A situação é denunciada numa peça jornalística de
Fernanda Câncio, no Diário de Notícias
(DN) online, a 28 de julho, vincando ser a primeira vez que os elementos
da Polícia de Segurança Pública (PSP) ou da Guarda Nacional Republicana (GNR)
foram inquiridos sobre práticas de assédio moral no trabalho. Todavia, as
corporações (leia-se: dirigentes) recusaram participar no inquérito, que não
visa objetivos policiais, mas o desenvolvimento de um trabalho académico.
Na verdade, o trabalho foi desenvolvido por Sandra
Cerdeira de Campos Costa, cabo da GNR e mestranda em ciências forenses do
Instituto Universitário de Ciências de Saúde (IUCS), no âmbito da sua tese de
mestrado sob o título “Assédio Moral nas Forças de Segurança: será
preocupante?”, tendo sido, de acordo com Áurea Carvalho, doutorada em Ciências
Forenses e orientadora da tese, o primeiro estudo a abordar este fenómeno nas
forças policiais portuguesas.
O objetivo, segundo Áurea Carvalho, foi “visibilizar o assédio moral nas polícias,
garantindo que “não se fecha mais os olhos a esta matéria”, visto que
passa a haver “uma consciência real e quantitativa, indicadores científicos de
que isto é algo vivido pelas forças de segurança”, o que alertará “as
organizações para a situação” e as estimulará a “pôr em prática estratégias de
combate ao assédio moral no seu seio, melhorando a qualidade de vida nas nossas
forças policiais”. Com efeito, quem cuida de nós não pode cuidar bem, se não está
bem.
Antes de prosseguir, é de considerar que o estudo fala
em bullying e em assédio moral; e poderia mencionar-se, ainda, o mobbing. Ora, apesar de serem
conceitos diferentes, os efeitos, em ambiente de trabalho, são os mesmos. Para
alguns, o mobbing refere-se a
perseguições coletivas ou à violência organizacional, enquanto o bullying está mais conexo com a humilhação
individual, consistindo numa atitude de força. Por sua vez, o assédio moral
carateriza-se por agressões mais subtis, repetitivas e mais difíceis de
detetar. Contudo, segundo Duncan Chappell e Vittorio Di Martino, tende-se para
uma assimilação de conceitos, dado que o impacto sobre os destinatários parece
ser semelhante. Há sempre desequilíbrio, face à situação de poder, de que
resulta violência (física ou psicológica) e humilhação sobre a parte mais
fraca.
***
O estudo pretendia chegar aos mais de 44 mil efetivos
da PSP e GNR, pela colaboração das corporações, mas estas recusaram. Uma das
forças de segurança nem respondeu ao contacto fornecido pela mestranda e pela
orientadora. Foi, pois, necessário encontrar alternativa para chegar aos
polícias e aos guardas, optando-se pelas duas principais associações sindicais
– a Associação Socioprofissional da Polícia de Segurança Pública (ASPP) e a
Associação de Profissionais da GNR (APG-GNR) – e ajustando as expectativas para
um universo que é cerca de um terço do total. Desses 15 mil potenciais
respondentes, só 302 participaram no inquérito, com 93 (30%) a assumir terem
sido, ou estarem a ser, vítimas de assédio moral. E, desses, 10,8% reportaram
ideação suicida, e 11,8% ideação homicida. Só 22,6% denunciaram a situação. Na
maioria dos casos (84,9%), o assediador é um superior hierárquico, e o assédio refere-se
a situações em que ou não é permitido ao respondente falar, ou é interrompido
(77,8%); a crítica ao trabalho (74,8%); a calúnias e a falatório “pelas costas”
(58,3%).
Há indicação de “ataques físicos leves, como
advertência” (18,3%); ameaças de agressões (17,2%); “danos aos bens ou à
viatura” (16,1%); e “agressões sexuais físicas diretas (7,5%).
A estratégia mais comummente adotada foi a de tentar
evitar os agressores (34,4%), seguida do recurso à baixa médica (29%). Só 22,6%
das reportadas vítimas de assédio efetuaram denúncia do facto, tendo havido
punição do assediador só num caso. Em cinco situações, a punição ou
transferência recaiu sobre o denunciante; em 29 casos, os superiores
hierárquicos ignoraram a denúncia. Nenhum dos 64 participantes que não
denunciou o assédio indicou os motivos para não o fazer. Assim, não há
resultados relativos a esta questão para apresentar e discutir.
Este silêncio resulta do facto de muitos dos atingidos temerem represálias, do facto de outros se
refugiarem no álcool e alguns no suicídio. Segundo a APG-GNR, em Portugal, não
há registos oficiais públicos do número de suicídios na GNR, apenas sendo
divulgado que o número de suicídios nas forças de segurança é o dobro do da
restante população. E Sandra Cerqueira adverte: “As instituições deveriam
procurar identificar o que leva os seus profissionais a adotar estes
comportamentos, muitas vezes, de fim de linha.”
Entre as consequências reportadas do assédio – nas
quais, à cabeça, surgem “dificuldade em adormecer” (60,2%), “ansiedade”
(58,1%), seguidas por sintomas, como “nó na garganta” (28%), “fadiga
permanente” (26,9%), “palpitações” e “crises de choro” (20,4%) e “aumento nos
conflitos familiares” (22,6%) –, encontram-se, como já referido, ideações
suicidas e homicidas, assim como “aumento do consumo de antidepressivos e
ansiolíticos” (10,8%) e da “visão negativa dos outros e do Mundo” (6,5%).
Embora reconheça que os participantes no inquérito
constituem uma amostra reduzida, face ao efetivo total, a autora sustenta que
os resultados são muito úteis para as respetivas instituições tomarem
consciência do fenómeno que têm dentro de portas e para repensarem as medidas
imediatas de combate e de prevenção das condutas nefastas que se definem como
‘hábitos e costumes’, mas que são, na realidade, “comportamentos antiéticos.
Efetivamente, como aduz, “se, numa
amostra de 302 participantes, cerca de um terço já foram ou são vítimas de
assédio moral, num universo total de cerca de 44367 elementos das forças de
segurança […], provavelmente a percentagem seria igual, o que é assustador e alarmante”.
***
O assédio moral faz parte do quotidiano, nem que seja
o chefe a ralhar com alguém perante toda a gente – o que não era permitido no
anterior regulamento disciplinar da GNR. E há uma questão estrutural: nem todos
são bons chefes, bons comandantes; não basta o curso, pois comandar pessoas não
é para todos. Não é o “quero, posso e mando” que faz o líder. Ora, tudo isso, junto
com o restante – fracas condições de serviço, fracos salários – pode levar
àquilo de que se fala, mas que se esconde: os suicídios, que sucedem, às vezes,
porque os guardas são maltratados no serviço. “Muitas vezes o comando da GNR e
o próprio Ministério dizem que é por questões pessoais – não sei como fazem
essa triagem, como veem isso”, atalha César Nogueira, presidente da APG-GNR,
que olha para a baixa taxa de participação neste primeiro inquérito como
evidência do clima que se vive nas corporações: “Só pelo número das respostas,
pode ver-se que é um problema que muitos têm receio em expor. Tanto mais que se
trata, no caso da guarda, de uma estrutura muito hierarquizada, militar… Sei que a camarada tentou fazer o inquérito
através da GNR, e recusaram. […] Por aí se vê que querem esconder o que existe.”
Na ASPP, a
consciência do problema de assédio na corporação e de que é preciso trazê-lo à
luz do dia levou à criação de um gabinete, com advogados e psicólogos, e à disponibilização,
em maio, de um endereço de email específico
para os polícias poderem reportar, confidencialmente, tais situações.
Foi também solicitada uma reunião com a Inspeção-Geral da Administração Interna
(IGAI) – que fiscaliza as polícias – para a alertar para o fenómeno e
apresentar algumas queixas. Ações, explica o presidente desta organização
sindical, Paulo Jorge Santos, que surgiram na sequência da receção pela ASPP de emails e de reclamações relacionados
com assédio.
Sobre a recetividade da hierarquia para abordar a
questão, Paulo Jorge Santos é diplomático: “A PSP evoluiu muito, nestes 30
anos, mas as resistências sempre existiram por parte da hierarquia, por isso é
que colocámos isto na IGAI, onde as queixas estão a seguir o seu curso.”
Assumindo não serem, para ele, surpresa os resultados
do inquérito, incluindo o facto de haver quem, nas polícias, se diga vítima de
agressões, e de assédio sexual físico, por parte de outros polícias,
considera: “Tivemos conhecimento de situações dessas. Em relação ao assédio sexual, durante uma
conferência ouvimos mulheres que estão na PSP, há muitos anos, há décadas, e
ali, naquele ambiente protegido, tiveram coragem de falar de coisas das quais,
se calhar, nunca tinham falado. Foi duro.”
Porém, o dirigente sindical da PSP está desiludido com
a resposta à criação do gabinete e do email.
Como o seu homólogo da AGP-GNR, associa o fraco retorno à “existência de muita
reserva e resistência, por parte daqueles que são vítimas, em falar”, porque “têm
medo de fazer denúncia”.
A esse medo junta-se, para César Nogueira, o facto de
não existir uma entidade vocacionada para receção de denúncias deste tipo. A
PSP e a GNR não são abrangidas pela Autoridade para as Condições de Trabalho
(ACT); e a IGAI, que não serve para isso. Ora, é necessária a fiscalização da
higiene e da saúde no trabalho. Já
foram feitas denúncias à IGAI, que pergunta à GNR se aquilo se passa ou não. E
a GNR dize que não, a não ser que seja caso público ou flagrante.
É certo que pode haver denúncias de assédio não sustentadas, pois,
às vezes, há a noção subjetiva de maus tratos, que não são reais. Por isso, tem de haver uma estrutura externa,
independente, que pode ser nos moldes da ACT, para fiscalizar, receber e
investigar as denúncias, seja de assédio moral seja de condições de
trabalho em geral, a começar pelas instalações.
Outra questão é a inexistência, no regulamento
disciplinar da GNR e no Estatuto Disciplinar da PSP, de alusão a assédio
ou a bullying. Há, ainda, uma cultura castrense vincada, muito com
base no que era a disciplina nas Forças Armadas. Ora, no dizer do dirigente da APG-GNR, “os regulamentos têm de se
modernizar, de se adaptar às novas realidades”, mas “o que se tem feito é enterrar
a cabeça na areia e, depois, quando acontece alguma desgraça, é que se vai
correr atrás do prejuízo”. E Paulo Jorge Santos, questionado sobre se
considera necessário que o bullying e o assédio sejam
especificamente abordados num código ou regulamento da PSP, hesita: “Admito que
seja importante um código de conduta, mas, no caso da PSP, os mecanismos
existem. O necessário, na minha opinião, é que as pessoas ganhem consciência do
fenómeno e coragem para o expor. Porque, se não denunciarem, nada muda.”
***
A preocupação com o assédio moral, bullying,
e como outros tipos de assédio, como o sexual, nas forças de segurança está
presente em vários países. Por exemplo, no Reino Unido, a Federação da Polícia de
Inglaterra e Gales desde, pelo menos, 2017 elabora materiais informativos a
explicar o bullying, como combatê-lo e como pode a federação
ajudar. E o UNISON, um dos maiores sindicatos britânicos do setor público, em
2002, efetuou o primeiro inquérito sobre as atitudes do staff policial.
Então, 28% dos inquiridos assumiram que tinham sido vítimas de bullying ou
o tinham testemunhado sobre colegas. Seis anos depois, repetindo o
inquérito, 21% disseram ter sido vítimas e 26% assistido a situações de bullying sobre
colegas.
Em 2013, um relatório da Independent Police Commission
(desde 2018, Independent Office for Police Conduct), reportou que um inquérito
efetuado no universo policial, 57% dos respondentes tinham experienciado bullying,
em alguma altura, e 30% sempre, ou parte do tempo. O governo de Theresa May
anunciou uma reforma para reforço da integridade policial e pediu ao College of
Policing um Código de Ética sobre princípios e padrões da profissão e
comportamento profissional das polícias. O UNISON exigiu que fossem abordados o bullying e
o assédio. E o Código estipula que o comportamento e a linguagem polícias “não
podem ser percebidos como abusivos, opressivos, assediadores, vitimizadores ou
ofensivos pelo público ou pelos colegas”.
O UNISON repetiu
o inquérito em 2015, concluindo que as mulheres tendem mais a apontar o bullying:
58% das mulheres disseram tê-lo sofrido, para 45,36% dos homens.
***
A ministra da
Administração Interna prometeu a reforma das polícias. Até nomeou um novo
diretor nacional. Contemplará toda esta problemática: segurança, bullying,
mobbing, assédio, higiene
e saúde no trabalho, descanso, qualidade das instalações, aumento de efetivos,
dignificação dos agentes e dos guardas, cuidado na escolha das chefias e
comandos, etc.?
2024.07.28 – Louro de Carvalho
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