Efetivamente, na primeira leitura (2Rs 4,42-44) do 17.º domingo do Tempo Comum no Ano B, Eliseu
manda distribuir pelas pessoas que o rodeiam os pães que lhe foram oferecidos.
O profeta, como sinal vivo de Deus para a Humanidade tem um gesto que é lição
de Deus: “ensina a partilha, a generosidade, a solidariedade”.
Os “ciclos” proféticos de Elias e de
Eliseu ocupam significativo espaço nos livros dos Reis (cf 1Rs 17,1-21,29; 2Rs
1,1-13,21), num período conturbado, política e religiosamente, do Reino do Norte
(Israel). Elias exerce a missão profética nos reinados de Acab (874-853 a.C.) e
de Acazias (853-852 a.C.); e Eliseu, nos reinados de Jorão (853-842 a.C.), de
Jeú (842-813 a.C.) e de Joacaz (813-797 a.C.).
Os reis, com mira na viabilidade e
no desenvolvimento do reino, estabelecem relações comerciais, económicas,
políticas e militares com os povos circunvizinhos, o que teve custos no
atinente à vivência religiosa, pois os cultos aos deuses estrangeiros, com
entrada livre no país, começaram a ocupar lugar significativo na vida dos Israelitas.
É uma época de instabilidade social e política, em que se multiplicam as
injustiças contra os pobres e as arbitrariedades contra os fracos. Os
Israelitas fiéis viam nisto um quadro de infidelidades contra Deus e contra a
Aliança. É contra esta situação que se erguem as vozes de Elias e de Eliseu, em
representação dos Israelitas fiéis aos valores tradicionais, incompatíveis com
a coexistência de Javé e de Baal no horizonte da fé.
Eliseu, o ator principal da primeira
leitura desta dominga, integrava a comunidade de “filhos de profetas” (“benê
nebi’im” – 2Rs 2,3; 4,1), uma
comunidade de homens que viviam pobremente e que seguiam incondicionalmente Javé.
O Povo consultava-os e e buscava, neles, apoio, face aos abusos dos poderosos.
Eliseu é apresentado, muitas vezes, como um profeta “dos milagres”, cujas ações
poderosas mostram a presença da força e da vida de Deus no meio do seu Povo.
Outras vezes, é o profeta da intervenção política; a sua ação ultrapassa as
fronteiras físicas de Israel e chega a Damasco. O cenário do episódio da
primeira leitura é, provavelmente, Guilgal, santuário do Leste de Jericó, onde
tinha sido erguido um monumento de pedra para comemorar a passagem do Jordão
pelos Israelitas à entrada na Terra Prometida. Havia ali uma comunidade de
“filhos de profetas” que Eliseu visitava.
O trecho em apreço narra como um
homem de Baal-Shalisha (perto de Guilgal) trouxe a Eliseu o “pão das
primícias”: 20 pães de cevada e de trigo novo. Estes pães, feitos com a farinha
dos primeiros frutos da colheita, deviam ser apresentados e consagrados a Deus.
Depois, revertiam para os sacerdotes. Será este costume que está subjacente à
entrega dos pães a Eliseu. No entanto, Eliseu mandou repartir estes dons pelos
que o rodeavam. O servo do profeta não acreditava que os 20 pães oferecidos
chegassem para saciar cem pessoas, mas chegaram e sobraram.
Sucedem-se gestos reveladores da
generosidade e da vontade de partilhar: do homem que leva os dons ao profeta e
do profeta que os manda partilhar com as pessoas que o rodeiam. A descrição
desta miraculosa multiplicação de pães sugere que, se o homem é capaz de sair
do egoísmo e está disponível para partilhar os dons que recebeu de Deus, esses
dons chegam a todos e sobram. A generosidade, a partilha, a solidariedade, não
empobrecem, antes geram Vida em abundância.
Este relato fornecerá aos autores
neotestamentários o modelo literário para apresentarem os relatos evangélicos
de multiplicação dos pães e dos peixes.
***
No Evangelho (Jo 6,1-5),
Jesus proporciona aos discípulos e à multidão o sinal da multiplicação dos pães
e dos peixes, que se concretiza na partilha. O seu gesto “abre os olhos” dos
discípulos e fá-los perceber que só a lógica da partilha, da gratuitidade, do
dom, do serviço multiplicam o pão que sacia as fomes. É esta lógica que permite
passar da escravidão dos bens à liberdade do amor e que fará nascer um Mundo
mais humano, solidário, fraterno e sorereno.
O cenário situa-nos “na outra
margem” do Lago de Tiberíades, no cimo de um monte não identificado. A tradição
cristã considera que tal margem não seria o lado oriental do lago, mas a zona
de Tabga, não longe de Cafarnaum. Em termos cronológicos, João nota que estava
perto a Páscoa, a festa mais importante do calendário judaico, que celebrava a
libertação do Povo de Deus da opressão do Egito. A referência à Páscoa
funcionará, nesta catequese joânica, como convite ao leitor para entender a
cena como figura da Páscoa e da instituição da eucaristia.
Há paralelos entre a cena da
multiplicação dos pães e a libertação do Povo de Deus da escravidão do Egito,
com Jesus no papel de Moisés, o libertador. Assim, o evangelista vê a ação de
Jesus como libertação do novo Povo de Deus da escravidão para rumar à Vida
nova.
A referência à “passagem do mar” até
à “outra margem”, em alusão à passagem do Mar Vermelho por Moisés com o Povo
libertado do Egipto, mostra que o objetivo de Jesus é levar o Povo que o
acompanha a passar da terra da escravidão para a terra da liberdade (a “outra
margem”).
Como aconteceu com Moisés, com Jesus
vai grande multidão, que pretende “ver os milagres que Ele realizava nos
doentes (“astheneîs”)”. O termo grego utilizado “asthenês” (“enfermo”) designa
alguém em situação de grande debilidade. A multidão segue Jesus, pois quer ver
os sinais (“sêmeîa”) que Ele faz e que representam a libertação do homem da sua
debilidade. O povo que vai atrás de Jesus para a outra margem é marcado pela
opressão e quer experimentar a libertação. Aquela gente percebeu que só Jesus a
ajudará a superar a sua condição de miséria e de escravidão.
Chegados à outra margem, Jesus subiu
a “um monte e sentou-se lá com os discípulos”. A referência ao monte evoca a
Aliança do Sinai, onde Deus ofereceu ao Povo, por Moisés, os mandamentos. Isto
quer dizer que Jesus realiza a nova Aliança entre Deus e o Povo de gente livre
que “atravessou o mar”, com Jesus, rumo à terra da liberdade.
A referência à proximidade da Páscoa
seria inútil fora do contexto da libertação do Povo da escravidão. Para os
contemporâneos de Jesus, a Páscoa era a festa da libertação e da constituição do
Povo de Deus, bem como do anúncio do tempo futuro em que o Messias ia libertar,
em definitivo, o Povo de Deus. Pela Páscoa, o Povo devia subir a Jerusalém para
celebrar, no monte do Templo, a libertação; mas João põe a multidão a ir atrás
de Jesus para outro monte, do outro lado do mar. Este Povo começa, pela palavra
e pela ação de Jesus, a libertar-se do jugo do judaísmo e a perceber que Jesus
quem inaugurará os tempos novos da liberdade e da paz.
Aquela multidão tem fome e não tem que
comer. Estamos, de novo, remetidos ao deserto do Êxodo, quando o Povo a
caminhar para a terra da liberdade sentiu fome. Foi Deus quem respondeu a esta
necessidade, dando comida em abundância; aqui, é Jesus que Se apercebe da fome
da multidão e lhe dá resposta. Mostra, assim, o rosto do Deus do amor e da
bondade, sempre atento às necessidades dos seus filhos.
Todavia, na resposta à fome daquela
gente, Jesus envolve o grupo dos discípulos (“onde havemos de comprar pão para
lhes dar de comer?”). Com efeito, os membros da comunidade de Jesus não podem
passar ao lado das multidões esfomeadas, como se isso não lhes dissesse
respeito; mas devem sentir-se responsáveis pela fome das pessoas e assumir a
missão de lhes saciar a fome.
Ao implicar os discípulos no
problema, Jesus convida-os a sugerirem soluções. João esclarece que Jesus queria
“experimentá-los”, talvez para descobrir se tinham interiorizado os valores do
Reino de Deus. O problema pode ser posto assim: “Como pretende a comunidade dos
discípulos – formados na escola e nos valores de Jesus – responder à fome do
Mundo? Recorrendo ao sistema económico vigente, baseado no egoísmo e no poder
do dinheiro, pondo os bens nas mãos de poucos e gerando a lógica de opressão,
de dependência e de necessidade? Será este o sistema desse Mundo novo e livre
que Jesus deseja instituir? Os discípulos de Jesus alinham com o sistema
opressor, baseado na compra e venda e no lucro, ou perceberam que Jesus tem proposta
nova a fazer, geradora de libertação e de Vida em abundância para todos?”
Filipe, em nome dos discípulos,
verifica a impossibilidade de resolver o problema no quadro económico vigente:
“duzentos denários não bastariam para dar um pedaço a cada um”. Um denário
equivalia ao salário base de um dia de trabalho; assim, nem o dinheiro de mais
de meio ano de trabalho daria para resolver o problema. Ou seja, confiando no
sistema instituído (o da compra e venda, que supõe o sistema económico regido
pelo lucro egoísta), é impossível resolver o problema da necessidade dos
esfomeados. Porém, André vislumbra uma solução diferente. Representa os
discípulos que aderiram a Jesus de forma convicta, que têm grande intimidade
com Ele e que estão mais cônscios da proposta de Jesus. Refere “um menino” que
pode fornecer solução diferente, mas não está convicto do resultado (“o que é
isso para tanta gente?”). E Jesus provará que é possível encontrar um sistema
que reparta vida e que elimine a lógica da exploração.
A figura do “menino”, que só aparece
na cena da multiplicação dos pães na versão joânica, não é necessária do ponto
de vista da narração. Para o resultado, tanto dava que o possuidor dos pães e
dos peixes fosse criança ou adulto. Contudo, a criança, pela idade e pela sua condição,
é “débil”, física e socialmente. Representa a debilidade da comunidade de Jesus,
face às enormes carências do Mundo. O termo grego utilizado por João para falar
da criança (“paidárion”) significa, simultaneamente, “menino” e “servo”. Assim,
a comunidade, representada no “menino”, é, para o Mundo, um grupo socialmente
humilde, sem pretensão de poder e de domínio, dedicada ao serviço dos homens. É
a comunidade simples e humilde, vocacionada para o serviço, que é chamada a resolver
a questão da necessidade dos pobres e a instaurar um novo sistema libertador.
Os números “cinco” (“pães”) e “dois”
(“peixes”) não aparecem por acaso: a soma dá “sete”, o número que significa
totalidade. Ou seja: é na partilha da totalidade do que a comunidade possui que
se responde à carência dos homens. É uma totalidade fracionada e diversificada,
mas que, posta ao serviço dos irmãos, sacia a fome do Mundo.
Sobre os alimentos disponibilizados
pela comunidade, Jesus pronuncia a “ação de graças”. “Dar graças” significa
reconhecer que os bens são dons de Deus. Ora, reconhecer que os bens vêm de
Deus significa desvinculá-los do possessor humano, para reconhecer que são dom
gratuito de Deus aos homens; e Deus não os oferece a uns e não a outros. “Dar graças”
é, pois, reconhecer que os bens recebidos pertencem a todos e que quem os
possui é só administrador encarregado de os pôr à disposição de todos, com a
gratuitidade com que os recebeu. Os bens são, assim, libertos da posse
exclusiva de alguns, para serem dom de Deus para todos. É este o sistema que
Deus quer instaurar no Mundo; e a comunidade cristã é chamada a praticar esta
lógica.
Saciada a fome do Mundo, através dos
bens que a comunidade recebe de Deus e que põe ao serviço de todos, os discípulos
são chamados a outras tarefas. As sobras não se podem perder, mas devem ser o
princípio de outras abundâncias. É preciso multiplicar incessantemente o amor e
o pão. E a comunidade, percebido o projeto de Jesus, deve usar o que tem, para
continuar a oferecer a Vida aos homens. A referência aos doze cestos recolhidos
pelos discípulos pode ser uma alusão a Israel (as doze tribos): se a comunidade
dos discípulos souber partilhar o que recebeu de Deus, pode satisfazer a fome
de toda a gente.
Alguns dos que testemunharam a
multiplicação dos pães e dos peixes têm consciência de que Jesus é o Messias
que devia vir para dar ao Povo vida em abundância e querem fazê-lo rei. Jesus
não aceita, porque não veio resolver os problemas do Mundo, instaurando um
sistema de poder, mas veio convidar os homens a viverem a lógica de partilha e
de solidariedade, que se faz dom e serviço humilde aos irmãos. É assim que Se
propõe – com a cooperação dos discípulos – eliminar o sistema opressor,
responsável pela fome e pela miséria. O Mundo novo de Jesus veio não assenta no
poder, mas no serviço simples e humilde que leva a partilhar a vida com os
irmãos.
Face ao sistema do lucro e da
exploração, Jesus propõe a substituição do egoísmo pelo amor e pela partilha
fraterna. Quem quiser acompanhar Jesus passará da escravidão do lucro para a
liberdade da partilha, do serviço, da solidariedade, do amor aos irmãos. O que
resultará daí é a Humanidade totalmente livre da escravidão dos bens: os
necessitados tornam-se livres, porque têm o necessário para viverem uma vida
digna e humana; e os que repartem libertam-se da lógica egoísta dos bens e da
escravidão do dinheiro e descobrem a liberdade do amor e do serviço.
***
Na segunda leitura (Ef 4,1-6),
Paulo lembra aos crentes algumas exigências da vida cristã. Recomenda-lhes a
humildade, a mansidão e a paciência – atitudes que não se coadunam com esquemas
de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de preconceito, em relação aos
irmãos.
Começa por aludir ao facto de estar
preso “pela causa do Senhor”, o que dá uma autoridade especial às suas
recomendações: o que diz são palavras de alguém que leva tão a sério a proposta
de Jesus, que é capaz de sofrer e de arriscar a vida por ela.
Os cristãos de Éfeso – como os
cristãos de todos os tempos e lugares – receberam um chamamento (“klêsis”) de
Deus. Ao responder positivamente a esse chamamento, passaram a integrar a
Igreja (“ekklêsía”) de Jesus, a comunidade dos chamados, o que exige que vivam
unidos em Cristo.
De forma prática, o emitente da
carta refere atitudes e comportamentos que são condição necessária para que a
unidade em Cristo seja efetiva. Antes de mais, vem a humildade, pois só ela supera
o egoísmo, o orgulho, a arrogância, a autossuficiência, que afastam os irmãos e
que erguem muros de separação; depois, vem a mansidão, irmã da humildade e que
facilita a convivência e abre as portas à comunhão; e vem a paciência, que
permite ser tolerante e compreensivo para com as falhas dos irmãos e que ajuda
a entender e a aceitar os diferentes modos de ser e de agir. Pede-se, ainda, aos
irmãos que se preocupem uns com os outros, apoiando-se, ajudando-se e
cuidando-se mutuamente. É viver o mandamento do amor, como Cristo mandou. Os
chamados a integrar a Igreja devem testemunhar a unidade e a comunhão.
Para reforçar a obrigatoriedade da unidade
dos crentes, o autor da carta menciona os fundamentos da unidade: “há um só Corpo
e um só Espírito, como há uma só esperança” na vida a que todos os crentes
foram chamados; “há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo; há um só Deus e Pai
de todos, que está acima de todos, atua em todos e em todos se encontra”. A
menção do Pai, do Filho e do Espírito sugere que a Trindade é a fonte última e
o modelo da unidade que os cristãos devem viver, na sua experiência de
caminhada comunitária, em que pontifica a partilha fraterna.
***
Abris, Senhor, as vossas mãos e
saciais a nossa fome. Graças Vos deem, Senhor, todas as criaturas
e bendigam-Vos os vossos fiéis.
2024.07.28 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário