domingo, 28 de julho de 2024

“Quem cuida de nós não pode cuidar bem, se não está bem”

 

A situação é denunciada numa peça jornalística de Fernanda Câncio, no Diário de Notícias (DN) online, a 28 de julho, vincando ser a primeira vez que os elementos da Polícia de Segurança Pública (PSP) ou da Guarda Nacional Republicana (GNR) foram inquiridos sobre práticas de assédio moral no trabalho. Todavia, as corporações (leia-se: dirigentes) recusaram participar no inquérito, que não visa objetivos policiais, mas o desenvolvimento de um trabalho académico.

Na verdade, o trabalho foi desenvolvido por Sandra Cerdeira de Campos Costa, cabo da GNR e mestranda em ciências forenses do Instituto Universitário de Ciências de Saúde (IUCS), no âmbito da sua tese de mestrado sob o título “Assédio Moral nas Forças de Segurança: será preocupante?”, tendo sido, de acordo com Áurea Carvalho, doutorada em Ciências Forenses e orientadora da tese, o primeiro estudo a abordar este fenómeno nas forças policiais portuguesas.

O objetivo, segundo Áurea Carvalho, foi “visibilizar o assédio moral nas polícias, garantindo que “não se fecha mais os olhos a esta matéria”, visto que passa a haver “uma consciência real e quantitativa, indicadores científicos de que isto é algo vivido pelas forças de segurança”, o que alertará “as organizações para a situação” e as estimulará a “pôr em prática estratégias de combate ao assédio moral no seu seio, melhorando a qualidade de vida nas nossas forças policiais”. Com efeito, quem cuida de nós não pode cuidar bem, se não está bem.

Antes de prosseguir, é de considerar que o estudo fala em bullying e em assédio moral; e poderia mencionar-se, ainda, o mobbing. Ora, apesar de serem conceitos diferentes, os efeitos, em ambiente de trabalho, são os mesmos. Para alguns, o mobbing refere-se a perseguições coletivas ou à violência organizacional, enquanto o bullying está mais conexo com a humilhação individual, consistindo numa atitude de força. Por sua vez, o assédio moral carateriza-se por agressões mais subtis, repetitivas e mais difíceis de detetar. Contudo, segundo Duncan Chappell e Vittorio Di Martino, tende-se para uma assimilação de conceitos, dado que o impacto sobre os destinatários parece ser semelhante. Há sempre desequilíbrio, face à situação de poder, de que resulta violência (física ou psicológica) e humilhação sobre a parte mais fraca.

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O estudo pretendia chegar aos mais de 44 mil efetivos da PSP e GNR, pela colaboração das corporações, mas estas recusaram. Uma das forças de segurança nem respondeu ao contacto fornecido pela mestranda e pela orientadora. Foi, pois, necessário encontrar alternativa para chegar aos polícias e aos guardas, optando-se pelas duas principais associações sindicais – a Associação Socioprofissional da Polícia de Segurança Pública (ASPP) e a Associação de Profissionais da GNR (APG-GNR) – e ajustando as expectativas para um universo que é cerca de um terço do total. Desses 15 mil potenciais respondentes, só 302 participaram no inquérito, com 93 (30%) a assumir terem sido, ou estarem a ser, vítimas de assédio moral. E, desses, 10,8% reportaram ideação suicida, e 11,8% ideação homicida. Só 22,6% denunciaram a situação. Na maioria dos casos (84,9%), o assediador é um superior hierárquico, e o assédio refere-se a situações em que ou não é permitido ao respondente falar, ou é interrompido (77,8%); a crítica ao trabalho (74,8%); a calúnias e a falatório “pelas costas” (58,3%).

Há indicação de “ataques físicos leves, como advertência” (18,3%); ameaças de agressões (17,2%); “danos aos bens ou à viatura” (16,1%); e “agressões sexuais físicas diretas (7,5%).

A estratégia mais comummente adotada foi a de tentar evitar os agressores (34,4%), seguida do recurso à baixa médica (29%). Só 22,6% das reportadas vítimas de assédio efetuaram denúncia do facto, tendo havido punição do assediador só num caso. Em cinco situações, a punição ou transferência recaiu sobre o denunciante; em 29 casos, os superiores hierárquicos ignoraram a denúncia. Nenhum dos 64 participantes que não denunciou o assédio indicou os motivos para não o fazer. Assim, não há resultados relativos a esta questão para apresentar e discutir.

Este silêncio resulta do facto de muitos dos atingidos temerem represálias, do facto de outros se refugiarem no álcool e alguns no suicídio. Segundo a APG-GNR, em Portugal, não há registos oficiais públicos do número de suicídios na GNR, apenas sendo divulgado que o número de suicídios nas forças de segurança é o dobro do da restante população. E Sandra Cerqueira adverte: “As instituições deveriam procurar identificar o que leva os seus profissionais a adotar estes comportamentos, muitas vezes, de fim de linha.”

Entre as consequências reportadas do assédio – nas quais, à cabeça, surgem “dificuldade em adormecer” (60,2%), “ansiedade” (58,1%), seguidas por sintomas, como “nó na garganta” (28%), “fadiga permanente” (26,9%), “palpitações” e “crises de choro” (20,4%) e “aumento nos conflitos familiares” (22,6%) –, encontram-se, como já referido, ideações suicidas e homicidas, assim como “aumento do consumo de antidepressivos e ansiolíticos” (10,8%) e da “visão negativa dos outros e do Mundo” (6,5%).

Embora reconheça que os participantes no inquérito constituem uma amostra reduzida, face ao efetivo total, a autora sustenta que os resultados são muito úteis para as respetivas instituições tomarem consciência do fenómeno que têm dentro de portas e para repensarem as medidas imediatas de combate e de prevenção das condutas nefastas que se definem como ‘hábitos e costumes’, mas que são, na realidade, “comportamentos antiéticos. Efetivamente, como aduz, “se, numa amostra de 302 participantes, cerca de um terço já foram ou são vítimas de assédio moral, num universo total de cerca de 44367 elementos das forças de segurança […], provavelmente a percentagem seria igual, o que é assustador e alarmante”.

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O assédio moral faz parte do quotidiano, nem que seja o chefe a ralhar com alguém perante toda a gente – o que não era permitido no anterior regulamento disciplinar da GNR. E há uma questão estrutural: nem todos são bons chefes, bons comandantes; não basta o curso, pois comandar pessoas não é para todos. Não é o “quero, posso e mando” que faz o líder. Ora, tudo isso, junto com o restante – fracas condições de serviço, fracos salários – pode levar àquilo de que se fala, mas que se esconde: os suicídios, que sucedem, às vezes, porque os guardas são maltratados no serviço. “Muitas vezes o comando da GNR e o próprio Ministério dizem que é por questões pessoais – não sei como fazem essa triagem, como veem isso”, atalha César Nogueira, presidente da APG-GNR, que olha para a baixa taxa de participação neste primeiro inquérito como evidência do clima que se vive nas corporações: “Só pelo número das respostas, pode ver-se que é um problema que muitos têm receio em expor. Tanto mais que se trata, no caso da guarda, de uma estrutura muito hierarquizada, militar… Sei que a camarada tentou fazer o inquérito através da GNR, e recusaram. […] Por aí se vê que querem esconder o que existe.”

Na ASPP, a consciência do problema de assédio na corporação e de que é preciso trazê-lo à luz do dia levou à criação de um gabinete, com advogados e psicólogos, e à disponibilização, em maio, de um endereço de email específico para os polícias poderem reportar, confidencialmente, tais situações. Foi também solicitada uma reunião com a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) – que fiscaliza as polícias – para a alertar para o fenómeno e apresentar algumas queixas. Ações, explica o presidente desta organização sindical, Paulo Jorge Santos, que surgiram na sequência da receção pela ASPP de emails e de reclamações relacionados com assédio.

Sobre a recetividade da hierarquia para abordar a questão, Paulo Jorge Santos é diplomático: “A PSP evoluiu muito, nestes 30 anos, mas as resistências sempre existiram por parte da hierarquia, por isso é que colocámos isto na IGAI, onde as queixas estão a seguir o seu curso.”

Assumindo não serem, para ele, surpresa os resultados do inquérito, incluindo o facto de haver quem, nas polícias, se diga vítima de agressões,  e de assédio sexual físico, por parte de outros polícias, considera: “Tivemos conhecimento de situações dessas. Em relação ao assédio sexual, durante uma conferência ouvimos mulheres que estão na PSP, há muitos anos, há décadas, e ali, naquele ambiente protegido, tiveram coragem de falar de coisas das quais, se calhar, nunca tinham falado. Foi duro.

Porém, o dirigente sindical da PSP está desiludido com a resposta à criação do gabinete e do email. Como o seu homólogo da AGP-GNR, associa o fraco retorno à “existência de muita reserva e resistência, por parte daqueles que são vítimas, em falar”, porque “têm medo de fazer denúncia”.

A esse medo junta-se, para César Nogueira, o facto de não existir uma entidade vocacionada para receção de denúncias deste tipo. A PSP e a GNR não são abrangidas pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT); e a IGAI, que não serve para isso. Ora, é necessária a fiscalização da higiene e da saúde no trabalho. Já foram feitas denúncias à IGAI, que pergunta à GNR se aquilo se passa ou não. E a GNR dize que não, a não ser que seja caso público ou flagrante.

É certo que pode haver denúncias de assédio não sustentadas, pois, às vezes, há a noção subjetiva de maus tratos, que não são reais. Por isso, tem de haver uma estrutura externa, independente, que pode ser nos moldes da ACT, para fiscalizar, receber e investigar as denúncias, seja de assédio moral seja de condições de trabalho em geral, a começar pelas instalações.

Outra questão é a inexistência, no regulamento disciplinar da GNR e no Estatuto Disciplinar da PSP, de alusão a assédio ou a bullying. Há, ainda, uma cultura castrense vincada, muito com base no que era a disciplina nas Forças Armadas. Ora, no dizer do dirigente da APG-GNR, “os regulamentos têm de se modernizar, de se adaptar às novas realidades”, mas “o que se tem feito é enterrar a cabeça na areia e, depois, quando acontece alguma desgraça, é que se vai correr atrás do prejuízo”. E Paulo Jorge Santos, questionado sobre se considera necessário que o bullying e o assédio sejam especificamente abordados num código ou regulamento da PSP, hesita: “Admito que seja importante um código de conduta, mas, no caso da PSP, os mecanismos existem. O necessário, na minha opinião, é que as pessoas ganhem consciência do fenómeno e coragem para o expor. Porque, se não denunciarem, nada muda.”

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A preocupação com o assédio moral, bullying, e como outros tipos de assédio, como o sexual, nas forças de segurança está presente em vários países. Por exemplo, no Reino Unido, a Federação da Polícia de Inglaterra e Gales desde, pelo menos, 2017 elabora materiais informativos a explicar o bullying, como combatê-lo e como pode a federação ajudar. E o UNISON, um dos maiores sindicatos britânicos do setor público, em 2002, efetuou o primeiro inquérito sobre as atitudes do staff policial. Então, 28% dos inquiridos assumiram que tinham sido vítimas de bullying ou o tinham testemunhado  sobre colegas. Seis anos depois, repetindo o inquérito, 21% disseram ter sido vítimas e 26% assistido a situações de bullying sobre colegas.

Em 2013, um relatório da Independent Police Commission (desde 2018, Independent Office for Police Conduct), reportou que um inquérito efetuado no universo policial, 57% dos respondentes tinham experienciado bullying, em alguma altura, e 30% sempre, ou parte do tempo. O governo de Theresa May anunciou uma reforma para reforço da integridade policial e pediu ao College of Policing um Código de Ética sobre princípios e padrões da profissão e comportamento profissional das polícias. O UNISON exigiu que fossem abordados o bullying e o assédio. E o Código estipula que o comportamento e a linguagem polícias “não podem ser percebidos como abusivos, opressivos, assediadores, vitimizadores ou ofensivos pelo público ou pelos colegas”.

O UNISON repetiu o inquérito em 2015, concluindo que as mulheres tendem mais a apontar o bullying:  58% das mulheres disseram tê-lo sofrido, para 45,36% dos homens.

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A ministra da Administração Interna prometeu a reforma das polícias. Até nomeou um novo diretor nacional. Contemplará toda esta problemática: segurança, bullying, mobbing, assédio, higiene e saúde no trabalho, descanso, qualidade das instalações, aumento de efetivos, dignificação dos agentes e dos guardas, cuidado na escolha das chefias e comandos, etc.?

2024.07.28 – Louro de Carvalho

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