quarta-feira, 10 de julho de 2024

Joana Marques Vidal, a primeira mulher a liderar o Ministério Público

 
Faleceu, a 9 de julho, a ex-procuradora-geral da República (PGR), aos 68 anos, que estava, há várias semanas, em coma no Hospital de São João, no Porto, após intervenção cirúrgica a doença cancerígena, tendo feito septicemia. 
Foi agendado o velório corpo da magistrada do Ministério Público (MP) para o dia10, na freguesia de Pedaçães, no concelho de Águeda, e as cerimónias fúnebres para o dia 11, em Aveiro, cidade onde seria cremada.
Joana Marques Vidal, a primeira mulher a ocupar o cargo de procuradora-geral da República, ganhou protagonismo com a Operação Marquês, que levou à prisão preventiva do ex-primeiro-ministro (ex-PM) José Sócrates (não foi ela a detê-lo ou a prendê-lo, como dizem alguns).
A 12 de outubro de 2012 a procuradora Marques Vidal assumiu a liderança do MP, em cerimónia de posse no Palácio de Belém para um mandato de seis anos, que ficaria marcado por um dos processos mais longos da Justiça, ainda por encerrar, e com o inédito de visar um ex-PM, que acabaria detido e, depois de ouvido, preso preventivamente.
Em entrevista ao Observador, em 2021, Marques Vidal considerava que “a perceção da opinião pública” relativamente à decisão instrutória naquela Operação era a de que “colocou em causa o prestígio e o funcionamento do sistema judicial”. Porém, este não seria o único processo mediático no seu mandato. Os inquéritos Grupo Espírito Santo (GES) e a Operação Lex, que envolve dois juízes desembargadores, os Vistos Gold, em que foi arguido um ex-ministro da Administração Interna e a Operação Fizz, que gerou polémica com Angola por causa do ex-vice presidente Manuel Vicente, e o caso de Tancos, que envolveu um ex-ministro da Defesa, casos que surgiram durante a sua liderança.
Os casos dos incêndios de Pedrógão Grande, em 2017, que provocaram 64 mortos e dezenas de feridos, da “Raríssimas”, de apropriação ilícita de recursos financeiros da instituição, e das viagens do Euro 2016, surgiram também durante o seu mandato.
Marques Vidal chegou a PGR, 33 anos após ter ingressado na magistratura, com 56 anos de idade.
Na altura desempenhava o cargo de auditora jurídica do Representante da República para a Região Autónoma dos Açores e, em acumulação, magistrada do MP no Tribunal de Contas (TdC), Secção Regional dos Açores, em Ponta Delgada.
Natural de Coimbra, onde nasceu, em 1955, filha do juiz jubilado José Marques Vidal, diretor da Polícia Judiciária (PJ) nos governos de Cavaco Silva, Joana Marques Vidal licenciou-se em Direito, em 1978, e entrou, no ano seguinte, para a magistratura do MP, como delegada do procurador da República nas comarcas de Vila Viçosa, Seixal e Cascais. E foi vogal do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e diretora-adjunta do Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Enquanto magistrada do MP, em Cascais, foi a primeira presidente da Comissão de Proteção de Menores do município e desempenhou funções como coordenadora dos magistrados do MP do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, de 1994 a 2002. E terminou as suas funções como procuradora-geral adjunta no Tribunal Constitucional (TC).
Em jeito de balanço do seu mandato de seis anos, Marques Vidal disse que, consigo à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR), se iniciou um caminho de modernização do MP. “Esse caminho passa por uma reorganização estrutural e departamental que permite uma maior flexibilização no desempenho das funções, designadamente no âmbito da ação penal, por uma formação mais exigente dos magistrados e pelo rigor da ação”, afirmou, admitindo ter ficado muito para fazer, devido às muitas dificuldades que decorrem do exercício do cargo.
Em 2022, no congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), defendeu a necessidade de a Justiça aprender a comunicar com clareza e simplicidade, mudança pedida por muitos e que está na ordem do dia, sobretudo devido à ‘Operação Influencer’, que atingiu o ex-PM António Costa e levou à queda do seu governo e à dissolução do Parlamento.
Deixou a liderança do MP a 12 de outubro de 2018, num processo de sucessão polémico, com vozes a criticar a não-recondução de Marques Vidal. E, sob proposta do governo do Partido Socialista (PS), o Presidente da República (PR) nomeou nova PGR Lucília Gago, justificando a decisão com duas “razões determinantes”: sempre ter defendido a limitação de mandatos e considerar que Lucília Gago assegurava a continuidade do combate à corrupção e defesa de uma “justiça igual para todos”. Dias após o fim do mandato, condecoraria Joana Marques Vidal com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.
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Em reação à notícia do seu falecimento, O PR lembrou a “jurista ilustre com profundas preocupações sociais e funções de liderança”. E a ministra da Justiça manifestou “profundo respeito” pela perda da “magistrada notável”, afirmando “juntar-se aos que vão sentir a sua falta e aos que lhe prestam tributo pelo seu caráter, retidão e dedicação à Justiça”.
O PM manifestou o seu pesar pela morte de Marques Vidal, que recordou como “magistrada notável” e destacou “o rigor e imparcialidade” como que exerceu o cargo de PGR:
“A procuradora-geral da República, a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Superior do Ministério Público manifestam profundo pesar pelo falecimento da procuradora-geral-adjunta jubilada Maria Joana Raposo Marques Vidal, que exerceu funções de procuradora-geral da República, nos anos de 2012 a 2018”, lê-se numa nota divulgada pela PGR.
O SMMP manifestou “profundo pesar” pela morte de Joana Marques Vidal; e o anterior presidente, António Ventinhas, sublinhou a “grande perda para a Justiça, para o Ministério Público e para a democracia”, pois era uma pessoa muito interessada no debate sobre os temas da Justiça e do MP e teve uma intervenção muito positiva enquanto PGR.
O presidente do Governo dos Açores lamentou, com “profunda tristeza e consternação”, a morte da ex-PGR, “figura ímpar” na Justiça portuguesa. Em comunicado, José Manuel Bolieiro salienta a ligação “digna de nota” de Marques Vidal aos Açores, recordando que, entre 2004 e 2007, foi auditora jurídica do ministro da República para a Região Autónoma e representante do MP na Secção Regional do TdC. Refere “a sua contribuição foi inestimável para a região, onde deixou uma marca indelével através do seu trabalho árduo e comprometimento com os valores da justiça”. E sustenta que o seu legado de justiça, ética e serviço público perdurará para sempre na memória de todos os que tiveram o privilégio de trabalhar com ela e de beneficiar do seu inestimável contributo à sociedade portuguesa”.
Cavaco Silva enalteceu “a firmeza” com que exerceu o mandato e a “maneira equilibrada como geriu casos de elevada complexidade”.
O ministro dos Assuntos Parlamentares lamentou a morte da ex-PGR, considerando que a sua dedicação e integridade foram exemplares ao serviço da justiça portuguesa.
A procuradora-geral adjunta jubilada Maria José Morgado manifestou “profundo pesar” pela morte da ex-PGR, a quem atribui “um legado inestimável” no (MP e “avanços inéditos” no combate à corrupção. “Deixa um legado inestimável ao MP, de combatividade, dignidade, capacidade de liderança”, disse Maria José Morgado à Lusa, recordando que “visitava todos os serviços do MP e conhecia em pormenor a sua situação”. E acrescentou: “Foi responsável por grandes avanços, avanços mesmo inéditos, no combate à criminalidade económico-financeira nela incluindo a corrupção e o branqueamento de capitais. Era uma pessoa muito pró-ativa, muito pragmática, com uma grande sensatez e uma grande sensibilidade social.”
Para o presidente do Parlamento, o cargo de PGR exercido por Joana Marques Vidal foi “só” a face mais pública e visível de um percurso profissional e cívico notáveis, que o país agradece”.
O Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ) manifestou “profundo pesar” pela morte de Joana Marques Vidal, recordando a vida dedicada à justiça e ao serviço público e o desempenho de funções “com grande competência, ética e compromisso”.
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Para a jornalista Carla Aguiar, “há um antes e um depois” de Marques Vidal no funcionamento do MP. Foi a primeira mulher a liderar o MP, quando este atingiu, pela primeira vez, as mais altas esferas do poder político, económico, financeiro e judicial. Foi no seu mandato que Sócrates foi detido, não havendo ainda desfecho; os alicerces do sistema financeiro português tremeram com o inquérito ao Banco Espírito Santo (BES), culminando na multimilionária reestruturação e na condenação a oito anos de prisão efetiva de Ricardo Salgado, o homem mais poderoso do país; o âmago do sistema judicial foi atingido pela Operação Lex, a envolver dois desembargadores; os políticos do governo Passista foram visados com a operação Vistos Gold, com o então ministro da Administração Interna a ser alvo de acusação, que foi absolvido; e, no penúltimo governo do PS, o Caso Tancos envolveu o então ministro da Defesa, que foi absolvido.
Talvez Marques Vidal não fizesse ideia de que, ao assumir, em outubro de 2012, o cargo público mais relevante da sua vida, se tornaria figura incómoda, em 2018, quando terminou o mandato. A Justiça começou a ser olhada pelo cidadão comum com “um misto de alarme e gáudio” por, “afrontar os poderosos” e com inquietação pelos estragos e pelos demorados desfechos. Não foi reconduzida pelo PR, o que levantou polémica em alguns quadrantes partidários.
Todavia, ao invés do que aponta a jornalista, os antecessores Pinto Monteiro e Souto Moura não foram reconduzidos. Até 2008, não se levantou o problema de o mandato ser ou não renovável. Com efeito, a Constituição não impõe nem proíbe a renovabilidade. É pela revisão de 1997 – Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro – que o mandato do PGR passou a ser de seis anos, independentemente de o PR, sob proposta o PM, poder fazer cessar o mandato antes ou depois do seu termo. Cunha Rodrigues esteve em exercício mais de 16 anos, mas foi durante esse exercício que surgiu a referida lei, após cuja vigência permaneceu durante mais quatro anos.    
Marques Vidal não se autocandidatou à recondução, apesar da pressão de alguns setores, e geriu a situação “com elevado distanciamento”.
Defender a autonomia do MP foi a sua bandeira, assumindo, desde o início, o objetivo de o “modernizar e reestruturar, com mais formação e rigor na ação”. Cunha Rodrigues considerou que “foi uma magistrada distinta, que exerceu o cargo com grande sucesso e prestigiou o Ministério Público”. E o ex-bastonário dos advogados Luís Menezes Leitão elogiou o seu “perfil de abertura” e a “grande facilidade de relacionamento com as pessoas com quem trabalhava”.
No último ato público enquanto PGR, na palestra sobre o Futuro da Justiça, mostrou-se confiante na separação de poderes: “Podem ficar descansadíssimos. O nosso sistema constitucional garante a separação de poderes.” A Constituição confere à nomeação do PGR dupla legitimidade de quem propõe (governo) e de quem nomeia (PR). Contudo, Marques Vidal era apologista da intervenção do Parlamento no processo de nomeação. “Poderia haver, por exemplo, uma audição pública da pessoa indicada para que partilhasse as suas ideias para o cargo. Daria mais transparência sobre a conceção da pessoa”, disse na ocasião.
Ao longo do mandato defendeu outras alterações, questionando, por exemplo, a existência da Polícia Judiciária Militar (PJM) como órgão de polícia criminal autónomo, a propósito do caso de Tancos, que envolveu o roubo de armas de instalações militares, por militares.
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Lamento a morte de Marques Vidal, mais do que pelos cargos desempenhados, com aprumo, dedicação e mestria (elogiei-a, pelas ideias e desempenho, e critiquei-a, pela Justiça-espetáculo permitida), pela pessoa de trato fino e simples e pelo seu conhecimento do papel relevante da comunicação social (possuía formação académica na área), cujo escrutínio não evitava. São dados de que tenho conhecimento pessoal (várias vezes nos encontrámos nos convívios dos finalistas de 1973, do Liceu Nacional Alves Martins, em Viseu) e pelos ecos na comunicação social.  

2024.07.09 – Louro de Carvalho

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