O Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), por indicação do
Papa Francisco, estuda as acusações de abuso de poder e abuso sexual de Marko Ivan
Rupnik, padre e artista esloveno sobre várias religiosas e cujas obras suscitam
atitudes e posições bastante distintas no interior do Vaticano.
Espalhados
pelo Mundo, os painéis de mosaicos, de pequena, média e muito grande dimensão
começaram a suscitar polémica, logo que, em finais de 2022, vieram à tona os
testemunhos sobre os abusos desta figura grada dos círculos da Cúria Romana e
de outros círculos eclesiais.
No santuário de Cracóvia dedicado ao Papa São João Paulo II,
profusamente decorado pelo ateliê de Rupnik, um grupo de vítimas de abusos sexuais
reunia-se para rezar, mas o incómodo gerado pelas estas notícias induziu vários
membros do grupo a procurarem outro local.
Em vários lugares surgem debates sobre a conveniência ou
justificação de destruir uma obra de arte, mercê de comportamentos do autor. E
dão-se exemplos de artistas famosos, hoje muito apreciados, cujos trabalhos não
existiriam, se se tivesse seguido o cancelamento do que criaram.
O caso mais dramático,
ainda sem decisão final, desencadeou-o o bispo de Tarbes e Lourdes, em França,
num santuário que tem parte do rosário (mistérios gloriosos) tematizado em
painéis concebidos e realizados pela escola de Rupnik. Quer pela transmissão do
terço através da televisão do episcopado francês, quer diretamente, a diocese
percebeu que os painéis estavam a perturbar alguns devotos, o que levou o
prelado a criar uma comissão multidisciplinar para refletir sobre o assunto e
propor a solução. Anunciada para a primavera de 2024, ainda não chegou a conclusões,
não sendo improvável que o atraso se deva ao reacender das posições diversas sobre
o tema, nas últimas semanas, envolvendo personalidades da Cúria Romana.
***
Uma comissão, criada em 2023 pelo Bispo Jean-Marc Micas de
Tarbes e Lourdes, decidirá se deve ser removido ou mantido o painel dos
mosaicos do padre Rupnik na fachada da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, no
santuário mais visitado da França, em Lourdes, instalado em 2008. A decisão
será “anunciada em breve”, disse David Torchala, diretor de comunicações do
santuário, ao portal católico OSV News,
em 24 de junho. “Falámos sobre a primavera. Demorou um pouco, mas a decisão
será anunciada em breve. […] Só posso dizer que é um recorde terrível”,
sublinhou Torchala.
Os mosaicos de Lourdes do padre Rupnik, acusado por entre 20
a 40 mulheres de abuso espiritual e sexual – com acusações tornadas públicas
apenas em 2022 – foram encomendados em 2008, para assinalar o 150.º aniversário
das aparições. À época, o padre Rupnik era considerado um “grande artista”,
disse Torchala, e os seus mosaicos foram acrescentados à Basílica do Rosário,
“que é como um rosário gigante”. O acréscimo retrata os mistérios luminosos que
São João Paulo II instituiu em 2002. “É terrível, porque recebemos cartas das
vítimas do padre Rupnik que sofreram e ainda sofrem por sua causa”, lamentou
Torchala, sustentando: “As pessoas que sofrem estão no coração
do santuário de Lourdes. Lourdes é o santuário da Imaculada Conceição, um lugar
de consolação e de cura.”
***
Enquanto isso, no último dia da
Conferência de Media Católica (CMC) em Atlanta, nos Estados Unidos da América (EUA),
a 21 de junho, o prefeito do Dicastério para a Comunicação do Vaticano abordou
questões colocadas por jornalistas sobre a prática regular do dicastério de
publicar arte do padre Rupnik, de 69 anos, no site do Vaticano News e nas
redes sociais, sobretudo, para ilustrar dias de festa da Igreja “Como cristãos,
somos convidados a não julgar”, disse Paolo Ruffini à sala cheia de
profissionais de comunicação (350), depois de proferir um discurso na CMC, relevando
que embora o processo de investigação do Vaticano sobre o Padre Rupnik ainda
esteja em curso, “uma antecipação de uma decisão é algo que não é, na nossa
opinião, não é boa”.
“Remover, apagar, destruir arte nunca
foi uma boa escolha”, vincou Ruffini, mencionando o lendário artista italiano
Michelangelo Merisi da Caravaggio, conhecido simplesmente como Caravaggio, que
no decurso da sua vida matou um homem.
Remover a arte do Padre Rupnik do
espaço público “não é uma resposta cristã”, disse Ruffini, frisando: “Não
estamos a falar de abuso de menores. “Estamos a falar [sobre] uma história que
não conhecemos.”
“E penso que, como cristãos, temos
que compreender que a proximidade com as vítimas é importante. Mas não sei se
este é o caminho da cura”, acrescentou Ruffini, dizendo que “há pessoas que [estão]
a rezar em santuários de muitas igrejas, em todo o Mundo”, diante dos mosaicos
criados pelo padre Rupnik. “Não creio que devamos atirar pedras pensando que
este é o caminho da cura”, considerou. E observou que mesmo a Companhia de Jesus, que
expulsou Rupnik, por desobediência, não retirou a arte dele da capela da Cúria
Geral em Roma.
Com isso justificou também que o seu e outros dicastérios
continuem a usar imagens de obras de Rupnik: usam as que tinham. “Não decidimos
o que não nos competia decidir”, disse.
***
A estreita ligação entre o trabalho
artístico de Rupnik e os seus alegados abusos foi confirmada ao OSV News por Gloria Branciani, ex-religiosa
da Comunidade Loyola, na Eslovénia, alegando que o padre Rupnik abusou dela,
durante nove anos, quando o jesuíta era o diretor espiritual da Comunidade
Loiola. “Em Rupnik, a dimensão sexual não pode ser separada da experiência
criativa”, disse Branciani, quando questionada sobre os seus projetos
artísticos. “Ao retratar-me, aduziu que eu representava o eterno feminino: a sua
inspiração artística vem justamente de sua abordagem da sexualidade”, explicou Branciani,
modelo do padre Rupnik, quando ainda era estudante de Medicina e convidada
frequente do seu ateliê na Piazza del Gesù, em Roma. “Ele argumentou que a
sexualidade é transformada e purificada na obra de arte”, declarou Branciani.
O Vatican
News informou que o DDF “contactou várias instituições, nos últimos meses,
para obter documentação relacionada com o padre Marko Rupnik”, e que a Sala de
Imprensa da Santa Sé confirmou que a investigação do dicastério foi “expandida
para outros realidades eclesiais com as quais anteriormente não havia contacto”.
Porém, fosse ou
não em reação a estas posições, as vítimas de Marko Rupnik puseram-se em campo.
Como refere a agência Ansa, a advogada Laura Sgrò, que representa cinco das ex-religiosas
que se assumem como vítimas do padre, dirigiu, recentemente, uma carta a vários
bispos de diferentes partes do Mundo, alegando que a exposição dos mosaicos em
locais de culto é inadequada, e traumatizante para as vítimas que têm de lidar,
“diariamente, com as consequências psicológicas que os abusos lhes causaram”. Além
disso há testemunhos que mostram que parte dos alegados abusos esteve associada
ao processo de produção de algumas obras de arte.
“Independentemente de qualquer processo em curso contra o
autor e independentemente do resultado, o que se pede é que prevaleçam razões
de bom senso, para não utilizar estes mosaicos em ambientes eclesiais,
independentemente do valor artístico”, escreve Laura Sgrò.
Acolhendo a posição
das vítimas, o cardeal arcebispo de Boston Sean O’Malley veio ao debate,
defendendo que as estruturas da Igreja não devem criar a ideia de que a Santa
Sé “é alheia ao sofrimento psicológico que tantos estão a sofrer”.
Intervindo
como presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores e Pessoas
Vulneráveis, o cardeal enviou uma carta aos dicastérios da Cúria Romana a
expressar a esperança de que, durante este tempo, “a prudência pastoral
impedirá a exibição de obras de arte de uma forma que pudesse implicar ou
exoneração ou uma defesa subtil” de supostos perpetradores de abuso “ou indicar
indiferença à dor e ao sofrimento de tantas vítimas de abuso”.
Na missiva,
O’Malley faz notar que, embora a presunção de inocência, durante a investigação,
deva ser respeitada, a Santa Sé e os seus departamentos devem “exercer sábia
prudência pastoral e compaixão para com as pessoas prejudicadas pelo abuso
sexual clerical”.
Entretanto, Paolo Ruffini, de 67 anos, defendeu o uso oficial da arte do acusado de
violação. Em defesa de Rupnik e por comparação, Ruffini perguntou à sala cheia
de profissionais dos media, em Atlanta: “E Caravaggio?” Michelangelo Merisi da
Caravaggio era um depravado filantropo que produziu uma arte espantosa. Através
de utilização extraordinária da luz e da escuridão, os seus quadros apresentam
uma visão realista do que significa ser humano, atraindo o espectador para as emoções
humanas profundas que ele retratava de forma tão realista.
Depois de ter assassinado em Roma um bandido abastado,
Ranuccio Tommasoni – os dois brigaram por causa de uma dívida de jogo, ou
talvez por causa de uma prostituta – Caravaggio manteve-se em fuga até à morte,
em 1610. Há quem diga que viajou, para conseguir ser perdoado da sentença de
morte. Porém, a arte de Caravaggio influenciou pintores da era barroca e de
outras épocas, de Rubens a Rembrandt.
É óbvio que Rupnik não é nenhum Caravaggio. As pinturas de
Caravaggio foram encomendadas para novas igrejas e palácios de cardeais
influentes. Os mosaicos de Rupnik adornam umas 43 capelas ou igrejas em Roma, e
existem 231 obras em todo o Mundo.
São bastante invulgares. Algumas pessoas acham-nas feias.
Aliás, a arte é controversa.
Os mosaicos
de Rupnik apresentam, invariavelmente, a pessoa humana com um rosto comprido e
olhos grandes. Desprezando a Natureza, evocam o trabalho de um aluno da escola
primária apaixonado por cores vivas e purpurinas. Para lá dos desvios
artísticos de Rupnik da realidade, as suas 20 ou 30 acusadoras (até agora)
dizem que as coagiu a atos sexuais através de abusos espirituais e emocionais.
As suas histórias são horríveis. Uma das acusadoras diz que ele abusou de
várias mulheres da Comunidade Loyola, que fundou na sua Eslovénia natal, antes
de se mudar para Roma, onde fundou o Instituto de Arte Centro Aletti, no início
da década de 1990.
As acusadoras afirmam que os abusos sexuais e espirituais
foram essenciais para o seu processo criativo. E a Companhia de Jesus – a que
Rupnik aderiu em 1973 – considerou as alegações credíveis e despediu-o, em
2023, quando se recusou a respeitar as suas restrições. Prontamente se vinculou
a uma diocese eslovena, continuando a produzir e a vender as suas obras.
Alguns lugares consideram a possibilidade de retirar o
seu trabalho, mas Ruffini, do Vaticano, não acha boa a ideia. Mesmo assim, há
precedentes no ato de cobrir arte já existente. Os mosaicos encomendados, em
1965, pelo Papa São Paulo VI, no Seminário Maior de Roma, estão escondidos por
uma parede falsa com representações de Rupnik, do chão ao teto, de cenas
bíblicas em vermelhos, laranjas e amarelos brilhantes. Isso seria fácil de
deitar abaixo.
Todavia, a
questão não era tanto a remoção dos mosaicos de Rupnik, mas a continuação da
promoção da sua arte nos materiais do Vaticano. O Vaticano mantém várias
imagens de Rupnik nos seus sítios digitais, e Ruffini disse à assembleia de
Atlanta não ter a intenção de as retirar, pois a remoção da arte não
demonstraria “proximidade” com as vítimas de Rupnik. Porém, resta saber o que
sentirão outras vítimas, especialmente as mulheres, de abusos sexuais e
espirituais por parte de clérigos em todo o Mundo.
***
São gravíssimos, dos ângulos jurídico e ético, o abuso de
poder e sexual; e as verdadeiras vítimas merecem respeito, proximidade e todo o
apoio. Contudo, não é lícito nem pedagógico resolver tais problemas, removendo
as obras de arte, que desempenham o seu papel independentemente da probidade do
artista. A antropagogia junto das vítimas também passa pela separação das
questões. Se olharmos à imoralidade processual da produção de obras de arte
cristã, muitas deveriam ser removidas e destruídas. Palácios, basílicas e
capelas, em Roma viriam abaixo, pois foram obras inspiradas ou ocupada por
Pontífices cuja vida não era recomendável. A própria basílica Vaticana resultou,
em parte, do dinheiro das indulgências, pregadas de forma errónea.
Portanto, punam-se os crimes, corrijam-se os erros, mas não
sejamos iconoclastas!
2024.07.15
– Louro de Carvalho
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