segunda-feira, 15 de julho de 2024

“Cancelar” ou não as obras de arte de Rupnik, eis a questão

 

O Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), por indicação do Papa Francisco, estuda as acusações de abuso de poder e abuso sexual de Marko Ivan Rupnik, padre e artista esloveno sobre várias religiosas e cujas obras suscitam atitudes e posições bastante distintas no interior do Vaticano.

Espalhados pelo Mundo, os painéis de mosaicos, de pequena, média e muito grande dimensão começaram a suscitar polémica, logo que, em finais de 2022, vieram à tona os testemunhos sobre os abusos desta figura grada dos círculos da Cúria Romana e de outros círculos eclesiais. 

No santuário de Cracóvia dedicado ao Papa São João Paulo II, profusamente decorado pelo ateliê de Rupnik, um grupo de vítimas de abusos sexuais reunia-se para rezar, mas o incómodo gerado pelas estas notícias induziu vários membros do grupo a procurarem outro local.

Em vários lugares surgem debates sobre a conveniência ou justificação de destruir uma obra de arte, mercê de comportamentos do autor. E dão-se exemplos de artistas famosos, hoje muito apreciados, cujos trabalhos não existiriam, se se tivesse seguido o cancelamento do que criaram.

O caso mais dramático, ainda sem decisão final, desencadeou-o o bispo de Tarbes e Lourdes, em França, num santuário que tem parte do rosário (mistérios gloriosos) tematizado em painéis concebidos e realizados pela escola de Rupnik. Quer pela transmissão do terço através da televisão do episcopado francês, quer diretamente, a diocese percebeu que os painéis estavam a perturbar alguns devotos, o que levou o prelado a criar uma comissão multidisciplinar para refletir sobre o assunto e propor a solução. Anunciada para a primavera de 2024, ainda não chegou a conclusões, não sendo improvável que o atraso se deva ao reacender das posições diversas sobre o tema, nas últimas semanas, envolvendo personalidades da Cúria Romana.

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Uma comissão, criada em 2023 pelo Bispo Jean-Marc Micas de Tarbes e Lourdes, decidirá se deve ser removido ou mantido o painel dos mosaicos do padre Rupnik na fachada da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, no santuário mais visitado da França, em Lourdes, instalado em 2008. A decisão será “anunciada em breve”, disse David Torchala, diretor de comunicações do santuário, ao portal católico OSV News, em 24 de junho. “Falámos sobre a primavera. Demorou um pouco, mas a decisão será anunciada em breve. […] Só posso dizer que é um recorde terrível”, sublinhou Torchala.

Os mosaicos de Lourdes do padre Rupnik, acusado por entre 20 a 40 mulheres de abuso espiritual e sexual – com acusações tornadas públicas apenas em 2022 – foram encomendados em 2008, para assinalar o 150.º aniversário das aparições. À época, o padre Rupnik era considerado um “grande artista”, disse Torchala, e os seus mosaicos foram acrescentados à Basílica do Rosário, “que é como um rosário gigante”. O acréscimo retrata os mistérios luminosos que São João Paulo II instituiu em 2002. “É terrível, porque recebemos cartas das vítimas do padre Rupnik que sofreram e ainda sofrem por sua causa”, lamentou Torchala, sustentando: “As pessoas que sofrem estão no coração do santuário de Lourdes. Lourdes é o santuário da Imaculada Conceição, um lugar de consolação e de cura.”

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Enquanto isso, no último dia da Conferência de Media Católica (CMC) em Atlanta, nos Estados Unidos da América (EUA), a 21 de junho, o prefeito do Dicastério para a Comunicação do Vaticano abordou questões colocadas por jornalistas sobre a prática regular do dicastério de publicar arte do padre Rupnik, de 69 anos, no site do Vaticano News e nas redes sociais, sobretudo, para ilustrar dias de festa da Igreja “Como cristãos, somos convidados a não julgar”, disse Paolo Ruffini à sala cheia de profissionais de comunicação (350), depois de proferir um discurso na CMC, relevando que embora o processo de investigação do Vaticano sobre o Padre Rupnik ainda esteja em curso, “uma antecipação de uma decisão é algo que não é, na nossa opinião, não é boa”.

“Remover, apagar, destruir arte nunca foi uma boa escolha”, vincou Ruffini, mencionando o lendário artista italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio, conhecido simplesmente como Caravaggio, que no decurso da sua vida matou um homem.

Remover a arte do Padre Rupnik do espaço público “não é uma resposta cristã”, disse Ruffini, frisando: “Não estamos a falar de abuso de menores. “Estamos a falar [sobre] uma história que não conhecemos.”

“E penso que, como cristãos, temos que compreender que a proximidade com as vítimas é importante. Mas não sei se este é o caminho da cura”, acrescentou Ruffini, dizendo que “há pessoas que [estão] a rezar em santuários de muitas igrejas, em todo o Mundo”, diante dos mosaicos criados pelo padre Rupnik. “Não creio que devamos atirar pedras pensando que este é o caminho da cura”, considerou. E observou que mesmo a Companhia de Jesus, que expulsou Rupnik, por desobediência, não retirou a arte dele da capela da Cúria Geral em Roma.

Com isso justificou também que o seu e outros dicastérios continuem a usar imagens de obras de Rupnik: usam as que tinham. “Não decidimos o que não nos competia decidir”, disse.

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A estreita ligação entre o trabalho artístico de Rupnik e os seus alegados abusos foi confirmada ao OSV News por Gloria Branciani, ex-religiosa da Comunidade Loyola, na Eslovénia, alegando que o padre Rupnik abusou dela, durante nove anos, quando o jesuíta era o diretor espiritual da Comunidade Loiola. “Em Rupnik, a dimensão sexual não pode ser separada da experiência criativa”, disse Branciani, quando questionada sobre os seus projetos artísticos. “Ao retratar-me, aduziu que eu representava o eterno feminino: a sua inspiração artística vem justamente de sua abordagem da sexualidade”, explicou Branciani, modelo do padre Rupnik, quando ainda era estudante de Medicina e convidada frequente do seu ateliê na Piazza del Gesù, em Roma. “Ele argumentou que a sexualidade é transformada e purificada na obra de arte”, declarou Branciani.

O Vatican News informou que o DDF “contactou várias instituições, nos últimos meses, para obter documentação relacionada com o padre Marko Rupnik”, e que a Sala de Imprensa da Santa Sé confirmou que a investigação do dicastério foi “expandida para outros realidades eclesiais com as quais anteriormente não havia contacto”. Porém, fosse ou não em reação a estas posições, as vítimas de Marko Rupnik puseram-se em campo.

Como refere a agência Ansa, a advogada Laura Sgrò, que representa cinco das ex-religiosas que se assumem como vítimas do padre, dirigiu, recentemente, uma carta a vários bispos de diferentes partes do Mundo, alegando que a exposição dos mosaicos em locais de culto é inadequada, e traumatizante para as vítimas que têm de lidar, “diariamente, com as consequências psicológicas que os abusos lhes causaram”. Além disso há testemunhos que mostram que parte dos alegados abusos esteve associada ao processo de produção de algumas obras de arte.

“Independentemente de qualquer processo em curso contra o autor e independentemente do resultado, o que se pede é que prevaleçam razões de bom senso, para não utilizar estes mosaicos em ambientes eclesiais, independentemente do valor artístico”, escreve Laura Sgrò.

Acolhendo a posição das vítimas, o cardeal arcebispo de Boston Sean O’Malley veio ao debate, defendendo que as estruturas da Igreja não devem criar a ideia de que a Santa Sé “é alheia ao sofrimento psicológico que tantos estão a sofrer”.

Intervindo como presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis, o cardeal enviou uma carta aos dicastérios da Cúria Romana a expressar a esperança de que, durante este tempo, “a prudência pastoral impedirá a exibição de obras de arte de uma forma que pudesse implicar ou exoneração ou uma defesa subtil” de supostos perpetradores de abuso “ou indicar indiferença à dor e ao sofrimento de tantas vítimas de abuso”.

Na missiva, O’Malley faz notar que, embora a presunção de inocência, durante a investigação, deva ser respeitada, a Santa Sé e os seus departamentos devem “exercer sábia prudência pastoral e compaixão para com as pessoas prejudicadas pelo abuso sexual clerical”.

Entretanto, Paolo Ruffini, de 67 anos, defendeu  o uso oficial da arte do acusado de violação. Em defesa de Rupnik e por comparação, Ruffini perguntou à sala cheia de profissionais dos media, em Atlanta: “E Caravaggio?” Michelangelo Merisi da Caravaggio era um depravado filantropo que produziu uma arte espantosa. Através de utilização extraordinária da luz e da escuridão, os seus quadros apresentam uma visão realista do que significa ser humano, atraindo o espectador para as emoções humanas profundas que ele retratava de forma tão realista.

Depois de ter assassinado em Roma um bandido abastado, Ranuccio Tommasoni – os dois brigaram por causa de uma dívida de jogo, ou talvez por causa de uma prostituta – Caravaggio manteve-se em fuga até à morte, em 1610. Há quem diga que viajou, para conseguir ser perdoado da sentença de morte. Porém, a arte de Caravaggio influenciou pintores da era barroca e de outras épocas, de Rubens a Rembrandt.

É óbvio que Rupnik não é nenhum Caravaggio. As pinturas de Caravaggio foram encomendadas para novas igrejas e palácios de cardeais influentes. Os mosaicos de Rupnik adornam umas 43 capelas ou igrejas em Roma, e existem 231 obras em todo o Mundo.

São bastante invulgares. Algumas pessoas acham-nas feias. Aliás, a arte é controversa.

Os mosaicos de Rupnik apresentam, invariavelmente, a pessoa humana com um rosto comprido e olhos grandes. Desprezando a Natureza, evocam o trabalho de um aluno da escola primária apaixonado por cores vivas e purpurinas. Para lá dos desvios artísticos de Rupnik da realidade, as suas 20 ou 30 acusadoras (até agora) dizem que as coagiu a atos sexuais através de abusos espirituais e emocionais. As suas histórias são horríveis. Uma das acusadoras diz que ele abusou de várias mulheres da Comunidade Loyola, que fundou na sua Eslovénia natal, antes de se mudar para Roma, onde fundou o Instituto de Arte Centro Aletti, no início da década de 1990.

As acusadoras afirmam que os abusos sexuais e espirituais foram essenciais para o seu processo criativo. E a Companhia de Jesus – a que Rupnik aderiu em 1973 – considerou as alegações credíveis e despediu-o, em 2023, quando se recusou a respeitar as suas restrições. Prontamente se vinculou a uma diocese eslovena, continuando a produzir e a vender as suas obras.

Alguns lugares consideram a possibilidade de retirar o seu trabalho, mas Ruffini, do Vaticano, não acha boa a ideia. Mesmo assim, há precedentes no ato de cobrir arte já existente. Os mosaicos encomendados, em 1965, pelo Papa São Paulo VI, no Seminário Maior de Roma, estão escondidos por uma parede falsa com representações de Rupnik, do chão ao teto, de cenas bíblicas em vermelhos, laranjas e amarelos brilhantes. Isso seria fácil de deitar abaixo.

Todavia, a questão não era tanto a remoção dos mosaicos de Rupnik, mas a continuação da promoção da sua arte nos materiais do Vaticano. O Vaticano mantém várias imagens de Rupnik nos seus sítios digitais, e Ruffini disse à assembleia de Atlanta não ter a intenção de as retirar, pois a remoção da arte não demonstraria “proximidade” com as vítimas de Rupnik. Porém, resta saber o que sentirão outras vítimas, especialmente as mulheres, de abusos sexuais e espirituais por parte de clérigos em todo o Mundo.

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São gravíssimos, dos ângulos jurídico e ético, o abuso de poder e sexual; e as verdadeiras vítimas merecem respeito, proximidade e todo o apoio. Contudo, não é lícito nem pedagógico resolver tais problemas, removendo as obras de arte, que desempenham o seu papel independentemente da probidade do artista. A antropagogia junto das vítimas também passa pela separação das questões. Se olharmos à imoralidade processual da produção de obras de arte cristã, muitas deveriam ser removidas e destruídas. Palácios, basílicas e capelas, em Roma viriam abaixo, pois foram obras inspiradas ou ocupada por Pontífices cuja vida não era recomendável. A própria basílica Vaticana resultou, em parte, do dinheiro das indulgências, pregadas de forma errónea.

Portanto, punam-se os crimes, corrijam-se os erros, mas não sejamos iconoclastas!

2024.07.15 – Louro de Carvalho

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