Recentemente
avistadas com o Presidente da República (PR), sete associações que representam imigrantes
receberam a promessa de que o chefe de Estado irá “fazer pressão” para que
volte a ser possível aos cidadãos que cheguem de outros países recorrerem ao mecanismo
da manifestação de interesses, o que lhes permitirá avançar com um processo de
autorização de residência e de legalização em Portugal.
Timóteo
Macedo, da Solidariedade Imigrante, em declarações à Lusa, disse que “a reunião correu bem e valeu a pena”, pois o PR
ouviu as associações e tem “uma posição” que lhes agrada. Mais referiu que
Marcelo Rebelo de Sousa “considera o diploma, que saiu do Conselho de Ministros
e foi promulgado por ele em três horas, é temporário e vai lutar por isso mesmo”.
Fiquei
sem saber se o diploma é temporário ou se o PR vai lutar por que seja temporário,
ou ainda se vai lutar pela sua revogação e pela repristinação das normas
revogadas.
Está em
causa o Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho, que altera a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na redação, então,
atual, procedendo à revogação dos procedimentos de autorização de residência
assentes em manifestações de interesse.
É de assinalar que este diploma foi aprovado pelo Conselho de
Ministros, promulgado pelo Presidente da República, referendado pelo primeiro-ministro
e publicado no mesmo dia, 3 de junho, estando o executivo em exercício, havia
dois meses.
***
Na ocasião critiquei a pressa do governo em legislar a
mata-cavalos sobre matéria tão controversa e premente. Também assinalei a pressa
com que o PR promulgou o decreto-lei. E considerei que é fácil legislar,
revogando dois ou três artigos da lei vigente, sem lhes opor redação alternativa.
Nem o preâmbulo do instrumento legislativo em referência, nem
o seu articulado assinalam ou deixam tresler a sua índole temporária. E, tanto
quanto sei, uma das caraterísticas das leis é a sua permanência ou perpetuidade
(não eternidade), isto é, são produzidas sem um horizonte temporário definido, mantendo-se
em vigor até serem revogadas, no todo ou em parte, pela competente entidade
legisladora. Excetuam-se as que o referem expressamente, as que ditam,
explicitamente, a necessidade da sua revisão, as estabelecidas em regime
excecional (estado de sítio, estado de emergência e situação de calamidade
pública), aquelas cujo objeto se esgota após o seu cumprimento e as leis do
orçamento (de periodicidade anual) e similares. Não é o caso do diploma em
causa. E, se o governo tinha pressa na publicação do decreto-lei, competia ao
PR, devidamente assessorado, exercer o seu papel de moderador, incluindo o exercício
do veto.
***
Lido o preâmbulo conclui-se que o governo, no pleno exercício
das suas funções legislativas, em matéria não reservada ao Parlamento, quis exorcizar
a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, da “possessão diabólica” que lhe foi introduzida
pela Lei n.º 59/2017, de 31 de julho, que o PR promulgou. Aliás, além
deste, promulgou todos os diplomas que alteraram a referida Lei n.º 23/2007, de
4 de julho: Lei n.º 102/2017, de
28 de agosto; Lei n.º 26/2018, de 5 de julho; Lei n.º
28/2019, de 29 de março; Decreto-Lei n.º 14/2021, de 12 de fevereiro;
Lei n.º 18/2022, de 25 de agosto; Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de
junho; Lei n.º 41/2023, de 10 de agosto; e Lei n.º 56/2023,
de 6 de outubro.
Portanto, se o chefe de Estado tinha
objeções de caráter político a algum dos diplomas, devia vetá-lo e não vir,
mais tarde, opor-lhe crítica política ou prometer pressionar para que haja alterações.
Com efeito, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, não compete ao PR
iniciar ou acompanhar qualquer processo legislativo (embora possa, discretamente,
sem interferir, ir tomando conhecimento das matérias em debate), mas apenas, a
seu tempo, intervir, através da promulgação, se não tiver dúvidas sobre a constitucionalidade
do diploma em causa (caso em que deve suscitar ao Tribunal Constitucional a apreciação
das normas que deixem transparecer tais dúvidas), ou exercer o poder de veto,
se tiver objeções de caráter político, devendo observar os prazos estabelecidos
(cf CRP – Constituição da República
Portuguesa, artigos 136.º, 278.º e 279.º). De resto, são irrelevantes
comentários positivos ou negativos, a quando da promulgação de diplomas
legislativos.
O PR não é colegislador, nem lhe assiste
o direito de iniciativa legislativa, muito menos o direito de pressionar o
governo, o Parlamento ou qualquer partido político, o que, por consequência, também
o desresponsabiliza de eventual malícia da lei.
***
A recente alteração à lei de
estrangeiros, em vigor desde 4 de junho, eliminou dos dois artigos 88.º e 89.º
as normas que permitiam aos imigrantes declarar a “manifestação de interesses”.
Daí em diante, qualquer pedido nesse sentido passou a ser recusado, mesmo que o
requerente já esteja em Portugal. E o PR, pelo alegado (não certo) caráter temporário
do diploma, prometeu “fazer pressão para que, em setembro, quando os partidos quiserem
discutir o diploma na especialidade – porque há partidos a pedir a sua revisão –,
se encontrem mecanismos para que os dois artigos da manifestação de interesses voltem
a ser aplicados”.
Ora bem. A figura constitucional (cf.
CRP, art.º 169.º) e regimental (cf. Regimento da Assembleia da República, artigos
189.º-196.º) em causa não é a discussão na especialidade, nem a revisão, mas a apreciação
parlamentar de atos legislativos (e o PR, que é professor de Direito Público,
bem o sabe), que goza de prioridade, nos termos do Regimento.
Como é do conhecimento público,
alguns partidos prometeram levar ao Parlamento o diploma em causa. Acredita-se
que os deputados os discutam no plenário. Porém, dificilmente será alterado ou
revogado, repristinando as normas revogadas dos dois artigos em causa (88.º e
89.º). Obviamente, a formação partidária que suporta o governo lutará pela sua manutenção;
o Partido Socialista (PS), se for coerente, votará contra, na linha do que vem
defendendo, bem como os partidos à sua esquerda; e o Chega, que pressiona a apreciação
parlamentar, quererá maiores restrições à imigração, como vem defendendo. Na
pior das hipóteses, o Chega e a Iniciativa Liberal (IL) votarão a manutenção do
teor do diploma. Portanto, o êxito da promessa presidencial é muito duvidoso, a
menos que os partidos do governo, por artes mágicas, retrocedam.
Se o decreto-lei não for alterado
pelo Parlamento, não há necessidade de qualquer texto específico. No caso de
cessação de vigência, o decreto-lei deixa de vigorar no dia da publicação da
resolução no Diário da República, não
podendo voltar a ser publicado no decurso da mesma sessão legislativa. A
resolução deve especificar se a cessação de vigência implica a repristinação
das normas eventualmente revogadas pelo diploma em causa. E, no caso de haver
alterações, a sua aprovação reveste a forma de lei, que seguirá os trâmites
normais.
Para tudo isto, há prazos que devem
ser cumpridos, sob pena de caducidade do processo.
É, ainda, de assinalar (na ocasião
não o referi, porque ainda não conhecia o texto do decreto-lei) que também foi
revogado o partido 81.º, nas seguintes disposições: “quando o requerimento simultâneo
referido no número anterior [“o requerente de uma autorização de residência pode solicitar
simultaneamente o reagrupamento familiar”] ocorrer no âmbito da submissão de manifestação de interesse para concessão
de autorização de residência para o exercício de uma atividade profissional,
nos termos do disposto nos n.os 2 dos artigos 88.º e 89.º, o
requerente pode identificar os membros da família que se encontrem em
território nacional, os quis beneficiam da presunção da entrada legam do requerente,
se aplicável, nos ternos do n.º 6 do artigo 88.º e do n.º 5 do artigo 89.º”; e,
“para efeitos do disposto no n.º anterior, têm preferência, na apresentação de
pedidos de autorização de residência, os requerentes cujo agregado familiar integre menores em idade escolar ou
filhos maiores a cargo, em ambos os casos a frequentar estabelecimento de
ensino em território nacional”.
Assim, fora dos casos que não
assentem na manifestação de interesses, continuam em vigor as normas que
estabelecem que “o pedido de autorização de residência pode ser formulado pelo
interessado ou pelo representante legal e deve ser apresentado junto da AIMA,
I. P., sem prejuízo do incluído nos regimes especiais”; que “o pedido pode ser
extensivo aos menores a cargo do requerente”; que, na “pendência do pedido de
autorização de residência, por causa não imputável ao requerente, o titular do
visto de residência pode exercer uma atividade profissional, nos termos da lei”;
e que “o requerente de uma autorização de residência pode solicitar
simultaneamente o reagrupamento familiar”.
Ao mesmo tempo, mantêm-se as condições de indeferimento do pedido: “indicação
de proibição de entrada e de permanência no SIS”; condenação do
requerente, em Portugal, “por sentença com trânsito em julgado em pena de
prisão superior a um ano, ainda que esta não tenha sido cumprida, ou tenha
sofrido mais de uma condenação em idêntica pena, ainda que a sua execução tenha
sido suspensa”; ou a informação que leve a concluir pela “existência de razões
de segurança interna, de ordem pública ou de prevenção da imigração ilegal e da
criminalidade conexa que não admitam a concessão ou renovação de autorização de
residência”.
***
Enfim, o historial da lei de estrangeiros, já com 16 versões
(aliás como outras muitas leis), mostra que se legisla consoante a maré, por
impulso ou por estados de alma. Nada tão mau como legislar contra alguém ou
sobre o joelho. “Não se governa com o joelho”, diz o Papa Francisco.
2024.07.16
– Louro de Carvalho
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