segunda-feira, 22 de julho de 2024

Joe Biden: tudo resulta, quando acaba em bem

 

 

Após semanas de pressão para que reconsiderasse a permanência na campanha presidencial, Joe Biden, presidente dos Estados Unidos da América (EUA), anunciou, a 21 de julho, que desistiu da candidatura à reeleição. O comunicado foi feito na rede social X, onde afirmou que a decisão é “do interesse do meu partido e do país” e prometeu que, no final da semana, falaria à Nação, com mais pormenor, sobre a sua decisão.

Poucos minutos após o anúncio, também na rede social X, oficializou o apoio à vice-presidente Kamala Harris, justificando: “A minha primeira decisão como candidato do partido, em 2020, foi escolher Kamala Harris como minha vice-presidente. E tem sido a melhor decisão que tomei. Hoje quero oferecer o meu total apoio e endosso a Kamala, para ser a candidata do nosso partido, neste ano. Democratas, é altura de nos unirmos e derrotarmos Trump. Vamos a isto!”

Donald Trump reagiu logo, na sua rede social Truth Social, onde chama Biden de “corrupto” e “inapto” e acusa a sua equipa de ter mentido sobre a capacidade do presidente, a quem responsabiliza por deixar o país no caos, a nível migratório, e promete emendar a situação.

Na comunicação de desistência, Joe Biden enfatizou os progressos dos últimos três anos. “Atualmente, a América tem a economia mais forte do Mundo. Fizemos investimentos históricos na reconstrução da nossa Nação, na redução dos custos dos medicamentos sujeitos a receita médica para os idosos e na expansão de cuidados de saúde acessíveis a um número recorde de americanos. […] Foi a maior honra da minha vida servir como seu presidente. E embora tenha sido minha intenção buscar a reeleição, acredito que é do melhor interesse do meu partido e do país que eu me afaste e me concentre exclusivamente em cumprir meus deveres como presidente pelo restante do meu mandato”, escreveu, terminando com profundo agradecimento à sua equipa, em especial à vice-presidente Kamala Harris, “por ser uma parceira extraordinária em todo este trabalho”, que viria minutos depois a apoiar oficialmente.

Os boatos da desistência começaram, há algumas semanas, mas a Casa Branca desmentiu e o próprio Joe Biden, numa entrevista, disse ainda “estar na corrida”.

Os pedidos para que o presidente, de 81 anos, desistisse aumentaram após um debate televisivo com Donald Trump, a 27 de junho, em que o Joe Biden pareceu física e cognitivamente exausto.

Teve dificuldade em refutar as afirmações, muitas vezes falsas, do oponente, deu respostas de forma desconexa e, por vezes, olhou fixamente para o espaço.

Após o fracasso em direto, os aliados de Biden informaram os meios de comunicação social de que ele estivera constipado e fez um discurso mais enérgico num comício de campanha, para recuperar a iniciativa. Porém, nas entrevistas e nas aparições públicas subsequentes, destinadas a tranquilizar os eleitores e o partido de que estava em condições de se candidatar, parecia cansado. Por isso, cada vez mais democratas proeminentes, incluindo Barack Obama e Bill Clinton, começaram a recusar-se a especular sobre o futuro, mas sugeriam repensasse a sua permanência, por duvidarem das suas condições de saúde e de idade, mesmo quando muitos outros insistiam em apoiá-lo.

Um momento terrível ocorreu numa cimeira em Washington que assinalou o 75.º aniversário da NATO. Embora Biden tenha dado uma longa conferência de imprensa, em que abordou áreas políticas complexas, referiu-se ao presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy como “Presidente Putin” e à vice-presidente, Kamala Harris, como “Vice-Presidente Trump”. Com tudo isto, o recandidato perdeu apoios financeiros, da parte de grandes grupos económicos, e apoios sociais e políticos de vulto, incluindo de celebridades e de membros do Partido Democrata, nomeadamente congressistas e senadores e até a ex-presidente da Câmara dos Representantes.  

É óbvio que Biden, mantendo-se na corrida, não apoiava a vice-presidente, Kamala Harris, e lançou os democratas no caos, meses antes da eleição contra Trump. Porém, agora, agradeceu a Harris, uma “parceira extraordinária”, e apoiou-a.

Uma intervenção importante veio de George Clooney, um dos maiores doadores dos democratas, que escreveu, no New York Times, que “a única batalha que [Biden] não pode vencer é a luta contra o tempo”. “É devastador dizê-lo, mas o Joe Biden com quem estive, há três semanas, na angariação de fundos não era o Joe “big F-ing deal” Biden de 2010. Nem sequer era o Joe Biden de 2020. Era o mesmo homem que todos nós vimos no debate”, considerou.

Todavia, nem a tentativa de assassinato de Donald Trump afastou Joe Biden do ciclo de notícias.

A meio da convenção em que Donald Trump aceitou a nomeação, foi anunciado que Biden tinha sido diagnosticado com covid-19, obrigando-o a ir para casa, em Delaware, para recuperar. Pouco depois dessa notícia, a Black Entertainment Television transmitiu uma entrevista pré-gravada em que o presidente, indisposto, se esforçava por recordar o nome do secretário da Defesa, Lloyd Austin, referindo-se-lhe como “o negro”.

Com o fim da Convenção Republicana, a máquina central do Partido Democrata estava com um plano para que a nomeação de Biden fosse confirmada por votação nominal virtual, antes da reunião do partido, em Chicago, em setembro, forçando os delegados a votar nele o mais rapidamente possível. Porém, antes que o plano fosse concretizado, Biden anunciou a desistência.

Ainda não foi anunciado o que vai acontecer na convenção democrata ou como será escolhido o sucessor de Biden como candidato. O caminho óbvio é o partido nomear a Kamala Harris, pondo-a na linha da frente para ser a primeira mulher presidente dos EUA. Nos últimos meses, tem feito cada vez mais aparições e os seus números nas sondagens, face a Biden e a Trump têm melhorado.

Porém, foram sugeridos como potenciais candidatos outros democratas populares e conhecidos, como Gavin Newsom, governador da Califórnia, e Gretchen Whitmer, governadora do Michigan.

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Consumada a desistência, Joe Biden passou a ser um herói, para a Europa e para a América.

A Europa prestou homenagem a Joe Biden, por anunciar a sua retirada da corrida presidencial e por apoiar a sua vice-presidente Kamala Harris para lhe suceder. Da Ucrânia o presidente Volodymir Zelensky agradeceu a Joe Biden o seu “apoio inabalável” nos dois anos que se seguiram à invasão russa. “Estaremos sempre gratos pela liderança do presidente Biden”, disse, acrescentando: “Respeitamos a decisão difícil, mas forte, de hoje.”

O primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, elogiou Biden pelas “decisões difíceis” que tornaram “a Polónia, a América e o Mundo mais seguros”, e afirmou que a decisão de desistir da corrida presidencial foi, provavelmente, “a mais difícil” que teve de tomar.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, sabendo que Joe Biden tomara a decisão com base no que crê “ser o melhor para o povo americano”, disse: “Respeito a decisão do presidente Biden e espero que trabalhemos juntos durante o resto da sua presidência.”

O chanceler alemão, Olaf Scholz, referiu-se-lhe como “meu amigo”, declarando: “Graças a ele, a cooperação transatlântica é estreita, a NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte] é forte e os EUA são um parceiro bom e fiável para nós. A sua decisão de não se recandidatar merece ser reconhecida.”

“Toda a minha admiração e reconhecimento pela decisão corajosa e digna do presidente”, disse o primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sánchez, que explicitou: “Um grande gesto de um grande presidente que sempre lutou pela democracia e pela liberdade.”

Nos EUA, Kamala Harris agradeceu a Biden a “extraordinária liderança” e disse sentir-se honrada pelo seu apoio para concorrer à Casa Branca. O antigo presidente Barack Obama, de que Joe Biden foi vice-presidente, descreveu-o como “um dos presidentes mais consequentes da América” e um “patriota de primeira ordem”. E a antiga presidente da Câmara dos Representantes e colega democrata, Nancy Pelosi, enviando-lhe “amor e gratidão”, escreveu: “Deus abençoou a América com a grandeza e bondade de Joe Biden.”

Também está em crescendo a onda de apoiantes da decisão de Joe Biden, da parte de atores, cantores, rappers, realizadores e outras celebridades. O mundo do entretenimento reagiu à notícia bombástica da sua desistência da corrida presidencial, e Hollywood saúda-o, com emoção.

Excetuam-se os Republicanos, ao pensarem que, se Biden não tem capacidade para ser candidato, também não a tem para continuar presidente.

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A sucessora escolhida por Joe Biden teve um percurso, por vezes, difícil até ao poder e uma campanha contra Donald Trump pô-la-á à prova como nunca antes. Harris ainda tem de ser formalmente nomeada pelo partido na convenção de Chicago, dentro de algumas semanas, e não se sabe se terá enfrentar um adversário. Contudo, a combinação da sua posição atual, o apoio de Joe Biden e a exaustão coletiva do esforço para que ele se demitisse tornarão difícil a outros candidatos explicarem por que razão Harris teria de lutar pela nomeação, até porque, se for eleita, será a primeira mulher presidente do país e o segundo presidente negro.

Filha de pai jamaicano-americano e mãe indiana tamil, Harris, de 59 anos, cresceu em Oakland, na Califórnia. Depois de se formar na faculdade de direito, tornou-se procuradora distrital, subindo no sistema jurídico da Califórnia antes de ser eleita procuradora-geral do estado, em 2010. Reeleita em 2014, foi depois eleita para o Senado dos EUA, em 2016, sucedendo à senadora democrata Barbara Boxer. No Senado, logo se tornou conhecida, por usar as capacidades de procuradora nas audiências das comissões, submetendo testemunhas muito informadas e experientes a interrogatórios forenses, que foram notícia.

Tendo construído uma marca nacional poderosa num espaço de tempo relativamente curto, Harris lançou a sua campanha presidencial, em janeiro de 2019. O primeiro comício de campanha atraiu 20 mil apoiantes e os números da angariação de fundos no primeiro dia indicavam que era uma força a ter em conta. Porém, o campo democrata não tardou a aumentar para mais de 20 candidatos e tornou-se difícil, para Harris, distinguir-se em termos de política, especialmente contra os ousados esquerdistas Bernie Sanders e Elizabeth Warren.

O momento mais memorável foi quando confrontou Joe Biden, num debate televisivo, sobre a sua oposição às políticas implementadas para ajuda à dessegregação das escolas, após a aprovação da Lei dos Direitos Civis. Chamando-lhe a atenção para a sua relação “civil” com senadores segregacionistas, no início da década de 1970, recordou-lhe o impacto da dessegregação. Depois, no verão de 2020, Biden escolheu-a como companheira de campanha, descrevendo-a como “uma lutadora destemida pelos mais pequenos e uma das melhores funcionárias públicas do país”. E, não obstante os constrangimentos da pandemia de covid-19, ela provou ser uma forte militante na corrida de 2020, com eficaz desempenho no debate com o vice-presidente de Trump, Mike Pence.

Quando ela e Biden ganharam as eleições, Harris tornou-se a primeira mulher, a primeira pessoa negra e a primeira pessoa de origem sul-asiática a servir como vice-presidente dos EUA de uma só vez. Todavia, o período de Harris como vice-presidente viria a revelar-se difícil.

A administração Biden começou sob o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio e com a pandemia ainda a matar milhares de americanos, enquanto a economia registava dificuldades. Neste contexto, Joe Biden atribuiu a Harris um portefólio de questões imponentes que exigia o apoio de uma supermaioria do Senado, órgão que os democratas não dominavam.

Resta saber se Harris melhorará os anémicos números de Biden de sondagens e a fraca angariação de fundos. Porém, não é claro se enfrentará um concorrente para a nomeação.

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Joe Biden não podia continuar recandidato. Tinha contra si a opinião pública, incluindo os seus correligionários políticos. Demorou a percebê-lo. Se a porta de saída não foi brilhante, também não foi negra ou cinzenta. E salva-se o discurso. Cabe ao aparelho do Partido Democrata, ora reforçado, promover a mobilização do eleitorado, atrair os investidores de campanha e conquistar os media. E aos eleitores cabe, se quiserem, afastar o fantasma da extrema-direita, como fez a França. Ao menos, espera-se que os Democratas ainda venham a obter resultados decentes!  

2024.07.22 – Louro de Carvalho

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