Após semanas de pressão para que reconsiderasse a permanência na campanha presidencial,
Joe Biden, presidente dos Estados Unidos da América (EUA), anunciou, a 21 de
julho, que desistiu da candidatura à reeleição. O comunicado foi feito na rede
social X, onde afirmou que a
decisão é “do interesse do meu
partido e do país” e prometeu que, no final da semana, falaria à Nação, com mais pormenor, sobre
a sua decisão.
Poucos minutos após o anúncio, também na rede social X, oficializou o apoio à vice-presidente Kamala Harris,
justificando: “A minha primeira decisão como candidato do partido, em 2020, foi
escolher Kamala Harris como minha vice-presidente. E tem sido a melhor decisão
que tomei. Hoje quero oferecer o meu total apoio e endosso a Kamala, para ser a
candidata do nosso partido, neste ano. Democratas, é altura de nos unirmos e derrotarmos
Trump. Vamos a isto!”
Donald Trump reagiu logo, na sua rede social Truth Social, onde chama Biden de “corrupto” e “inapto” e acusa a
sua equipa de ter mentido sobre a capacidade do presidente, a quem responsabiliza
por deixar o país no caos, a nível migratório, e promete emendar a situação.
Na comunicação de desistência, Joe Biden enfatizou os progressos dos
últimos três anos. “Atualmente, a
América tem a economia mais forte do Mundo. Fizemos investimentos históricos na
reconstrução da nossa Nação, na redução dos custos dos medicamentos sujeitos
a receita médica para os idosos e na expansão de cuidados de saúde acessíveis a
um número recorde de americanos. […] Foi a maior honra da minha vida servir
como seu presidente. E embora tenha sido minha intenção buscar a reeleição,
acredito que é do melhor interesse do meu partido e do país que eu me afaste e
me concentre exclusivamente em cumprir meus deveres como presidente pelo
restante do meu mandato”, escreveu, terminando com profundo agradecimento à sua
equipa, em especial à vice-presidente Kamala Harris, “por ser uma parceira extraordinária em todo
este trabalho”, que viria minutos depois a apoiar oficialmente.
Os boatos da desistência começaram, há algumas semanas, mas a Casa Branca
desmentiu e o próprio Joe Biden, numa entrevista, disse ainda “estar na corrida”.
Os pedidos para que o presidente, de 81 anos, desistisse aumentaram
após um debate televisivo com Donald Trump, a 27 de junho, em que o Joe
Biden pareceu física e cognitivamente exausto.
Teve dificuldade em refutar as afirmações, muitas vezes falsas, do oponente,
deu respostas de forma desconexa e, por vezes, olhou fixamente para o espaço.
Após o fracasso em direto, os aliados de Biden informaram os meios de
comunicação social de que ele estivera constipado e fez um discurso mais
enérgico num comício de campanha, para recuperar a iniciativa. Porém, nas
entrevistas e nas aparições públicas subsequentes, destinadas a tranquilizar os
eleitores e o partido de que estava em condições de se candidatar, parecia cansado.
Por isso, cada vez mais democratas proeminentes, incluindo Barack Obama e Bill
Clinton, começaram a recusar-se a especular sobre o futuro, mas sugeriam
repensasse a sua permanência, por duvidarem das suas condições de saúde e de
idade, mesmo quando muitos outros insistiam em apoiá-lo.
Um momento terrível ocorreu numa cimeira em Washington que assinalou o 75.º
aniversário da NATO. Embora Biden tenha dado uma longa conferência de imprensa,
em que abordou áreas políticas complexas, referiu-se ao presidente ucraniano
Volodymyr Zelenskyy como “Presidente Putin” e à vice-presidente, Kamala Harris,
como “Vice-Presidente Trump”. Com tudo isto, o recandidato perdeu apoios financeiros,
da parte de grandes grupos económicos, e apoios sociais e políticos de vulto,
incluindo de celebridades e de membros do Partido Democrata, nomeadamente congressistas
e senadores e até a ex-presidente da Câmara dos Representantes.
É óbvio que Biden, mantendo-se na corrida, não apoiava a vice-presidente,
Kamala Harris, e lançou os democratas no caos, meses antes da eleição contra
Trump. Porém, agora, agradeceu a Harris, uma “parceira extraordinária”, e
apoiou-a.
Uma intervenção importante veio de George Clooney, um dos maiores doadores
dos democratas, que escreveu, no New York
Times, que “a única batalha que [Biden] não pode vencer é a luta contra o
tempo”. “É devastador dizê-lo, mas o Joe Biden com quem estive, há três semanas,
na angariação de fundos não era o Joe “big F-ing deal” Biden de 2010. Nem
sequer era o Joe Biden de 2020. Era o mesmo homem que todos nós vimos no
debate”, considerou.
Todavia, nem a tentativa de assassinato de Donald Trump afastou Joe Biden
do ciclo de notícias.
A meio da convenção em que Donald Trump aceitou a nomeação, foi anunciado
que Biden tinha sido diagnosticado com covid-19, obrigando-o a ir para casa, em
Delaware, para recuperar. Pouco depois dessa notícia, a Black Entertainment Television transmitiu uma entrevista
pré-gravada em que o presidente, indisposto, se esforçava por recordar o nome
do secretário da Defesa, Lloyd Austin, referindo-se-lhe como “o negro”.
Com o fim da Convenção Republicana, a máquina central do Partido Democrata estava
com um plano para que a nomeação de Biden fosse confirmada por votação nominal
virtual, antes da reunião do partido, em Chicago, em setembro, forçando os
delegados a votar nele o mais rapidamente possível. Porém, antes que o plano
fosse concretizado, Biden anunciou a desistência.
Ainda não foi anunciado o que vai acontecer na convenção democrata ou como
será escolhido o sucessor de Biden como candidato. O caminho óbvio é o partido
nomear a Kamala Harris, pondo-a na linha da frente para ser a primeira mulher
presidente dos EUA. Nos últimos meses, tem feito cada vez mais aparições e os
seus números nas sondagens, face a Biden e a Trump têm melhorado.
Porém, foram sugeridos como potenciais candidatos outros democratas
populares e conhecidos, como Gavin Newsom, governador da Califórnia, e Gretchen
Whitmer, governadora do Michigan.
***
Consumada a
desistência, Joe Biden passou a ser um herói, para a Europa e para a América.
A Europa prestou homenagem
a Joe Biden, por anunciar a sua retirada da corrida presidencial e por apoiar a
sua vice-presidente Kamala Harris para lhe suceder. Da Ucrânia o presidente
Volodymir Zelensky agradeceu a Joe Biden o seu “apoio inabalável” nos dois
anos que se seguiram à invasão russa. “Estaremos sempre gratos pela liderança
do presidente Biden”, disse, acrescentando: “Respeitamos a decisão difícil, mas
forte, de hoje.”
O primeiro-ministro
polaco, Donald Tusk, elogiou Biden pelas “decisões difíceis” que tornaram “a
Polónia, a América e o Mundo mais seguros”, e afirmou que a decisão de desistir
da corrida presidencial foi, provavelmente, “a mais difícil” que teve de tomar.
O primeiro-ministro do
Reino Unido, Keir Starmer, sabendo que Joe Biden tomara a decisão com base no
que crê “ser o melhor para o povo americano”, disse: “Respeito a decisão do presidente
Biden e espero que trabalhemos juntos durante o resto da sua presidência.”
O chanceler alemão,
Olaf Scholz, referiu-se-lhe como “meu amigo”, declarando: “Graças a ele, a
cooperação transatlântica é estreita, a NATO [Organização do Tratado do
Atlântico Norte] é forte e os EUA são um parceiro bom e fiável para nós. A sua
decisão de não se recandidatar merece ser reconhecida.”
“Toda
a minha admiração e reconhecimento pela decisão corajosa e digna do presidente”,
disse o primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sánchez, que explicitou: “Um grande
gesto de um grande presidente que sempre lutou pela democracia e pela liberdade.”
Nos EUA, Kamala Harris
agradeceu a Biden a “extraordinária liderança” e disse sentir-se honrada
pelo seu apoio para concorrer à Casa Branca. O antigo presidente Barack Obama,
de que Joe Biden foi vice-presidente, descreveu-o como “um dos presidentes
mais consequentes da América” e um “patriota de primeira ordem”. E a antiga
presidente da Câmara dos Representantes e colega democrata, Nancy Pelosi,
enviando-lhe “amor e gratidão”, escreveu: “Deus abençoou a América com a
grandeza e bondade de Joe Biden.”
Também
está em crescendo a onda de apoiantes da decisão de Joe Biden, da parte de
atores, cantores, rappers, realizadores e outras celebridades. O mundo do entretenimento reagiu à notícia bombástica da sua
desistência da corrida presidencial, e Hollywood saúda-o, com emoção.
Excetuam-se
os Republicanos, ao pensarem que, se Biden não tem capacidade para ser candidato,
também não a tem para continuar presidente.
***
A sucessora escolhida por Joe Biden teve um
percurso, por vezes, difícil até ao poder e uma campanha contra Donald Trump
pô-la-á à prova como nunca antes. Harris ainda tem de ser formalmente nomeada pelo partido na convenção de
Chicago, dentro de algumas semanas, e não se sabe se terá enfrentar um
adversário. Contudo, a combinação da sua posição atual, o apoio de Joe Biden e
a exaustão coletiva do esforço para que ele se demitisse tornarão difícil a
outros candidatos explicarem por que razão Harris teria de lutar pela nomeação,
até porque, se for eleita, será a primeira mulher presidente do país e o
segundo presidente negro.
Filha de pai jamaicano-americano e mãe indiana tamil, Harris, de 59 anos,
cresceu em Oakland, na Califórnia. Depois de se formar na faculdade de direito,
tornou-se procuradora distrital, subindo no sistema jurídico da Califórnia
antes de ser eleita procuradora-geral do estado, em 2010. Reeleita em 2014, foi
depois eleita para o Senado dos EUA, em 2016, sucedendo à senadora democrata
Barbara Boxer. No Senado, logo se tornou conhecida, por usar as capacidades de
procuradora nas audiências das comissões, submetendo testemunhas muito
informadas e experientes a interrogatórios forenses, que foram notícia.
Tendo construído uma marca nacional poderosa num espaço de tempo
relativamente curto, Harris lançou a sua campanha presidencial, em janeiro de
2019. O primeiro comício de campanha atraiu 20 mil apoiantes e os números da
angariação de fundos no primeiro dia indicavam que era uma força a ter em
conta. Porém, o campo democrata não tardou a aumentar para mais de 20
candidatos e tornou-se difícil, para Harris, distinguir-se em termos de
política, especialmente contra os ousados esquerdistas Bernie Sanders e
Elizabeth Warren.
O momento mais memorável foi quando confrontou Joe Biden, num debate
televisivo, sobre a sua oposição às políticas implementadas para ajuda à
dessegregação das escolas, após a aprovação da Lei dos Direitos Civis.
Chamando-lhe a atenção para a sua relação “civil” com senadores segregacionistas,
no início da década de 1970, recordou-lhe o impacto da dessegregação. Depois,
no verão de 2020, Biden escolheu-a como companheira de campanha, descrevendo-a
como “uma lutadora destemida pelos mais pequenos e uma das melhores
funcionárias públicas do país”. E, não obstante os constrangimentos da pandemia
de covid-19, ela provou ser uma forte militante na corrida de 2020, com eficaz desempenho
no debate com o vice-presidente de Trump, Mike Pence.
Quando ela e Biden ganharam as eleições, Harris tornou-se a primeira
mulher, a primeira pessoa negra e a primeira pessoa de origem sul-asiática a
servir como vice-presidente dos EUA de uma só vez. Todavia, o período de Harris
como vice-presidente viria a revelar-se difícil.
A administração Biden começou sob o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao
Capitólio e com a pandemia ainda a matar milhares de americanos, enquanto a
economia registava dificuldades. Neste contexto, Joe Biden atribuiu a Harris um
portefólio de questões imponentes que exigia o apoio de uma supermaioria do
Senado, órgão que os democratas não dominavam.
Resta saber se Harris melhorará os anémicos números de Biden de sondagens e
a fraca angariação de fundos. Porém, não é claro se enfrentará um concorrente
para a nomeação.
***
Joe Biden não podia continuar recandidato. Tinha contra si a opinião pública,
incluindo os seus correligionários políticos. Demorou a percebê-lo. Se a porta
de saída não foi brilhante, também não foi negra ou cinzenta. E salva-se o
discurso. Cabe ao aparelho do Partido Democrata, ora reforçado, promover a mobilização
do eleitorado, atrair os investidores de campanha e conquistar os media. E aos eleitores cabe, se
quiserem, afastar o fantasma da extrema-direita, como fez a França. Ao menos, espera-se
que os Democratas ainda venham a obter resultados decentes!
2024.07.22 – Louro de Carvalho
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