sábado, 27 de julho de 2024

Portugal entrou, há 50 anos, no caminho da descolonização

 

Três meses após o fim do Estado Novo, pela “Lei da Descolonização”, Lei n.º 7/74, de 27 de julho, Portugal reconhecia o direito dos povos à autodeterminação, incluindo a aceitação da independência dos territórios ultramarinos, que deixaram de ser, constitucionalmente, parte do território português, nos termos da Lei n.º 3/74, de 14 de maio, que estabeleceu a continuidade da Constituição de 1933 exceto no que contradissesse as duas leis anteriores, esta própria lei, outra futura lei constitucional ou o Programa do Movimento das Forças Armadas, publicado em anexo à lei (ver artigo 1.º), e ainda criou uma estrutura constitucional provisória a vigorar até à aprovação de nova Constituição.

Efetivamente, a 26 de julho, o Conselho de Estado (CE), que detinha poderes constitucionais, nos termos do n.º 1, 1.º, do artigo 13.º da Lei n.º 3/74, de 14 de maio, decretou o esclarecimento do alcance do n.º 8 do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, cujo texto faz parte integrante da lei em referência, na sequência do entendimento do Movimento das Forças Armadas (MFA), através da Junta de Salvação Nacional (JSN) e dos seus representantes no CE.

O princípio de que a solução das guerras no ultramar é política, e não militar, consagrado no n.º 8, alínea a), do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento, por Portugal, do direito dos povos à autodeterminação. O reconhecimento deste direito, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do artigo 1.º da Constituição Política de 1933. Assim, compete ao Presidente da República, ouvidos a JSN, o CE e o governo provisório, concluir os acordos relativos a este direito.

Esta lei foi promulgada por António de Spínola, ainda em 26 de julho, e publicada a 27.

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Há, a par do início formal do processo de descolonização, a derrota política de Spínola, então presidente da JSN e Presidente da República, o qual, na noite de 25 de abril para 26, exigiu nova redação da norma em causa do Programa do MFA. Em vez do reconhecimento explícito do direito dos povos à autodeterminação, o general impôs o texto seguinte: “A política ultramarina do governo provisório, tendo em atenção que a sua definição competirá à Nação, orientar-se-á pelos seguintes princípios: a) reconhecimento de que a solução das guerras no ultramar é política, e não militar; b) criação de condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino; c) lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz.”

Veja-se, em síntese, a postura da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a matéria.

Quando a ONU foi criada, em 1945, cerca de 750 milhões de pessoas (um terço da população mundial) vivia em territórios colonizados. Hoje, menos de dois milhões vivem sob o domínio colonial nos 17 territórios autónomos existentes. A descolonização, que mudou a face do planeta, nasceu com a ONU e representa o seu primeiro sucesso como organização mundial. E a Carta da ONU, que estabelece o Princípio da Autodeterminação dos Povos criou o Conselho de Tutela como um dos principais órgãos da ONU, com o objetivo de acompanhar a situação em 11 “Territórios de Confiança” específicos, sujeitos a acordos com os estados administradores.

O Conselho foi criado para manter a paz e proteger os povos sem governo próprio, garantindo que os territórios não governados por si tivessem o interesse dos habitantes em consideração. Estes territórios haviam sido formalmente administrados sob mandatos da Liga das Nações, ou separados de países derrotados na Segunda Guerra Mundial, ou voluntariamente colocados sob administração do país colonizador.

Como o processo de descolonização avançava, a Assembleia Geral, em 1960, adotou a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Colonizados, que afirmou o direito de todas as pessoas à autodeterminação e proclamou o fim incondicional do colonialismo. Dois anos depois, foi criada a Comissão Especial de Descolonização para acompanhar a sua implementação.

Em 1990, a Assembleia proclamou a Década Internacional pela Erradicação do Colonialismo (1990-2000), que incluía um plano de ação específico. Em 2001, foi seguida por uma Segunda Década Internacional pela Erradicação do Colonialismo. O final da Segunda Década coincidiu com o cinquentenário da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais. Ao mesmo tempo, a Assembleia Geral declarou o período 2011-2020 como a Terceira Década Internacional para a Erradicação do Colonialismo.

Desde a criação da ONU, 80 ex-colónias conquistaram a independência no qual inclui todos os 11 Territórios Fiduciários, que alcançaram a autodeterminação através da independência ou da associação livre com um Estado independente. O Comité Especial acompanha a situação nos restantes 17 territórios, trabalhando para facilitar o avanço em direção à autodeterminação.

Entretanto, Portugal seguiu este percurso:

Em 11 de junho de 1953, inflexibilidade portuguesa levou a União Indiana a assumir uma atitude agressiva. No final do ano, instituiu um bloqueio económico ao Estado da Índia, que se prolongou até Setembro de 1960. Portugal decidiu o reforço da defesa militar dos territórios e a instituição de um fundo económico destinado a empreendimentos de fomento agrícola e mineiro e obras públicas relacionadas com esses setores.

A 27 de junho de 1953, na sequência da reforma constitucional de 1951 e da sua linguagem assimilacionista, foi promulgada a Lei Orgânica do Ultramar Português, que apresenta uma descentralização tímida, com o aumento dos poderes das autoridades locais, mas reforçando a unidade imperial e suprindo o estatuto do indigenato em São Tomé e Príncipe e em Timor.

A 7 de julho de 1954, organizou-se a União dos Povos do Norte de Angola (UPNA) em torno das tradições do antigo reino do Kongo, patenteando um nacionalismo tribal, com forte implantação entre os Bacongo. E, a 22 de julho, nacionalistas pacifistas da União Indiana (satyagrahis), protegidos pelas tropas do bloqueio, invadiram e ocuparam os enclaves. Portugal interpôs, no ano seguinte, recurso no Tribunal Internacional de Haia para recuperar os territórios invadidos. A sentença, proferida em 1960, reconhecia a soberania portuguesa sobre Dadrá e Nagar-Aveli.

Em 1956, a 19 de setembro, foi criado o Partido Africano para a Independência (PAI), com vista à independência da da Guiné e de Cabo Verde, pelo que foi rebatizado, ainda nesse ano, como Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC). E, a 10 de dezembro, foi criado o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), cuja liderança saiu dos assimilados, mestiços e brancos radicais de Luanda, com forte implantação entre as classes urbanas da capital angolana e o grupo étnico Mbundu dos arredores, procurando unir os angolanos numa base não tribal e não racial.

Em 1957, surgiu o Movimento Anticolonial (MAC), em Paris e em Lisboa, que deu, em 1960, na Conferência de Tunes, origem à Frente Revolucionária Africana para a Independência das Colónias Portuguesas (FRAIN), como frente de organizações (de Guiné e Angola)

Em dezembro de 1958, a UPNA passa a designar-se UPA (União dos Povos de Angola), para se ajustar às visões dominantes do nacionalismo africano.

A 3 de agosto de 1959, ocorreu o Massacre do Pidjiguiti, em Bissau, na sequência da greve de estivadores e de marinheiros no cais, que exigiam aumento salarial, e que foi duramente reprimida pela polícia, tendo resultado em cerca de 30 mortes, com prisões e interrogatórios. Tal facto serviu como fator de aglutinação da causa libertação Bissau-Guineense.

Em 1960, surgiu, na Rodésia, a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), que se transferiu para a Tanzânia, em 1961, e que representava Moçambique na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. E, em junho do mesmo ano, no seguimento de reunião entre população e administração colonial, convocada pela União Nacional Africana de Moçambique (MANU), foi reprimida brutalmente a população, em particular trabalhadores e pequenos proprietários. O acontecimento teve impacto junto das populações macondes, futuros sustentáculos da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), no Norte da colónia. Foi o Massacre de Mueda.

A 17 de setembro de 1960, foi criado o Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP), que passou, em 1972, a Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), obtendo o reconhecimento da Organização da Unidade Africana (OUA).

Em 1961, a 4 de fevereiro, o MPLA atacou as prisões de Luanda; a 15 de março, a UPA atacou fazendas do Norte de Angola, a que se seguiu violenta a repressão da parte das tropas e de colonos portugueses e o começo da guerra colonial; a 17 de junho, foi reaberto o Campo do Tarrafal; a 1 de agosto, Portugal perdeu o forte de São João Baptista de Ajudá, na costa do Daomé; a 6 de setembro, foi revogado o Estatuto dos Indígenas; e, a 6 de dezembro, foi anexado o Estado Português da Índia pela União Indiana.

Depois, a 27 de março de 1962, a UPA transformou-se em Frente de Libertação de Angola (FNLA); a 25 de junho, surgiu a FRELIMO; a 23 de janeiro de 1963, começou a guerra colonial na Guiné; a 25 de setembro de 1964, iniciou-se a guerra colonial em Moçambique; a 21 de maio de 1965, foi encerrada a Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), e, em setembro, foi extinta a Casa de Estudantes do Império; e, a 13 de março de 1966, foi criada a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA).

A 20 de maio de 1968, António de Spínola substituiu Arnaldo Schultz no governo da Guiné, pautando a sua política pela reorganização do dispositivo militar e pelo agressivo programa de atração das populações guineenses designado “Por uma Guiné Melhor”; a 3 de fevereiro de 1969, foi assassinado Eduardo Mondlane, líder da FRELIMO; em julho-agosto de 1970, desencadeia-se a Operação Nó Górdio, para destruir as bases da FRELIMO, em Cabo Delgado, e, a 22 de novembro, desencadeia-se a Operação Mar Verde, para derrubar Sékou Touré, líder do PAIGC; em maio de 1972, Spínola encontra-se com Léopold Sédar Senghor, para entabular negociações com o PAIGC; a 20 de janeiro de 1973, foi morto Amílcar Cabral, líder do PAIGC; e, a 24 de setembro, o PAIGC declara, unilateralmente, em Madina do Boé, a independência da Guiné-Bissau, imediatamente reconhecida por 82 países, com a ONU a condenar Portugal pela ocupação ilegal do território.

Em fevereiro de 1974, após ter abandonado o governo da Guiné, Spínola publica “Portugal e o Futuro”, onde defende que Portugal devia assegurar a manutenção dos vínculos com o Ultramar, através de uma federação emanada de referendos de autodeterminação, já que o conflito em curso não tinha solução militar. E, na noite do 25 de Abril, na qualidade de presidente da JSN, lê a Proclamação da Junta perante as câmaras da RTP, afirmando que a primeira tarefa política é “garantir a sobrevivência da Nação como Pátria soberana no seu todo pluricontinental”.

Entretanto, a 4 de maio, surge a primeira manifestação de boicote ao embarque de tropas para as colónias, por motivos de revolta, de fadiga e pelo enorme esforço de guerra, que durava 13 anos.

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A ONU aceitaria como descolonização a adesão de colónias a Portugal, por via referendária, desde que a adesão fosse livre (a condenação relativamente à Guiné tem a ver com a ocupação ilegal do território). Porém, os movimentos de libertação, que fizeram a guerra e tinham apoios internacionais diversificados exigiam, como condição para o cessar-fogo e para negociações efetivas de paz, o reconhecimento à independência. Foi isso que o MFA percebeu e estipulou – o que Spínola Travou, enquanto pôde – e que as diligências negociais dos políticos confirmaram.

A Lei n.º 7/74, de 27 de julho, dita a derrota de Spínola, que, após várias ações de atração castrense e popular, renuncia a 30 de setembro. A descolonização avançou, tendo ficado a primeira fase concluída com a independência de Angola, a 11 de novembro de 1975. Macau transitou para a China, a 20 de dezembro de 1999, e Timor ficou independente, a 20 de maio de 2002.

2024.07.27 – Louro de Carvalho

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