A três
meses de terminar o mandato que iniciou a 12 de Outubro de 2018, a
procuradora-geral da República (PGR), Lucília Gago, deu, a 8 de julho, a
primeira entrevista a um órgão de comunicação social, no caso a RTP1, a qual esclareceu ter sido
agendada a entrevista antes de a Assembleia da República (AR) a ter convidado
para falar com os deputados.
O tom
geral das declarações da líder do Ministério Público (MP) foi de vitimização
pela suposta campanha concertada de ataque a esta magistratura, cujos
magistrados fazem tudo bem, em nome da lei, sem erros, sem preocupações
político-partidárias, sem omissões, sem favorecimentos, cumprindo o seu dever
com transparência.
Supunha-se
que se referiria ao Manifesto “Por uma Reforma da Justiça” subscrito,
inicialmente, por 50 cidadãos, a que se juntaram, mais tarde, umas largas
dezenas. No entanto, a PGR dispara contra o Presidente da República (PR), que,
na famosa conversa informal com jornalistas estrangeiros, aludiu ao
“maquiavelismo” de a abertura do inquérito ao caso das gémeas coincidir com as
buscas na Operação Influencer.
O chefe
de Estado não terá razão, até porque o MP o colocou fora do processo das gémeas.
Porém, a magistrada não recebeu tais declarações “com agrado”, que geraram “alguma
perplexidade, surpresa e algum desconforto” a algumas pessoas e fazem criar, na
opinião pública, a ideia de “um propósito de concertação destas datas”,
propósito que não existiu, muito menos da parte da PGR. E considerou “absurda”
a ideia de o MP ter o fito de perseguir a classe política.
Ficámos
a saber que a PGR teve o cuidado de ouvir o registo áudio das declarações do
PR. E eu pergunto para que efeito. Também terá sido para lhe levantar um
inquérito? É, no mínimo, uma atitude pidesca, desejavelmente apenas remetida
para outros tempos!
Outra
entidade visada foi a ministra da Justiça, que a acusou recentemente, e em
público, de falta de capacidade de liderança e de comunicação, sendo que o
sucessor deve arrumar a casa. Para Lucília Gago, “algo incrédula e até
perplexa”, foram asserções “graves” e “num certo sentido indecifráveis”, até
porque Rita Júdice nunca lhe comunicou tal opinião, durante a audiência que
manteve consigo.
A conclusão da magistrada é a de que
se juntam a muitas outras que imputam, em exclusivo, ao MP a responsabilidade
de todas as coisas más que acontecem na Justiça, o que recusa em absoluto.
Não é verdade. A Justiça é criticada
pela morosidade, pelo excesso de garantismo, por ser ineficaz e por ser desigual
(para ricos ou poderosos e para pobres ou simples). Porém, é o MP o rosto da
investigação e da ação penal, na linha do espetáculo e da detenção e da acusação
sem indícios devidamente sustentados. E recusa-se à autocrítica e ao
escrutínio.
Não é de deixar em claro a
justificação para não dar entrevistas ou para se escusar a prestar declarações
ao público. Dizer que sempre considerou a “discrição” melhor do que o “espalhafato”
que nunca teve o “culto da imagem” e que não precisa de “popularidade, de modo
algum de estrelato” seria bom, se o cargo não exigisse o protagonismo que lhe é
inerente e se não houvesse motivos para intervir publicamente. O resto é querer
“tapar o sol com a peneira”.
Assumiu
que o famoso parágrafo do comunicado de 7 de novembro, que levou à demissão do
primeiro-ministro (PM) e à dissolução da AR, foi concertado com o gabinete de
imprensa da PGR e que foi da inteira responsabilidade da PGR. Nem se esperava
que dissesse outra coisa. Porém, é abstruso dizer que a responsabilidade da demissão
do PM decorre apenas da leitura pessoal e política que o mesmo fez, não tendo a
PGR qualquer responsabilidade no caso.
Já
sabíamos que o PR nada teve a ver com o dito parágrafo; o que não sabíamos era
que o comunicado não foi divulgado antes de a PGR falar com o chefe de Estado,
porque havia uma detenção que ainda não tinha sido consumada. Isso é
perfeitamente irrelevante.
Não
somos ingénuos, nem aceitamos que o MP, ao publicar o dito comunicado, apenas
contava com “uma reação forte”. É verdade que todos estamos sujeitos à lei, mas
também é certo que as figuras de topo do Estado devem ter condições para o
exercício dos cargos. Por isso, gozam da imunidade, que só pode ser levantada
pela AR. Sabemos que o PR ou a PGR não foram ter com António Costa a mandá-lo
pedir a demissão. Ele é que deduziu que não tinha condições para governar sob
suspeita publicamente badalada. Já a dissolução da AR era evitável, mas isso
tem a ver com o PR. Aduzir o exemplo do chefe do governo espanhol (é a esposa a
inquirida) ou a presidente da Comissão Europeia (pela crise da compra das
vacinas) não desculpa.
Que o MP
faz o seu trabalho, que não escolhe datas, que tinha de investigar António
Costa e dar público conhecimento do facto, por motivos de transparência (há
limites) e para não ser acusado de favorecimento, tudo isto são desculpas de
mau pagador. As coincidências são de mais. Veja-se o caso da Madeira, em que um
inquérito levou à exoneração do presidente do governo regional e à dissolução
do parlamento regional.
Tanto no
caso da Operação Influencer como no caso da Madeira, o juiz de instrução
criminal (JIC) e o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) declararam que não havia
indícios com o mínimo de sustentabilidade e, em particular do ex-PM, nem
qualquer indício de crime.
Ora, se
o TRL não vê indícios sustentáveis de crime, o processo devia ser arquivado.
Contudo, como “a Terra move-se” (Galileu), o processo continua, porque pode
haver factos novos. Sim, porque podemos cometer crimes, todos nós devemos
continuar a ser investigados. Absurdo!
Já o
ex-PM estava na calha para ser eleito presidente do Conselho Europeu, são
divulgadas escutas de caráter político-governativo, sem relevância penal. E o
MP não tem agenda política!
No pico
da campanha para as eleições europeias, a cabeça de lista de um partido é
objeto de buscas domiciliárias e um militante do mesmo partido foi constituído
arguido. Não havia data melhor! Porém, o MP não tem agenda política!
Lucília
Gago recordou que o inquérito aberto pelo MP à atuação do ex-PM, no âmbito da Operação
Influencer “ainda corre”, muito embora o magistrado que ouviu o futuro
presidente do Conselho Europeu, a pedido do próprio (esqueceu-se de dizer que
isso era obrigatório e que tardou), tenha entendido não haver necessidade de o
constituir arguido.
“As
investigações prosseguem”, repetiu várias vezes, recusando que se esteja
perante “um erro” dos magistrados do MP. “Não é a leitura de um magistrado.
Houve uma avaliação que incidiu com todo o cuidado na prova de que se dispunha.
E um conjunto de pessoas entendeu que havia indícios relevantes”, disse. “Se o
inquérito não foi até agora encerrado é porque haverá algo a que tal obstará”,
observou, esclarecendo que António Costa foi ouvido na qualidade de testemunha.
***
Recorde-se que a entrevista aconteceu
numa altura em que está debaixo de fogo por permanecer, tantas vezes, em silêncio
e já depois de a AR ter aprovado a sua audição. Contudo, Lucília Gago sugeriu
deslocar-se à AR depois de concluído o relatório anual de atividades de 2023 do
MP (que devia estar pronto a 31 de maio). À RTP,
negou ter-se recusado a ir a São Bento: “No próprio dia em que o convite me foi
endereçado ousei sugerir que essa ida pudesse acontecer após a conclusão do
relatório de atividades do Ministério Público. Mas disponibilizei-me para ir”
antes dessa data, garantiu, ao mesmo tempo que lia a resposta que enviou aos
deputados.
Admitindo que a imagem da justiça
“sai muito fragilizada” de episódios como o da detenção, durante três semanas,
dos arguidos da investigação aos negócios na Madeira, a entrevistada enjeitou responsabilidades
na matéria. O MP fez tudo o que lhe competia e dentro do prazo, para que o JIC
pudesse tomar uma decisão atempada, mas “a leitura que ele fez foi distinta”.
Afastou a hipótese de apresentar um pedido de desculpas a António Costa,
caso o inquérito que conduziu à sua demissão vier a ser arquivado. “De modo
algum”, disse, acrescentando que o mesmo é válido para qualquer cidadão que
seja investigado.
Sobre o facto de um governante ter sido escutado durante quatro anos,
referiu que isso, que é excecional, acontece quando é necessário, mas não
demonstrou que o fosse. Aliás, revelou que não conhece os processos, o que
mostra que não acompanha minimamente o trabalho dos magistrados e não exerce o
poder hierárquico a que é obrigada pela Constituição e pelo Estatuto dos
Magistrados do Ministério Público (EMMP). Aliás, o artigo 19.º do EMMP é
clarinho.
Não colocou a hipótese de se demitir. Também não estávamos à espera, nem
isso é necessário. Já falta pouco tempo para terminar o mandato. Preferia não a
ter ouvido: tal a inocente prepotência!
***
Para Rui Rio,
antigo líder do Partido Social Democrata (PSD), a entrevista mostra que o MP
anda numa bolha, o que – penso eu – não é crível. E, sobre a campanha, ironizou
dizendo que dá sugestões, desde há muitos anos, sem saber que andava a
conspirar.
André Coelho Lima,
antigo deputado do PSD, entende que a entrevista “foi extremamente
clarificadora”. A PGR “demonstrou a mais absoluta alienação social”, deixando
perceber que há “uma questão de cultura” no MP, que “investiga”,
independentemente das consequências para o país e para o bom nome dos cidadãos.
O MP alheia-se dos efeitos colaterais das investigações
nos cidadãos, os quais são meros detalhes. Alheia-se da sua responsabilidade
jurídica, que é acusar com fundamento sólido. De certo modo, usa o edifício
processual penal para deixar às instâncias judiciais superiores a correção ou a
retificação das inexatidões da investigação.
A
PGR diz do acórdão do TRL e da pronúncia do JIC, que arrasou os factos e a
relevância jurídico-criminal atribuída aos factos nas medidas de coação, que é
a justiça a funcionar. Esquisito não aceitar o escrutínio, nem fazer
autocrítica, com vista à melhoria, e pedir desculpas dos erros!
É
a cultura inflamatória no MP, porque a qualquer coisa que tenha esgar de
ilicitude ou de potencial criminalidade, avança, alheando-se, totalmente, dos
impactos que isso tem nas pessoas e na comunidade. Se não tiver sustentação, paciência.
É grave uma investigação não sustentada ter envolvido um PM, com impacto na
comunidade, a ponto de precipitar o términus de um mandato de eleição popular,
como é grave, se ocorrer com pessoas em particular.
Em desespero de
causa, a PGR atirou-se a todos, mas, em especial ao PR, ao ex-PM e à ministra
da Justiça, tendo sido, no dizer de André Coelho, ultrapassados os
limites do relacionamento institucional que deve existir entre um membro do governo
com tutela na área e a PGR, até porque a ministra se referiu, “sempre em
abstrato, sobre a necessidade de intervir”, não estando, necessariamente, a
criticar o que tem sido feito até agora.
***
Por
fim, não resisto a mencionar algumas competências do PGR como dirigente: promover a defesa da legalidade; dirigir e fiscalizar a atividade do MP e
emitir diretivas a que deve obedecer a atuação dos magistrados; emitir
diretivas destinadas a fazer cumprir as leis de orientação da política criminal;
informar o membro do governo responsável pela Justiça e a AR da necessidade de
medidas legislativas tendentes a conferir exequibilidade aos preceitos
constitucionais, bem como acerca de obscuridades, deficiências ou contradições
das leis; propor-lhes providências legislativas com
vista à eficiência do MP, ao aperfeiçoamento das instituições judiciárias ou a
pôr termo a decisões divergentes de tribunais ou de órgãos da Administração
Pública; intervir,
hierarquicamente, nos inquéritos; fiscalizar, superiormente, a atividade
processual dos órgãos de polícia criminal; determinar os critérios de coordenação
da atividade processual no decurso do inquérito e de prevenção levada a cabo
pelos órgãos de polícia criminal que assistam o MP, quando necessidades de
participação conjunta o justifiquem; determinar,
se necessário, a mobilização e procedimentos de coordenação, relativamente aos
órgãos de polícia criminal coadjuvante do MP; inspecionar ou mandar inspecionar a atividade e funcionamento do MP; superintender
os serviços de inspeção do MP; definir os objetivos estratégicos do MP e
homologar as propostas de objetivos processuais. Assim, não pode alhear-se dos processos
em concreto!
2024.07.11
– Louro de Carvalho
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