezenas de padres. “Os ortodoxos ucranianos hoje dão um passo para se libertarem dos demónios de Moscovo”, declarou Zelensky.

O patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cyril, que está expressamente do lado de Putin (em quem reconhece uma missão divina especial), acusou as autoridades ucranianas de “perseguirem” os fiéis e pediu aos líderes de outras confissões cristãs e organizações internacionais que “levantem suas vozes em defesa dos fiéis perseguidos”.

O presidente ucraniano participou nas celebrações do 33.º aniversário da independência, na praça Santa Sofia, em Kiev, ao lado do presidente polaco, Andrzej Duda, e da primeira-ministra lituana, Ingrida Simonyte, dois importantes aliados da Ucrânia contra a Rússia.

O presidente ucraniano revelou que as forças ucranianas testaram, com sucesso, uma nova arma, o míssil drone “Palianytsia”, “muito mais rápido e poderoso” do que os atualmente disponíveis.

Entretanto, a Rússia e a Ucrânia anunciaram, a 24 de agosto, a troca de 230 prisioneiros de guerra, 115 de cada lado, entre eles, soldados capturados pelas forças ucranianas na região de Kursk. Segundo o comissário ucraniano para os direitos humanos, Dmytro Lubinets, 82 dos 115 prisioneiros recuperados por Kiev participaram na defesa da fábrica Azovstal, durante o cerco russo a Mariupol, em 2022, um marco na guerra que começou com a invasão russa em fevereiro daquele ano.

Os Emirados Árabes Unidos (EAU), que atuaram como mediadores da troca, apelaram a uma “desescalada” como “única forma de resolver o conflito”.

A ofensiva ucraniana na região russa de Kursk levou as hostilidades ao território do agressor, mas o epicentro dos combates continua a ser a bacia do Donbass, no Leste da Ucrânia, onde as tropas russas são mais equipadas e numerosas. As forças de Moscovo aproximaram-se de Pokrovsk, um importante centro logístico com cerca de 53 mil habitantes, cujas autoridades apelaram à evacuação urgente. E um bombardeamento russo matou cinco pessoas e feriu outras cinco, no Dia da Independência, em Kostiantinivka, outra grande cidade da região.

Por seu turno, a Ucrânia indicou que bombardeou um depósito de munições, na região de Voronezh, no Oeste da Rússia. E as autoridades locais russas relataram ataques de drones e a evacuação de uma cidade. E considera que a sua incursão procura criar uma “zona de segurança”, forçar Moscovo a redistribuir forças de outras frentes, além de usar essas regiões como moeda de troca em possíveis negociações de paz. Contudo, a ofensiva em Kursk não parece, até agora, ter aliviado a pressão russa no Leste da Ucrânia.

***

A 24 de agosto de 1991, a Ucrânia votou a secessão do país da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou União Soviética, o que foi confirmado em referendo nacional, a 1 de dezembro, com votação esmagadora pela independência – incluindo nas províncias supostamente pró-russas do Leste, como Lugansk e Donetsk. Por irónica coincidência, 24 de agosto deste ano perfaz três anos e meio ano de guerra.

O caminho da independência começou a ser trilhado no início de 1990, com uma manifestação popular a 21 de janeiro: uma corrente humana com 300 mil pessoas a unir a capital, Kiev, a Lviv, a Oeste, perto da fronteira com a Polónia.

Este protesto pacífico a exigir a independência emulava a “cadeia báltica”, uma outra corrente humana com cerca de dois milhões de pessoas a atravessar os três estados bálticos, Estónia, Letónia e Lituânia, no ano anterior, a 23 de agosto de 1989.

Foi um dia não escolhido ao acaso: assinalava-se meio século da assinatura do pacto Molotov-Ribbentrop, entre a Alemanha Nazi e a URSS, que levaria, dias depois, à invasão dupla da Polónia e ao início da II Guerra Mundial. Os países bálticos foram ocupados pelos soviéticos, em 1940, ao abrigo desse acordo.

De 1989 a 1991, a URSS encontrava-se em estado de implosão, com várias das suas repúblicas a avançarem com processos unilaterais de crescente autonomia. Tal fraqueza facilitou a Declaração da Soberania Estatal da Ucrânia, aprovada pelo Conselho Supremo da República Socialista Soviética da Ucrânia, a 16 de julho de 1990, com 355 votos a favor e quatro contra. O dia chegou a ser comemorado como feriado, um ano depois, no 1.º aniversário da assinatura da declaração.

Porém, esse documento, apesar de implementar uma série de medidas que, na prática, tornavam a Ucrânia independente, ainda não era a declaração formal de completa independência. A 24 de agosto de 1991, o Soviete Supremo da Ucrânia (o órgão legislativo da República, antecessor da Verkhovna Rada, parlamento ucraniano) aprovou, finalmente, com 321 votos a favor, dois contra e seis abstenções, a Declaração de Independência da Ucrânia. A decisão veio na sequência da tentativa de golpe de Estado da URSS, por parte de membros da linha dura do Partido Comunista.

Assim, o 24 de agosto passou a ser o dia nacional da Ucrânia, substituindo o anterior dia identitário da nação ucraniana – 22 de junho de 1918, quando foi proclamada a República Popular da Ucrânia, que existiu, durante um curto período, antes de ser engolida pelos bolcheviques russos e integrada, enquanto república, na URSS.

A 1 dezembro de 1991, a independência foi confirmada pelo voto popular, num referendo em todo o país, que coincidiu com as primeiras eleições presidenciais ucranianas. O apoio da população à independência da Ucrânia venceu com uns categóricos 93%. Mesmo províncias onde a maior parte das pessoas falava russo ou se identificava como etnicamente russa votaram claramente a favor da independência. Em Lugansk e em Donetsk, as alegadas “repúblicas separatistas”, 83% da população votou pela independência. Mesmo na Crimeia, historicamente ligada à Rússia (em 1954, Nikita Khrushchev transferira o controlo da província da Rússia para a Ucrânia), 54% do povo votou pelo “sim” à independência.

Muitos Ucranianos defendiam, então, que o Dia da Independência deveria ser o do referendo, mas manteve-se o 24 de agosto.

Todos os anos, o dia era efusivamente celebrado por todo o país. Porém, desde 24 agosto de 2022, os festejos estão proibidos, por decisão do presidente ucraniano. Volodymyr Zelensky avisou que a Rússia estava a preparar, para aquele dia “um ataque particularmente sórdido” contra a Ucrânia.

***

E a guerra continua, apesar de ter havido algumas tentativas de mediação (Turquia, China e, atualmente a Índia, esta no sentido que agrada a Zelensky), mas com os beligerantes a imporem, cada um, as suas condições em absoluto.  

O presidente dos Estados Unidos da América (EUA) prometeu um novo plano de apoio militar à Ucrânia e a União Europeia (UE) mantém a sua incontornável posição de apoio.

Vladimir Putin pensava que o governo ucraniano cairia, que o presidente fugiria e que a UE ficaria dividida, incapaz de congregar uma reação vigorosa. Contudo, os Ucranianos mobilizaram­‑se em defesa do país e da sua soberania, mostrando impressionante bravura; e a UE e os seus parceiros demonstraram unidade e determinação, sem precedentes, no apoio à Ucrânia em todos os domínios, em defesa do direito internacional e da Carta das Nações Unidas.

Esta não é uma guerra só europeia, nem no atinente aos princípios envolvidos, nem respeitante aos efeitos. Num Mundo em que um país de maiores dimensões pudesse, sem mais, invadir o vizinho e violar, de forma tão flagrante, o princípio da não utilização da força, todos estaríamos em insegurança. A guerra tem repercussões maciças em todo o Mundo, sendo a mais notória o excessivo aumento dos preços da energia e dos alimentos. E, como é habitual, são as pessoas com menos possibilidades económicas que suportam com o fardo mais pesado.

A UE está ao lado da Ucrânia, desde o início, ciente de que é a segurança comum que está em perigo. Adotou inúmeros pacotes de sanções, muitas das quais recaem sobre os cidadãos. Pela primeira vez, financiou a entrega de apoio militar a um país sob ataque, a fim de lhe dar condições para ripostar. Presta apoio humanitário e assistência macrofinanceira para o manter a funcionar. E aceitou que a Ucrânia se torne futuro membro da UE, porque faz parte da sua família.

Graças também ao apoio militar do Ocidente, a Ucrânia travou a ofensiva russa e vem libertando algumas zonas. Houve vários ataques eficazes contra depósitos de munições e bases militares bem no interior do território ilegalmente controlado pela Rússia, ataques com enorme efeito simbólico e psicológico na Rússia e na elevação a moral dos Ucranianos.

***

É imperioso defender a liberdade, mas respeitar os acordos internacionais e não aproveitar a guerra para desdizer dos valores, dos princípios, dos direitos e dos deveres que preconizamos.

2024.08.24 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário