terça-feira, 16 de julho de 2024

Não é desejável legislar consoante as marés ou os estados de alma

 

Recentemente avistadas com o Presidente da República (PR), sete associações que representam imigrantes receberam a promessa de que o chefe de Estado irá “fazer pressão” para que volte a ser possível aos cidadãos que cheguem de outros países recorrerem ao mecanismo da manifestação de interesses, o que lhes permitirá avançar com um processo de autorização de residência e de legalização em Portugal.

Timóteo Macedo, da Solidariedade Imigrante, em declarações à Lusa, disse que “a reunião correu bem e valeu a pena”, pois o PR ouviu as associações e tem “uma posição” que lhes agrada. Mais referiu que Marcelo Rebelo de Sousa “considera o diploma, que saiu do Conselho de Ministros e foi promulgado por ele em três horas, é temporário e vai lutar por isso mesmo”.

Fiquei sem saber se o diploma é temporário ou se o PR vai lutar por que seja temporário, ou ainda se vai lutar pela sua revogação e pela repristinação das normas revogadas.

Está em causa o Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho, que altera a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na redação, então, atual, procedendo à revogação dos procedimentos de autorização de residência assentes em manifestações de interesse.

É de assinalar que este diploma foi aprovado pelo Conselho de Ministros, promulgado pelo Presidente da República, referendado pelo primeiro-ministro e publicado no mesmo dia, 3 de junho, estando o executivo em exercício, havia dois meses.

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Na ocasião critiquei a pressa do governo em legislar a mata-cavalos sobre matéria tão controversa e premente. Também assinalei a pressa com que o PR promulgou o decreto-lei. E considerei que é fácil legislar, revogando dois ou três artigos da lei vigente, sem lhes opor redação alternativa.

Nem o preâmbulo do instrumento legislativo em referência, nem o seu articulado assinalam ou deixam tresler a sua índole temporária. E, tanto quanto sei, uma das caraterísticas das leis é a sua permanência ou perpetuidade (não eternidade), isto é, são produzidas sem um horizonte temporário definido, mantendo-se em vigor até serem revogadas, no todo ou em parte, pela competente entidade legisladora. Excetuam-se as que o referem expressamente, as que ditam, explicitamente, a necessidade da sua revisão, as estabelecidas em regime excecional (estado de sítio, estado de emergência e situação de calamidade pública), aquelas cujo objeto se esgota após o seu cumprimento e as leis do orçamento (de periodicidade anual) e similares. Não é o caso do diploma em causa. E, se o governo tinha pressa na publicação do decreto-lei, competia ao PR, devidamente assessorado, exercer o seu papel de moderador, incluindo o exercício do veto.  

O Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho, limita-se a estabelecer que “são revogados os n.os 6 e 7 do artigo 81.º, os n.os 2 e 6 do artigo 88.º e os n.os 2, 4 e 5 do artigo 89.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação atual”; “entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”; e que “não se aplica aos procedimentos de autorização de residência iniciados até à sua entrada em vigor, os quais se continuam a reger pela Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação anterior”.

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Lido o preâmbulo conclui-se que o governo, no pleno exercício das suas funções legislativas, em matéria não reservada ao Parlamento, quis exorcizar a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, da “possessão diabólica” que lhe foi introduzida pela Lei n.º 59/2017, de 31 de julho, que o PR promulgou. Aliás, além deste, promulgou todos os diplomas que alteraram a referida Lei n.º 23/2007, de 4 de julho:  Lei n.º 102/2017, de 28 de agosto; Lei n.º 26/2018, de 5 de julho;   Lei n.º 28/2019, de 29 de março; Decreto-Lei n.º 14/2021, de 12 de fevereiro;  Lei n.º 18/2022, de 25 de agosto; Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de junho; Lei n.º 41/2023, de 10 de agosto; e Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro.

Portanto, se o chefe de Estado tinha objeções de caráter político a algum dos diplomas, devia vetá-lo e não vir, mais tarde, opor-lhe crítica política ou prometer pressionar para que haja alterações. Com efeito, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, não compete ao PR iniciar ou acompanhar qualquer processo legislativo (embora possa, discretamente, sem interferir, ir tomando conhecimento das matérias em debate), mas apenas, a seu tempo, intervir, através da promulgação, se não tiver dúvidas sobre a constitucionalidade do diploma em causa (caso em que deve suscitar ao Tribunal Constitucional a apreciação das normas que deixem transparecer tais dúvidas), ou exercer o poder de veto, se tiver objeções de caráter político, devendo observar os prazos estabelecidos (cf CRP – Constituição da República Portuguesa, artigos 136.º, 278.º e 279.º). De resto, são irrelevantes comentários positivos ou negativos, a quando da promulgação de diplomas legislativos.

O PR não é colegislador, nem lhe assiste o direito de iniciativa legislativa, muito menos o direito de pressionar o governo, o Parlamento ou qualquer partido político, o que, por consequência, também o desresponsabiliza de eventual malícia da lei.

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A recente alteração à lei de estrangeiros, em vigor desde 4 de junho, eliminou dos dois artigos 88.º e 89.º as normas que permitiam aos imigrantes declarar a “manifestação de interesses”. Daí em diante, qualquer pedido nesse sentido passou a ser recusado, mesmo que o requerente já esteja em Portugal. E o PR, pelo alegado (não certo) caráter temporário do diploma, prometeu “fazer pressão para que, em setembro, quando os partidos quiserem discutir o diploma na especialidade – porque há partidos a pedir a sua revisão –, se encontrem mecanismos para que os dois artigos da manifestação de interesses voltem a ser aplicados”.

Ora bem. A figura constitucional (cf. CRP, art.º 169.º) e regimental (cf. Regimento da Assembleia da República, artigos 189.º-196.º) em causa não é a discussão na especialidade, nem a revisão, mas a apreciação parlamentar de atos legislativos (e o PR, que é professor de Direito Público, bem o sabe), que goza de prioridade, nos termos do Regimento.

Como é do conhecimento público, alguns partidos prometeram levar ao Parlamento o diploma em causa. Acredita-se que os deputados os discutam no plenário. Porém, dificilmente será alterado ou revogado, repristinando as normas revogadas dos dois artigos em causa (88.º e 89.º). Obviamente, a formação partidária que suporta o governo lutará pela sua manutenção; o Partido Socialista (PS), se for coerente, votará contra, na linha do que vem defendendo, bem como os partidos à sua esquerda; e o Chega, que pressiona a apreciação parlamentar, quererá maiores restrições à imigração, como vem defendendo. Na pior das hipóteses, o Chega e a Iniciativa Liberal (IL) votarão a manutenção do teor do diploma. Portanto, o êxito da promessa presidencial é muito duvidoso, a menos que os partidos do governo, por artes mágicas, retrocedam.

Se o decreto-lei não for alterado pelo Parlamento, não há necessidade de qualquer texto específico. No caso de cessação de vigência, o decreto-lei deixa de vigorar no dia da publicação da resolução no Diário da República, não podendo voltar a ser publicado no decurso da mesma sessão legislativa. A resolução deve especificar se a cessação de vigência implica a repristinação das normas eventualmente revogadas pelo diploma em causa. E, no caso de haver alterações, a sua aprovação reveste a forma de lei, que seguirá os trâmites normais.

Para tudo isto, há prazos que devem ser cumpridos, sob pena de caducidade do processo.

É, ainda, de assinalar (na ocasião não o referi, porque ainda não conhecia o texto do decreto-lei) que também foi revogado o partido 81.º, nas seguintes disposições: “quando o requerimento simultâneo referido no número anterior [“o requerente de uma autorização de residência pode solicitar simultaneamente o reagrupamento familiar] ocorrer no âmbito da submissão de manifestação de interesse para concessão de autorização de residência para o exercício de uma atividade profissional, nos termos do disposto nos n.os 2 dos artigos 88.º e 89.º, o requerente pode identificar os membros da família que se encontrem em território nacional, os quis beneficiam da presunção da entrada legam do requerente, se aplicável, nos ternos do n.º 6 do artigo 88.º e do n.º 5 do artigo 89.º”; e, “para efeitos do disposto no n.º anterior, têm preferência, na apresentação de pedidos de autorização de residência, os requerentes cujo agregado familiar integre menores em idade escolar ou filhos maiores a cargo, em ambos os casos a frequentar estabelecimento de ensino em território nacional”.  

Assim, fora dos casos que não assentem na manifestação de interesses, continuam em vigor as normas que estabelecem que “o pedido de autorização de residência pode ser formulado pelo interessado ou pelo representante legal e deve ser apresentado junto da AIMA, I. P., sem prejuízo do incluído nos regimes especiais”; que “o pedido pode ser extensivo aos menores a cargo do requerente”; que, na “pendência do pedido de autorização de residência, por causa não imputável ao requerente, o titular do visto de residência pode exercer uma atividade profissional, nos termos da lei”; e que “o requerente de uma autorização de residência pode solicitar simultaneamente o reagrupamento familiar”.

Ao mesmo tempo, mantêm-se as condições de indeferimento do pedido: “indicação de proibição de entrada e de permanência no SIS”; condenação do requerente, em Portugal, “por sentença com trânsito em julgado em pena de prisão superior a um ano, ainda que esta não tenha sido cumprida, ou tenha sofrido mais de uma condenação em idêntica pena, ainda que a sua execução tenha sido suspensa”; ou a informação que leve a concluir pela “existência de razões de segurança interna, de ordem pública ou de prevenção da imigração ilegal e da criminalidade conexa que não admitam a concessão ou renovação de autorização de residência”.

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Enfim, o historial da lei de estrangeiros, já com 16 versões (aliás como outras muitas leis), mostra que se legisla consoante a maré, por impulso ou por estados de alma. Nada tão mau como legislar contra alguém ou sobre o joelho. “Não se governa com o joelho”, diz o Papa Francisco.

2024.07.16 – Louro de Carvalho

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