quinta-feira, 11 de julho de 2024

Preferia não ter ouvido a procuradora-geral da República

 

A três meses de terminar o mandato que iniciou a 12 de Outubro de 2018, a procuradora-geral da República (PGR), Lucília Gago, deu, a 8 de julho, a primeira entrevista a um órgão de comunicação social, no caso a RTP1, a qual esclareceu ter sido agendada a entrevista antes de a Assembleia da República (AR) a ter convidado para falar com os deputados.

O tom geral das declarações da líder do Ministério Público (MP) foi de vitimização pela suposta campanha concertada de ataque a esta magistratura, cujos magistrados fazem tudo bem, em nome da lei, sem erros, sem preocupações político-partidárias, sem omissões, sem favorecimentos, cumprindo o seu dever com transparência.

Supunha-se que se referiria ao Manifesto “Por uma Reforma da Justiça” subscrito, inicialmente, por 50 cidadãos, a que se juntaram, mais tarde, umas largas dezenas. No entanto, a PGR dispara contra o Presidente da República (PR), que, na famosa conversa informal com jornalistas estrangeiros, aludiu ao “maquiavelismo” de a abertura do inquérito ao caso das gémeas coincidir com as buscas na Operação Influencer.

O chefe de Estado não terá razão, até porque o MP o colocou fora do processo das gémeas. Porém, a magistrada não recebeu tais declarações “com agrado”, que geraram “alguma perplexidade, surpresa e algum desconforto” a algumas pessoas e fazem criar, na opinião pública, a ideia de “um propósito de concertação destas datas”, propósito que não existiu, muito menos da parte da PGR. E considerou “absurda” a ideia de o MP ter o fito de perseguir a classe política.

Ficámos a saber que a PGR teve o cuidado de ouvir o registo áudio das declarações do PR. E eu pergunto para que efeito. Também terá sido para lhe levantar um inquérito? É, no mínimo, uma atitude pidesca, desejavelmente apenas remetida para outros tempos!

Outra entidade visada foi a ministra da Justiça, que a acusou recentemente, e em público, de falta de capacidade de liderança e de comunicação, sendo que o sucessor deve arrumar a casa. Para Lucília Gago, “algo incrédula e até perplexa”, foram asserções “graves” e “num certo sentido indecifráveis”, até porque Rita Júdice nunca lhe comunicou tal opinião, durante a audiência que manteve consigo.

A conclusão da magistrada é a de que se juntam a muitas outras que imputam, em exclusivo, ao MP a responsabilidade de todas as coisas más que acontecem na Justiça, o que recusa em absoluto.

Não é verdade. A Justiça é criticada pela morosidade, pelo excesso de garantismo, por ser ineficaz e por ser desigual (para ricos ou poderosos e para pobres ou simples). Porém, é o MP o rosto da investigação e da ação penal, na linha do espetáculo e da detenção e da acusação sem indícios devidamente sustentados. E recusa-se à autocrítica e ao escrutínio.

Não é de deixar em claro a justificação para não dar entrevistas ou para se escusar a prestar declarações ao público. Dizer que sempre considerou a “discrição” melhor do que o “espalhafato” que nunca teve o “culto da imagem” e que não precisa de “popularidade, de modo algum de estrelato” seria bom, se o cargo não exigisse o protagonismo que lhe é inerente e se não houvesse motivos para intervir publicamente. O resto é querer “tapar o sol com a peneira”.

Assumiu que o famoso parágrafo do comunicado de 7 de novembro, que levou à demissão do primeiro-ministro (PM) e à dissolução da AR, foi concertado com o gabinete de imprensa da PGR e que foi da inteira responsabilidade da PGR. Nem se esperava que dissesse outra coisa. Porém, é abstruso dizer que a responsabilidade da demissão do PM decorre apenas da leitura pessoal e política que o mesmo fez, não tendo a PGR qualquer responsabilidade no caso.

Já sabíamos que o PR nada teve a ver com o dito parágrafo; o que não sabíamos era que o comunicado não foi divulgado antes de a PGR falar com o chefe de Estado, porque havia uma detenção que ainda não tinha sido consumada. Isso é perfeitamente irrelevante. 

Não somos ingénuos, nem aceitamos que o MP, ao publicar o dito comunicado, apenas contava com “uma reação forte”. É verdade que todos estamos sujeitos à lei, mas também é certo que as figuras de topo do Estado devem ter condições para o exercício dos cargos. Por isso, gozam da imunidade, que só pode ser levantada pela AR. Sabemos que o PR ou a PGR não foram ter com António Costa a mandá-lo pedir a demissão. Ele é que deduziu que não tinha condições para governar sob suspeita publicamente badalada. Já a dissolução da AR era evitável, mas isso tem a ver com o PR. Aduzir o exemplo do chefe do governo espanhol (é a esposa a inquirida) ou a presidente da Comissão Europeia (pela crise da compra das vacinas) não desculpa.

Que o MP faz o seu trabalho, que não escolhe datas, que tinha de investigar António Costa e dar público conhecimento do facto, por motivos de transparência (há limites) e para não ser acusado de favorecimento, tudo isto são desculpas de mau pagador. As coincidências são de mais. Veja-se o caso da Madeira, em que um inquérito levou à exoneração do presidente do governo regional e à dissolução do parlamento regional.

Tanto no caso da Operação Influencer como no caso da Madeira, o juiz de instrução criminal (JIC) e o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) declararam que não havia indícios com o mínimo de sustentabilidade e, em particular do ex-PM, nem qualquer indício de crime.

Ora, se o TRL não vê indícios sustentáveis de crime, o processo devia ser arquivado. Contudo, como “a Terra move-se” (Galileu), o processo continua, porque pode haver factos novos. Sim, porque podemos cometer crimes, todos nós devemos continuar a ser investigados. Absurdo!

Já o ex-PM estava na calha para ser eleito presidente do Conselho Europeu, são divulgadas escutas de caráter político-governativo, sem relevância penal. E o MP não tem agenda política!

No pico da campanha para as eleições europeias, a cabeça de lista de um partido é objeto de buscas domiciliárias e um militante do mesmo partido foi constituído arguido. Não havia data melhor! Porém, o MP não tem agenda política!

Lucília Gago recordou que o inquérito aberto pelo MP à atuação do ex-PM, no âmbito da Operação Influencer “ainda corre”, muito embora o magistrado que ouviu o futuro presidente do Conselho Europeu, a pedido do próprio (esqueceu-se de dizer que isso era obrigatório e que tardou), tenha entendido não haver necessidade de o constituir arguido.

“As investigações prosseguem”, repetiu várias vezes, recusando que se esteja perante “um erro” dos magistrados do MP. “Não é a leitura de um magistrado. Houve uma avaliação que incidiu com todo o cuidado na prova de que se dispunha. E um conjunto de pessoas entendeu que havia indícios relevantes”, disse. “Se o inquérito não foi até agora encerrado é porque haverá algo a que tal obstará”, observou, esclarecendo que António Costa foi ouvido na qualidade de testemunha.

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Recorde-se que a entrevista aconteceu numa altura em que está debaixo de fogo por permanecer, tantas vezes, em silêncio e já depois de a AR ter aprovado a sua audição. Contudo, Lucília Gago sugeriu deslocar-se à AR depois de concluído o relatório anual de atividades de 2023 do MP (que devia estar pronto a 31 de maio). À RTP, negou ter-se recusado a ir a São Bento: “No próprio dia em que o convite me foi endereçado ousei sugerir que essa ida pudesse acontecer após a conclusão do relatório de atividades do Ministério Público. Mas disponibilizei-me para ir” antes dessa data, garantiu, ao mesmo tempo que lia a resposta que enviou aos deputados.

Admitindo que a imagem da justiça “sai muito fragilizada” de episódios como o da detenção, durante três semanas, dos arguidos da investigação aos negócios na Madeira, a entrevistada enjeitou responsabilidades na matéria. O MP fez tudo o que lhe competia e dentro do prazo, para que o JIC pudesse tomar uma decisão atempada, mas “a leitura que ele fez foi distinta”.

Afastou a hipótese de apresentar um pedido de desculpas a António Costa, caso o inquérito que conduziu à sua demissão vier a ser arquivado. “De modo algum”, disse, acrescentando que o mesmo é válido para qualquer cidadão que seja investigado.

Sobre o facto de um governante ter sido escutado durante quatro anos, referiu que isso, que é excecional, acontece quando é necessário, mas não demonstrou que o fosse. Aliás, revelou que não conhece os processos, o que mostra que não acompanha minimamente o trabalho dos magistrados e não exerce o poder hierárquico a que é obrigada pela Constituição e pelo Estatuto dos Magistrados do Ministério Público (EMMP). Aliás, o artigo 19.º do EMMP é clarinho.

Não colocou a hipótese de se demitir. Também não estávamos à espera, nem isso é necessário. Já falta pouco tempo para terminar o mandato. Preferia não a ter ouvido: tal a inocente prepotência!    

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Para Rui Rio, antigo líder do Partido Social Democrata (PSD), a entrevista mostra que o MP anda numa bolha, o que – penso eu – não é crível. E, sobre a campanha, ironizou dizendo que dá sugestões, desde há muitos anos, sem saber que andava a conspirar. 

André Coelho Lima, antigo deputado do PSD, entende que a entrevista “foi extremamente clarificadora”. A PGR “demonstrou a mais absoluta alienação social”, deixando perceber que há “uma questão de cultura” no MP, que “investiga”, independentemente das consequências para o país e para o bom nome dos cidadãos. O MP alheia-se dos efeitos colaterais das investigações nos cidadãos, os quais são meros detalhes. Alheia-se da sua responsabilidade jurídica, que é acusar com fundamento sólido. De certo modo, usa o edifício processual penal para deixar às instâncias judiciais superiores a correção ou a retificação das inexatidões da investigação.

A PGR diz do acórdão do TRL e da pronúncia do JIC, que arrasou os factos e a relevância jurídico-criminal atribuída aos factos nas medidas de coação, que é a justiça a funcionar. Esquisito não aceitar o escrutínio, nem fazer autocrítica, com vista à melhoria, e pedir desculpas dos erros!

É a cultura inflamatória no MP, porque a qualquer coisa que tenha esgar de ilicitude ou de potencial criminalidade, avança, alheando-se, totalmente, dos impactos que isso tem nas pessoas e na comunidade. Se não tiver sustentação, paciência. É grave uma investigação não sustentada ter envolvido um PM, com impacto na comunidade, a ponto de precipitar o términus de um mandato de eleição popular, como é grave, se ocorrer com pessoas em particular. 

Em desespero de causa, a PGR atirou-se a todos, mas, em especial ao PR, ao ex-PM e à ministra da Justiça, tendo sido, no dizer de André Coelho, ultrapassados os limites do relacionamento institucional que deve existir entre um membro do governo com tutela na área e a PGR, até porque a ministra se referiu, “sempre em abstrato, sobre a necessidade de intervir”, não estando, necessariamente, a criticar o que tem sido feito até agora. 

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Por fim, não resisto a mencionar algumas competências do PGR como dirigente: promover a defesa da legalidade; dirigir e fiscalizar a atividade do MP e emitir diretivas a que deve obedecer a atuação dos magistrados; emitir diretivas destinadas a fazer cumprir as leis de orientação da política criminal; informar o membro do governo responsável pela Justiça e a AR da necessidade de medidas legislativas tendentes a conferir exequibilidade aos preceitos constitucionais, bem como acerca de obscuridades, deficiências ou contradições das leis; propor-lhes providências legislativas com vista à eficiência do MP, ao aperfeiçoamento das instituições judiciárias ou a pôr termo a decisões divergentes de tribunais ou de órgãos da Administração Pública; intervir, hierarquicamente, nos inquéritos; fiscalizar, superiormente, a atividade processual dos órgãos de polícia criminal; determinar os critérios de coordenação da atividade processual no decurso do inquérito e de prevenção levada a cabo pelos órgãos de polícia criminal que assistam o MP, quando necessidades de participação conjunta o justifiquem; determinar, se necessário, a mobilização e procedimentos de coordenação, relativamente aos órgãos de polícia criminal coadjuvante do MP; inspecionar ou mandar inspecionar a atividade e funcionamento do MP; superintender os serviços de inspeção do MP; definir os objetivos estratégicos do MP e homologar as propostas de objetivos processuais. Assim, não pode alhear-se dos processos em concreto!

2024.07.11 – Louro de Carvalho

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