quinta-feira, 18 de julho de 2024

O banho de sangue em Gaza tem de acabar já

 

É a grande asserção de Ursula von der Leyen no discurso que proferiu, com várias promessas, antes da reeleição como presidente da Comissão Europeia, a 18 de julho, pelo plenário do Parlamento Europeu (PE), reunido em Estrasburgo, na França.

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Ursula von der Leyen foi reeleita numa votação decisiva, que representou o maior teste ao seu legado político, forjado ao longo de uma sucessão de crises que abalaram os alicerces da União Europeia (UE). Obteve 401 votos a favor e 284 contra, 15 abstenções e sete votos nulos, uma ampla maioria para apoiar o seu segundo mandato de cinco anos. Da última vez que enfrentou o hemiciclo, passou com a margem pequeníssima de nove votos. “Os últimos cinco anos mostraram o que podemos fazer juntos”, disse. “Vamos fazer isso de novo. Vamos fazer a escolha da força. Façamos a escolha da liderança.”

Foi o culminar de dias intensos de negociações à porta fechada, em que a política alemã, de 65 anos, se reuniu freneticamente com os principais grupos políticos do PE – em alguns casos, várias vezes – para garantir o maior número possível de apoios. Apesar de os três grupos moderados – o Partido Popular Europeu (PPE), os Socialistas e Democratas (S&D) e os liberais do Renew Europe (RE) – terem lugares suficientes para a reeleição, as divergências internas indiciavam uma aritmética instável, obrigando von der Leyen a procurar apoio adicional junto dos Verdes e dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR).

A sua abertura à direita radical do CRE, liderada pelo Fratelli d’Italia de Giorgia Meloni e pelo Lei e Justiça (PiS) da Polónia, revelou-se controversa para as forças progressistas, que a viram como ameaça à coligação moderada. Por isso, tentou acalmar tais receios, prometendo “nenhuma cooperação estruturada” com o grupo de Meloni e recomprometeu-se com os objetivos do Pacto Ecológico, que a sua família de centro-direita tem vindo a contestar.

O caráter secreto do escrutínio não permite saber quem votou a favor e contra. Porém o discurso, com várias referências à ação climática, sugere que foram os Verdes que se tornaram cruciais.

“Garantimos compromissos sobre o Pacto Ecológico, tornando a UE mais justa do ponto de vista social e protegendo a democracia”, afirmaram os Verdes, confirmando o seu apoio.

Em contrapartida, o grupo ECR afirmou que “grande maioria das delegações nacionais” se oporia à candidata. Um representante dos Fratelli d’Italia confirmou que o grupo da primeira-ministra italiana tinha votado contra o candidato.

No discurso, foi nomeando várias medidas – uma infinidade de promessas –, capazes de agradar a diferentes geométricas políticas, traçando o rumo da Comissão Europeia, para o novo mandato.

No âmbito da prosperidade e da competitividade, fortalecerá o mercado único europeu, reduzindo a burocracia, para melhoria da aplicação das regras, para o que nomeará um vice-presidente, para coordenar a redução da carga administrativa e “relatar o progresso anualmente”. E propõe uma “União Europeia de Poupança e Investimentos, para mobilizar mais financiamento privado”, e a criação do Fundo Europeu de Competitividade, para projetos europeus comuns e transfronteiriços, pois “o mercado único deve ser mais profundo e dinâmico”.

A nível da energia e do clima, continuará a implementação do Green Deal com foco na inovação e na neutralidade tecnológica, para o que proporá um novo “Clean Industrial Deal nos primeiros 100 dias”, para canalizar investimentos em infraestruturas e indústrias intensivas em energia. “Vamos manter o rumo da nossa nova estratégia de crescimento e dos objetivos que estabelecemos para 2030 e 2050”, afirmou, comprometendo-se com a meta de 90% de redução das emissões até 2040, conforme a Lei do Clima Europeia.

No quadro da segurança e da defesa, pretende construir “uma verdadeira União Europeia de Defesa”. Para os próximos cinco anos, promete investimentos em capacidades de defesa de alta tecnologia e a criação de projetos comuns, como um sistema abrangente de defesa aérea europeia. Reforçará a Europol e a Frontex, triplicando o número de guardas de fronteira e costeiros europeus. “A segurança da Europa é dever da Europa”, sublinhou.

Em termos da democracia e do estado de direito, proporá um “Escudo Europeu da Democracia”, para combater a manipulação e interferência de informações estrangeiras, reforçando as ferramentas para proteger os media livres e a sociedade civil, focando-se no combate à corrupção e no respeito ao estado de direito. “A democracia europeia deve ser mais participativa e vibrante”, afirmou, vincando a importância do apoio a imprensa independente e da promoção de programas de alfabetização mediática.

A nível da inclusão social e dos direitos humanos, desenvolverá um novo plano de ação para a implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, criará um comissário com responsabilidade direta sobre habitação, para desenvolver um Plano Europeu de Habitação Acessível, para ajudar a desbloquear o investimento privado e público necessário, e fará o Roteiro dos Direitos das Mulheres, para avançar na igualdade de género e para combater a violência contra as mulheres.

Quanto à imigração, destacou a necessidade de resposta europeia à crise migratória, “com uma abordagem justa e firme baseada nos nossos valores”. Assim, fortalecerá a Frontex, triplicando o número de guardas de fronteira e costeiros europeus para 30 mil e desenvolverá parcerias abrangentes, particularmente com a região do Mediterrâneo, e nomeará um comissário para essa região, a fim de apoiar uma nova Agenda para o Mediterrâneo.

No âmbito da habitação, promete abordar a crise da habitação na Europa, nos termos do indicado para a inclusão social e direitos humanos. “Se importa aos Europeus, importa à Europa,” referiu, frisando a importância de apoiar as pessoas onde é mais necessário.

No quadro do alargamento da UE, defende um alargamento, para incluir os Balcãs Ocidentais, a Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia, pois “completar a nossa União é também do nosso interesse central”. E promete apoiar os países candidatos, através de investimentos e de reformas, integrando-os, onde for possível, nos quadros legais europeus.

Quanto à Rússia e a Viktor Orban, declarou que a Europa “estará com a Ucrânia o tempo que for necessário”. Criticou a visita de Viktor Orban a Moscovo, considerando que os objetivos de Orban passam por fazer concessões à Rússia. “A Rússia está a apostar que a Europa e o Ocidente vão amolecer e alguns na Europa estão a colaborar”, sublinhou.

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Como se depreende do teor do discurso, não foram apenas os Verdes, todos os grupos moderados receberam algo de von der Leyen. Há ideias típicas dos socialistas, como o novo comissário para a habitação e o roteiro para os direitos das mulheres, e dos liberais, que exigem que os estados-membros respeitem o estado de direito em troca de receberem fundos da UE (algo esquisito pagar-se a democracia com dinheiro e vice-versa). O PPE viu grande número dos seus projetos favoritos incluídos nas orientações de von der Leyen, como o Fundo Europeu de Defesa, o aumento para o triplo do pessoal da Frontex e a redução da burocracia.

As suas diretrizes não apoiam, explicitamente, a ideia de deslocalizar os procedimentos de asilo, que o PPE incluiu no seu manifesto e a que os progressistas se opõem. Porém, diz que o executivo continuará a “refletir sobre novas formas de combater a migração irregular, respeitando o direito internacional e garantindo soluções sustentáveis e justas para os próprios migrantes”.

Em suma, von der Leyen encontrou equilíbrio entre ambição legislativa e realismo político, dando aos partidos moderados algo para defender, sem os alienar. E criticou a “missão de paz” de Orbán, que descreveu, sob fortes aplausos, como “simples missão de apaziguamento”.

“A Europa não pode controlar os ditadores e os demagogos de todo o Mundo, mas pode optar por proteger a sua própria democracia […]; não pode determinar eleições em todo o Mundo, mas pode optar por investir na segurança e na defesa do seu próprio continente; […] não pode impedir a mudança, mas pode optar por abraçá-la, investindo numa nova era de prosperidade e melhorando a nossa qualidade de vida”, afirmou aos eurodeputados.

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A rejeição da candidata indicada pelos dirigentes da UE (o Conselho Europeu) não teria tido precedentes. Diplomatas afirmaram, sob anonimato, que tal geraria uma “crise institucional” sem saída fácil, por falta de alternativa credível. O ambiente global volátil, incluindo as guerras na Ucrânia e em Gaza, ajudou a construir o seu caso como presidente de continuidade e segura.

O seu próximo passo será entrevistar os candidatos a comissários, apresentados por cada estado-membro, e decidir a estrutura do novo executivo. O processo será delicado, já que muitas capitais exigem pastas de alto nível para os seus candidatos. Uma vez formado o Colégio, será objeto de votação de confirmação no PE, ainda este ano. Se for aprovado, os 27 comissários tomarão posse e iniciarão o seu trabalho.

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Com a guerra Israel – Hamas a entrar no décimo mês e os hospitais de Gaza a chegarem a “ponto de rutura”, Von der Leyen fez a referência mais emotiva de sempre ao conflito no Médio Oriente. “Quero ser muito clara: o banho de sangue em Gaza tem de acabar já. Demasiadas crianças, mulheres e civis perderam a vida, em resultado da resposta de Israel ao terror brutal do Hamas. O povo de Gaza não aguenta mais. A Humanidade não aguenta mais”, vincou, no discurso, para acrescentar: “Precisamos de um cessar-fogo imediato e duradouro. Precisamos da libertação dos reféns israelitas e precisamos de nos preparar para o dia seguinte.”

Como presidente da Comissão, tem sido muito criticada pela posição pró-Israel. Os funcionários da UE fazem greves frequentes, a expressar desapontamento, face ao discurso de von der Leyen, e quatro eurodeputados irlandeses do grupo dos liberais (RE) decidiram ir contra o sentido de voto da sua família política e votaram contra a reeleição da médica alemã.

“Leio as suas orientações políticas. Ouvi os seus contributos nas reuniões do nosso grupo. Mas, infelizmente, não ouvi o suficiente para me fazer pensar que há uma mudança de política, particularmente em relação a Gaza”, declarou Barry Andrews, eurodeputado irlandês do RE, que recebeu milhares de cartas sobre esta questão, por parte de eleitores que querem um mandado de captura para o primeiro-ministro israelita responder no Tribunal Penal Internacional (TPI).

“E não ouvimos nada sobre os acordos comerciais. Não ouvimos nada sobre sanções. Não ouvimos nada sobre a violência dos colonos. Não ouvimos nada sobre o Tribunal Internacional de Justiça [TIJ] ou sobre o pedido de um mandado de captura no Tribunal Penal Internacional [TPI]”, prosseguiu Barry Andrews, vincando: “Infelizmente, todas estas questões foram contornadas. Fizemos alguns esforços para obter algumas respostas, mas elas não foram dadas.”

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Não sei se a presidente da Comissão Europeia, agora com reforçada confiança, conseguirá levar a cruz da pacificação em Gaza e na Cisjordânia, visto que a UE continua profundamente dividida, face ao conflito israelo-palestiniano, o que pode explicar a resposta dada até ao momento.

Em todo o caso, a UE está com reforçada credibilidade. Com efeito, “o Reino Unido está de volta à cena europeia” e atuará como “parte de boa-fé”, declarou o novo ministro trabalhista das Relações com a UE, Nick-Thomas Symonds, adiantando: “Vamos ser um governo que respeita o direito internacional, um governo que se mantém firme na cena mundial.”

Falando do Quadro de Windsor, acordado entre a Comissão e o Reino Unido, em fevereiro de 2023, para resolver os desafios conexos com a Irlanda do Norte, na sequência da saída do Reino Unido da UE, garantiu: “O nosso compromisso é implementá-lo, e não estou a dizer que vamos estar sempre de acordo, mas seremos sempre uma parte de boa-fé.”

E, de acordo com o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, foi levantada a hipótese de uma cimeira entre a UE e o Reino Unido, nos próximos meses, para se estabelecer um quadro claro de cooperação estratégica entre o Reino Unido e a UE. Sigam o diálogo e a cooperação!

2024.07.18 – Louro de Carvalho

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