segunda-feira, 29 de julho de 2024

Deus quer saciar a fome de todos os seus filhos, o que postula a partilha

 

Efetivamente, na primeira leitura (2Rs 4,42-44) do 17.º domingo do Tempo Comum no Ano B, Eliseu manda distribuir pelas pessoas que o rodeiam os pães que lhe foram oferecidos. O profeta, como sinal vivo de Deus para a Humanidade tem um gesto que é lição de Deus: “ensina a partilha, a generosidade, a solidariedade”.

Os “ciclos” proféticos de Elias e de Eliseu ocupam significativo espaço nos livros dos Reis (cf 1Rs 17,1-21,29; 2Rs 1,1-13,21), num período conturbado, política e religiosamente, do Reino do Norte (Israel). Elias exerce a missão profética nos reinados de Acab (874-853 a.C.) e de Acazias (853-852 a.C.); e Eliseu, nos reinados de Jorão (853-842 a.C.), de Jeú (842-813 a.C.) e de Joacaz (813-797 a.C.).

Os reis, com mira na viabilidade e no desenvolvimento do reino, estabelecem relações comerciais, económicas, políticas e militares com os povos circunvizinhos, o que teve custos no atinente à vivência religiosa, pois os cultos aos deuses estrangeiros, com entrada livre no país, começaram a ocupar lugar significativo na vida dos Israelitas. É uma época de instabilidade social e política, em que se multiplicam as injustiças contra os pobres e as arbitrariedades contra os fracos. Os Israelitas fiéis viam nisto um quadro de infidelidades contra Deus e contra a Aliança. É contra esta situação que se erguem as vozes de Elias e de Eliseu, em representação dos Israelitas fiéis aos valores tradicionais, incompatíveis com a coexistência de Javé e de Baal no horizonte da fé.

Eliseu, o ator principal da primeira leitura desta dominga, integrava a comunidade de “filhos de profetas” (“benê nebi’im” – 2Rs 2,3; 4,1), uma comunidade de homens que viviam pobremente e que seguiam incondicionalmente Javé. O Povo consultava-os e e buscava, neles, apoio, face aos abusos dos poderosos. Eliseu é apresentado, muitas vezes, como um profeta “dos milagres”, cujas ações poderosas mostram a presença da força e da vida de Deus no meio do seu Povo. Outras vezes, é o profeta da intervenção política; a sua ação ultrapassa as fronteiras físicas de Israel e chega a Damasco. O cenário do episódio da primeira leitura é, provavelmente, Guilgal, santuário do Leste de Jericó, onde tinha sido erguido um monumento de pedra para comemorar a passagem do Jordão pelos Israelitas à entrada na Terra Prometida. Havia ali uma comunidade de “filhos de profetas” que Eliseu visitava.

O trecho em apreço narra como um homem de Baal-Shalisha (perto de Guilgal) trouxe a Eliseu o “pão das primícias”: 20 pães de cevada e de trigo novo. Estes pães, feitos com a farinha dos primeiros frutos da colheita, deviam ser apresentados e consagrados a Deus. Depois, revertiam para os sacerdotes. Será este costume que está subjacente à entrega dos pães a Eliseu. No entanto, Eliseu mandou repartir estes dons pelos que o rodeavam. O servo do profeta não acreditava que os 20 pães oferecidos chegassem para saciar cem pessoas, mas chegaram e sobraram.

Sucedem-se gestos reveladores da generosidade e da vontade de partilhar: do homem que leva os dons ao profeta e do profeta que os manda partilhar com as pessoas que o rodeiam. A descrição desta miraculosa multiplicação de pães sugere que, se o homem é capaz de sair do egoísmo e está disponível para partilhar os dons que recebeu de Deus, esses dons chegam a todos e sobram. A generosidade, a partilha, a solidariedade, não empobrecem, antes geram Vida em abundância.

Este relato fornecerá aos autores neotestamentários o modelo literário para apresentarem os relatos evangélicos de multiplicação dos pães e dos peixes.

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No Evangelho (Jo 6,1-5), Jesus proporciona aos discípulos e à multidão o sinal da multiplicação dos pães e dos peixes, que se concretiza na partilha. O seu gesto “abre os olhos” dos discípulos e fá-los perceber que só a lógica da partilha, da gratuitidade, do dom, do serviço multiplicam o pão que sacia as fomes. É esta lógica que permite passar da escravidão dos bens à liberdade do amor e que fará nascer um Mundo mais humano, solidário, fraterno e sorereno.

O cenário situa-nos “na outra margem” do Lago de Tiberíades, no cimo de um monte não identificado. A tradição cristã considera que tal margem não seria o lado oriental do lago, mas a zona de Tabga, não longe de Cafarnaum. Em termos cronológicos, João nota que estava perto a Páscoa, a festa mais importante do calendário judaico, que celebrava a libertação do Povo de Deus da opressão do Egito. A referência à Páscoa funcionará, nesta catequese joânica, como convite ao leitor para entender a cena como figura da Páscoa e da instituição da eucaristia.

Há paralelos entre a cena da multiplicação dos pães e a libertação do Povo de Deus da escravidão do Egito, com Jesus no papel de Moisés, o libertador. Assim, o evangelista vê a ação de Jesus como libertação do novo Povo de Deus da escravidão para rumar à Vida nova.

A referência à “passagem do mar” até à “outra margem”, em alusão à passagem do Mar Vermelho por Moisés com o Povo libertado do Egipto, mostra que o objetivo de Jesus é levar o Povo que o acompanha a passar da terra da escravidão para a terra da liberdade (a “outra margem”).

Como aconteceu com Moisés, com Jesus vai grande multidão, que pretende “ver os milagres que Ele realizava nos doentes (“astheneîs”)”. O termo grego utilizado “asthenês” (“enfermo”) designa alguém em situação de grande debilidade. A multidão segue Jesus, pois quer ver os sinais (“sêmeîa”) que Ele faz e que representam a libertação do homem da sua debilidade. O povo que vai atrás de Jesus para a outra margem é marcado pela opressão e quer experimentar a libertação. Aquela gente percebeu que só Jesus a ajudará a superar a sua condição de miséria e de escravidão.

Chegados à outra margem, Jesus subiu a “um monte e sentou-se lá com os discípulos”. A referência ao monte evoca a Aliança do Sinai, onde Deus ofereceu ao Povo, por Moisés, os mandamentos. Isto quer dizer que Jesus realiza a nova Aliança entre Deus e o Povo de gente livre que “atravessou o mar”, com Jesus, rumo à terra da liberdade.

A referência à proximidade da Páscoa seria inútil fora do contexto da libertação do Povo da escravidão. Para os contemporâneos de Jesus, a Páscoa era a festa da libertação e da constituição do Povo de Deus, bem como do anúncio do tempo futuro em que o Messias ia libertar, em definitivo, o Povo de Deus. Pela Páscoa, o Povo devia subir a Jerusalém para celebrar, no monte do Templo, a libertação; mas João põe a multidão a ir atrás de Jesus para outro monte, do outro lado do mar. Este Povo começa, pela palavra e pela ação de Jesus, a libertar-se do jugo do judaísmo e a perceber que Jesus quem inaugurará os tempos novos da liberdade e da paz.

Aquela multidão tem fome e não tem que comer. Estamos, de novo, remetidos ao deserto do Êxodo, quando o Povo a caminhar para a terra da liberdade sentiu fome. Foi Deus quem respondeu a esta necessidade, dando comida em abundância; aqui, é Jesus que Se apercebe da fome da multidão e lhe dá resposta. Mostra, assim, o rosto do Deus do amor e da bondade, sempre atento às necessidades dos seus filhos.

Todavia, na resposta à fome daquela gente, Jesus envolve o grupo dos discípulos (“onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?”). Com efeito, os membros da comunidade de Jesus não podem passar ao lado das multidões esfomeadas, como se isso não lhes dissesse respeito; mas devem sentir-se responsáveis pela fome das pessoas e assumir a missão de lhes saciar a fome.

Ao implicar os discípulos no problema, Jesus convida-os a sugerirem soluções. João esclarece que Jesus queria “experimentá-los”, talvez para descobrir se tinham interiorizado os valores do Reino de Deus. O problema pode ser posto assim: “Como pretende a comunidade dos discípulos – formados na escola e nos valores de Jesus – responder à fome do Mundo? Recorrendo ao sistema económico vigente, baseado no egoísmo e no poder do dinheiro, pondo os bens nas mãos de poucos e gerando a lógica de opressão, de dependência e de necessidade? Será este o sistema desse Mundo novo e livre que Jesus deseja instituir? Os discípulos de Jesus alinham com o sistema opressor, baseado na compra e venda e no lucro, ou perceberam que Jesus tem proposta nova a fazer, geradora de libertação e de Vida em abundância para todos?”

Filipe, em nome dos discípulos, verifica a impossibilidade de resolver o problema no quadro económico vigente: “duzentos denários não bastariam para dar um pedaço a cada um”. Um denário equivalia ao salário base de um dia de trabalho; assim, nem o dinheiro de mais de meio ano de trabalho daria para resolver o problema. Ou seja, confiando no sistema instituído (o da compra e venda, que supõe o sistema económico regido pelo lucro egoísta), é impossível resolver o problema da necessidade dos esfomeados. Porém, André vislumbra uma solução diferente. Representa os discípulos que aderiram a Jesus de forma convicta, que têm grande intimidade com Ele e que estão mais cônscios da proposta de Jesus. Refere “um menino” que pode fornecer solução diferente, mas não está convicto do resultado (“o que é isso para tanta gente?”). E Jesus provará que é possível encontrar um sistema que reparta vida e que elimine a lógica da exploração.

A figura do “menino”, que só aparece na cena da multiplicação dos pães na versão joânica, não é necessária do ponto de vista da narração. Para o resultado, tanto dava que o possuidor dos pães e dos peixes fosse criança ou adulto. Contudo, a criança, pela idade e pela sua condição, é “débil”, física e socialmente. Representa a debilidade da comunidade de Jesus, face às enormes carências do Mundo. O termo grego utilizado por João para falar da criança (“paidárion”) significa, simultaneamente, “menino” e “servo”. Assim, a comunidade, representada no “menino”, é, para o Mundo, um grupo socialmente humilde, sem pretensão de poder e de domínio, dedicada ao serviço dos homens. É a comunidade simples e humilde, vocacionada para o serviço, que é chamada a resolver a questão da necessidade dos pobres e a instaurar um novo sistema libertador.

Os números “cinco” (“pães”) e “dois” (“peixes”) não aparecem por acaso: a soma dá “sete”, o número que significa totalidade. Ou seja: é na partilha da totalidade do que a comunidade possui que se responde à carência dos homens. É uma totalidade fracionada e diversificada, mas que, posta ao serviço dos irmãos, sacia a fome do Mundo.

Sobre os alimentos disponibilizados pela comunidade, Jesus pronuncia a “ação de graças”. “Dar graças” significa reconhecer que os bens são dons de Deus. Ora, reconhecer que os bens vêm de Deus significa desvinculá-los do possessor humano, para reconhecer que são dom gratuito de Deus aos homens; e Deus não os oferece a uns e não a outros. “Dar graças” é, pois, reconhecer que os bens recebidos pertencem a todos e que quem os possui é só administrador encarregado de os pôr à disposição de todos, com a gratuitidade com que os recebeu. Os bens são, assim, libertos da posse exclusiva de alguns, para serem dom de Deus para todos. É este o sistema que Deus quer instaurar no Mundo; e a comunidade cristã é chamada a praticar esta lógica.

Saciada a fome do Mundo, através dos bens que a comunidade recebe de Deus e que põe ao serviço de todos, os discípulos são chamados a outras tarefas. As sobras não se podem perder, mas devem ser o princípio de outras abundâncias. É preciso multiplicar incessantemente o amor e o pão. E a comunidade, percebido o projeto de Jesus, deve usar o que tem, para continuar a oferecer a Vida aos homens. A referência aos doze cestos recolhidos pelos discípulos pode ser uma alusão a Israel (as doze tribos): se a comunidade dos discípulos souber partilhar o que recebeu de Deus, pode satisfazer a fome de toda a gente.

Alguns dos que testemunharam a multiplicação dos pães e dos peixes têm consciência de que Jesus é o Messias que devia vir para dar ao Povo vida em abundância e querem fazê-lo rei. Jesus não aceita, porque não veio resolver os problemas do Mundo, instaurando um sistema de poder, mas veio convidar os homens a viverem a lógica de partilha e de solidariedade, que se faz dom e serviço humilde aos irmãos. É assim que Se propõe – com a cooperação dos discípulos – eliminar o sistema opressor, responsável pela fome e pela miséria. O Mundo novo de Jesus veio não assenta no poder, mas no serviço simples e humilde que leva a partilhar a vida com os irmãos.

Face ao sistema do lucro e da exploração, Jesus propõe a substituição do egoísmo pelo amor e pela partilha fraterna. Quem quiser acompanhar Jesus passará da escravidão do lucro para a liberdade da partilha, do serviço, da solidariedade, do amor aos irmãos. O que resultará daí é a Humanidade totalmente livre da escravidão dos bens: os necessitados tornam-se livres, porque têm o necessário para viverem uma vida digna e humana; e os que repartem libertam-se da lógica egoísta dos bens e da escravidão do dinheiro e descobrem a liberdade do amor e do serviço.

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Na segunda leitura (Ef 4,1-6), Paulo lembra aos crentes algumas exigências da vida cristã. Recomenda-lhes a humildade, a mansidão e a paciência – atitudes que não se coadunam com esquemas de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de preconceito, em relação aos irmãos.

Começa por aludir ao facto de estar preso “pela causa do Senhor”, o que dá uma autoridade especial às suas recomendações: o que diz são palavras de alguém que leva tão a sério a proposta de Jesus, que é capaz de sofrer e de arriscar a vida por ela.

Os cristãos de Éfeso – como os cristãos de todos os tempos e lugares – receberam um chamamento (“klêsis”) de Deus. Ao responder positivamente a esse chamamento, passaram a integrar a Igreja (“ekklêsía”) de Jesus, a comunidade dos chamados, o que exige que vivam unidos em Cristo.

De forma prática, o emitente da carta refere atitudes e comportamentos que são condição necessária para que a unidade em Cristo seja efetiva. Antes de mais, vem a humildade, pois só ela supera o egoísmo, o orgulho, a arrogância, a autossuficiência, que afastam os irmãos e que erguem muros de separação; depois, vem a mansidão, irmã da humildade e que facilita a convivência e abre as portas à comunhão; e vem a paciência, que permite ser tolerante e compreensivo para com as falhas dos irmãos e que ajuda a entender e a aceitar os diferentes modos de ser e de agir. Pede-se, ainda, aos irmãos que se preocupem uns com os outros, apoiando-se, ajudando-se e cuidando-se mutuamente. É viver o mandamento do amor, como Cristo mandou. Os chamados a integrar a Igreja devem testemunhar a unidade e a comunhão.

Para reforçar a obrigatoriedade da unidade dos crentes, o autor da carta menciona os fundamentos da unidade: “há um só Corpo e um só Espírito, como há uma só esperança” na vida a que todos os crentes foram chamados; “há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo; há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, atua em todos e em todos se encontra”. A menção do Pai, do Filho e do Espírito sugere que a Trindade é a fonte última e o modelo da unidade que os cristãos devem viver, na sua experiência de caminhada comunitária, em que pontifica a partilha fraterna. 

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Abris, Senhor, as vossas mãos e saciais a nossa fome. Graças Vos deem, Senhor, todas as criaturas
e bendigam-Vos os vossos fiéis.

2024.07.28 – Louro de Carvalho

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