domingo, 14 de julho de 2024

Jesus agregou os discípulos à missão que lhe foi confiada pelo Pai

 

A liturgia do 15.º domingo do Tempo Comum no Ano B mostra como se concretiza a intervenção de Deus no Mundo e na História. Chama homens e mulheres através deles quem aponta caminhos, corrige os passos mal andados, transforma o Mundo, oferece a todos salvação e de Vida. Os seus “enviados” são arautos e sinais da bondade e do amor de Deus no espaço dos homens.

Amós, o profeta da justiça social, é chamado a agir, em nome de Deus, no santuário real de Betel, no Reino do Norte. Convocado e enviado por Deus, denuncia, contra a indicação do sacerdote, o culto vazio e estéril, refém de interesses políticos e aliado da injustiça, que não liberta. Coerente e livre, sem cedências, é “voz” de Deus que ecoa no Mundo e questiona os homens.

O trecho bíblico (Am 7,12-15), tomado como primeira leitura desta Liturgia da Palavra, descreve o confronto entre o sacerdote Amasias e o profeta. É um texto fundamental para entendermos a missão do profeta e a sua liberdade, face aos interesses do Mundo e dos poderes instituídos.

Amasias é o homem da religião oficial, enfeudada aos interesses do rei e da ordem estabelecida, comprometida com o poder político. Só lhe interessa manter intocável o sistema que assegura benefícios mútuos ao trono e ao altar, em que o rei é o supremo guardião da ordem instituída, não havendo lugar a intervenção que ponha em causa a ordem social vigente.  

A tarefa da religião é, para Amasias, proteger e legitimar os interesses do rei; e, em contrapartida, o rei sustenta o santuário. Esta cumplicidade, criada por interesses mútuos, mantém a situação e os privilégios da classe dirigente. O próprio Amasias tem muito a perder, se algo não correr bem, pois é funcionário real cuja função é defender os interesses do rei. A religião de Amasias, escrava dos interesses, ajoelha ante os poderosos e está fechada aos desafios de Deus, que poderiam desarranjar o sistema, se escutados e acolhidos. Nesta ótica, a denúncia de Amós soa a rebelião contra os interesses enlaçados do poder e da religião, a doutrina subversiva que põe em causa as estruturas e abala os fundamentos da ordem estabelecida. Portanto, é de usar toda a força do sistema, para calar a sua voz incómoda. E Amós é instado a deixar o santuário e a voltar à sua terra para “ganhar aí o seu pão”.

Em resposta, Amós esclarece que é um homem livre, que não age por interesses humanos, mas por mandato de Deus. A iniciativa de ser profeta não foi sua. Foi Deus que lhe veio ao encontro, lhe interrompeu a normalidade da vida e o convocou para a missão. A profecia não é ocupação profissional nem uma forma de satisfazer interesses pessoais. Amós é profeta, porque Deus irrompeu na sua vida com irresistível força e o enviou a Israel. O profeta, não preocupado com os interesses do rei ou de Amasias, ou com a perpetuação da ordem social injusta, foi chamado para ser a voz de Deus e só lhe importa cumprir a missão que Ele lhe confiou. É isso que procurará fazer. Não pode, nem quer ficar calado. A sua missão tem autoridade por si, porque vem de Deus e Deus é infinitamente maior do que o rei. Munido dessa autoridade, Amós anuncia o castigo para o rei, para Amasias e para toda a nação infiel.

***

Evangelho (Mc 6,7-13) mostra Jesus a enviar doze discípulos em missão, que é concomitante à missão de Jesus e consiste em anunciar o Reino de Deus e em lutar contra tudo o que ameaça a Vida e a felicidade dos homens. Os enviados de Jesus, como arautos do Mundo novo, devem evitar tudo o que atrase ou condicione a missão que lhes foi confiada.

Depois de alguns meses a conviver com Jesus e a frequentar a sua “escola”, chegou a altura de os Doze colaborarem na missão. A iniciativa é de Jesus, o líder, que chama e envia os colaboradores para o trabalho. Portanto, Jesus chamou-os “e começou a enviá-los”. Se os Doze simbolizam o novo Povo de Deus, é a totalidade do Povo de Deus que é enviada em missão. A comunidade de Jesus é comunidade missionária, onde todos são enviados a proclamar a Boa notícia da salvação.

São enviados “dois a dois”. O envio “dois a dois” terá a ver com o costume judaico de viajar acompanhado, para ter ajuda e apoio, em caso de necessidade, e com as exigências da lei judaica, segundo a qual eram necessárias duas testemunhas para credibilizar qualquer anúncio. Todavia, pode ver-se, neste envio “dois a dois”, a indicação de que a evangelização tem sempre dimensão comunitária. Os discípulos nunca devem trabalhar à margem do resto da comunidade; e não devem anunciar as suas ideias ou propor a sua visão pessoal das coisas, mas proclamar a fé da Igreja. Quem anuncia o Evangelho, anuncia-o em nome da comunidade e o seu anúncio deve estar em plena sintonia com a fé reconhecida, vivida e proclamada pela comunidade.

Marcos define a missão que Jesus confiou aos Doze: “deu-lhes poder sobre os espíritos impuros”. Os espíritos impuros de que Marcos fala representam aqui tudo o que escraviza o homem e o impede de chegar à Vida em plenitude. É tarefa dos enviados de Jesus lutarem contra tudo aquilo – de caráter físico ou de caráter espiritual – que destrói a vida e a felicidade do homem. Para tal, recebem a “autoridade” de Jesus (“deu-lhes poder”). Não agem por iniciativa própria e com poder próprio, mas por mandato de Jesus e com a força irresistível que lhes vem de Jesus. Da ação libertadora dos discípulos nasce um mundo novo, de homens livres – o “Reino”.

Jesus deixa também aos seus apóstolos instruções claras sobre os apetrechos de que se devem munir para a concretização da missão. Devem partir para a missão o mais possível despojados de bens e seguranças humanas. Podem levar um cajado, que, além de ajudar o caminhante a apoiar-se, servirá de arma de defesa contra os animais selvagens. Porém, não devem levar nem pão, nem alforge, nem moedas (as moedas de cobre que o viajante levava para as pequenas necessidades), nem duas túnicas. Os discípulos devem ser totalmente livres e não estar amarrados a bens materiais, pois a preocupação com os bens materiais rouba-lhes a liberdade e a disponibilidade para a missão. Ao invés, a atitude de pobreza e de despojamento ajudará os discípulos a perceber que a eficácia da missão não depende da abundância dos bens materiais, mas da ação de Deus. Além disso, a sobriedade e o desapego são sinais de que o discípulo confia em Deus e contribuem para dar credibilidade ao seu testemunho.

Um outro género de instruções refere-se ao comportamento dos enviados ante a hospitalidade que lhes for oferecida. Quando forem acolhidos numa casa, devem aí permanecer algum tempo (para formar comunidade) e não devem saltar de um lugar para o outro, ao sabor das amizades, dos interesses próprios ou alheios ou das conveniências pessoais. Quando não forem recebidos num lugar, devem “sacudir o pó dos pés”, ao deixarem esse lugar: é gesto que os Judeus praticavam ao regressarem do território pagão e que simboliza a renúncia à impureza. Aqui, significa o repúdio pelo fechamento à libertação oferecida por Deus. A Boa notícia da salvação só pode ser proposta, nunca imposta. Porém, os enviados devem deixar esclarecer: quem recusa a proposta de Deus perde oportunidades únicas e a afasta-se da sua realização, da Vida.

Por fim, Marcos apresenta a súmula da ação os enviados de Jesus. “Pregaram a conversão”, como Jesus fazia, quando começou a anunciar a chegada do Reino de Deus; “expulsaram demónios”, libertando todos os que estavam submetidos ao poder do mal; “ungiram, com óleo, muitos doentes e curaram-nos”, levando a salvação de Deus aos que estavam privados da Vida. A missão dos discípulos aparece em paralelo, concomitância e continuidade com a de Jesus. Portanto, compete aos apóstolos de sempre continuar, na História, a obra libertadora que Jesus iniciou.

***

segunda leitura (Ef 1,3-14), a pretexto de apresentar “o mistério” da salvação, recorda que somos de Deus e fomos destinados ao seu serviço. Somos, pois, convidados a acolher o plano que de Deus para nós e para o Mundo e a concretizá-lo na verdade, na fidelidade e na radicalidade.

Éfeso, capital da Província romana da Ásia, situava-se na costa ocidental da Ásia Menor, a cerca de três quilómetros a Sudoeste da moderna Selçuk, na província de Esmirna (Turquia). Era um dos principais centros comerciais e religiosos do Mundo. O seu porto e a sua numerosa população faziam de Éfeso cidade florescente, famosa pelo templo de Artémis, uma das sete maravilhas do Mundo, e pelo imponente teatro, que levava cerca de 25 mil pessoas. Paulo passou por ali no final da segunda viagem missionária, mas foi durante a terceira que se deteve na cidade. Encontrou lá cristãos escassamente preparados e procurou instruí-los, dando-lhes adequada formação cristã. Reuniu à sua volta considerável número de pessoas convertidas ao “Caminho”.

O apóstolo viveu, ali, delicados momentos, como o tumulto que se levantou contra ele, ao ser acusado pelos comerciantes de destruir a fé em Artémis, pondo em causa o negócio de imagens da deusa. Porém, foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que, em Mileto, Paulo confiou o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso.

Todavia, a carta aos Efésios, bastante impessoal, não reflete tal relação. Alguns duvidam, por isso, que a carta venha de Paulo. Outros, porém, acreditam que o texto é um dos exemplares de uma carta circular enviada a várias igrejas da Ásia Menor, inclusive à comunidade de Éfeso. Em todo o caso, a Carta apresenta-se como escrita por Paulo, quando o apóstolo está na prisão (em Roma?). O seu portador teria sido Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60.

Alguns veem, na carta, uma síntese da teologia paulina, quando Paulo considerava terminada a sua missão No oriente. O tema mais importante da carta é o que o autor chama “o mistério”: o projeto salvador de Deus, definido e elaborado desde sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado presente no Mundo pela Igreja. O trecho em apreço aparece no início da carta. É um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades cristãs, antes de ser enxertado aqui por Paulo. Pertence ao género da “bênção”, frequente na liturgia judaica. Exprime o louvor e o reconhecimento pelo maravilhoso projeto de salvação que Deus pôs em marcha. O hino tem estrutura trinitária: refere o projeto do Pai, concretizado pelo Filho e selado pelo Espírito.

A doxologia que a perícopa nos apresenta dirige-se a Deus, pois Ele é a fonte última de todas as graças concedidas aos homens, e pode dividir-se em três partes.

Na primeira parte, refere-se, em contexto de louvor, a ação de Deus. O Pai, no seu amor infinito, cumulou-nos das suas bênçãos. Elegeu-nos, desde sempre (“antes da criação do Mundo”), para sermos “santos e irrepreensíveis”. O termo “santo” indica a situação de quem foi separado do Mundo e consagrado a Deus, para o seu serviço; e o termo “irrepreensível” era usado para falar das vítimas oferecidas em sacrifício a Deus, imaculadas e sem defeito, pelo que significa uma santidade (isto é, consagração a Deus) verdadeira e radical, que não é meramente externa, mas toca o mais profundo do nosso ser. Contudo, além de nos eleger, o Pai predestinou-nos “para sermos seus filhos adotivos”. Por Cristo, o Pai ofereceu-nos a sua Vida e convidou-nos a integrar a sua família como filhos. Esta adoção torna-nos participantes da natureza de Deus. A eleição e a adoção resultam do imenso amor de Deus por nós, amor gratuito, incondicional e radical. Respondemos a Deus, aos seus dons maravilhosos, com o louvor e com a ação de graças.

Na segunda parte, o hinógrafo reflete sobre a ação de Cristo no desígnio salvador de Deus em prol dos homens. Cumprindo o projeto do Pai, Cristo veio ao nosso encontro e apontou-nos caminhos de Vida. Ofereceu a vida até à morte, para nos mostrar a Vida de Deus. Derramou o seu sangue, para nos libertar do egoísmo, do pecado e do que leva à morte. Com a sua vida e com a sua morte, ensinou-nos a viver no amor, no amor total e radical. Porém, Cristo fez mais: com a sua vida e com a sua entrega, mostrou-nos o amor que o Pai nos tem e deu-nos a conhecer o “mistério” da sua vontade. O conceito paulino de “mistério” designa o projeto salvador de Deus, oculto durante muitos séculos, mas revelado aos homens na vida, nas palavras e nos gestos de Jesus Cristo. O objetivo final do projeto de Deus é “instaurar todas as coisas em Cristo, tudo o que há nos Céus e na terra”, de modo que, na plenitude dos tempos, Cristo seja o centro para o qual tudo converge e à volta do qual tudo se articula, em total harmonia. Quem adere a Cristo e aceita viver de acordo com a sua proposta (os que ouviram “a palavra da verdade, o Evangelho da salvação” e abraçaram a fé) entram na família de Deus e tornam-se filhos adotivos de Deus, herdeiros dos bens eternos. Para isso, fomos eleitos e predestinados desde toda a eternidade.

Na terceira parte fala-se da ação do Espírito Santo em nós. Quem adere a Jesus e O segue, recebe o Espírito Santo, que reside em nós, sela a nossa adesão a Cristo e à Vida que Ele nos oferece, anima-nos na rota do seguimento de Cristo e garante-nos que participaremos da Vida de Deus.

***

O Evangelho é anunciado, como comunidade. E, para o fazer, é importante ser sóbrio no uso das coisas e nos pensamentos, abandonando os preconceitos e a rigidez, disse o Papa.

O Santo Padre rezou, com os fiéis na Praça São Pedro, a oração do Angelus, depois de comentar o Evangelho desta dominga. Na sua alocução, deteve-se no facto de os discípulos serem enviados juntos e levarem apenas o necessário. “O Evangelho não é proclamado sozinho, mas em conjunto, como comunidade. [E], para fazer isso, é importante saber preservar a sobriedade”, explicou, sustentando que importa saber ser sóbrio no uso das coisas, compartilhando recursos, habilidades e dons, prescindindo do supérfluo, que “escraviza”. Só assim se é livre.

A sobriedade, prosseguiu o Papa, também é necessária nos pensamentos e nos sentimentos, abandonando preconceitos e a rigidez que, como bagagem inútil, pesam e dificultam o caminho, para favorecer, ao invés, o debate e a escuta e, assim, tornar o testemunho mais eficaz. É o que acontece nas famílias ou comunidades: quando nos contentamos com o necessário, mesmo com pouco, com a ajuda de Deus, é possível seguir em frente e criar entendimento, compartilhando o que se tem, renunciando todos a algo e apoiando-se mutuamente. Isso já é anúncio missionário, antes e mais do que palavras, por encarnar a beleza da mensagem de Jesus no concreto da vida.

“Uma família ou uma comunidade que vive assim, de facto, cria em torno de si um ambiente rico de amor, no qual é mais fácil abrir-se à fé e à novidade do Evangelho, e do qual se sai melhor e mais sereno”, diz o Pontífice, vincando: “Se, ao invés, cada um segue o seu próprio caminho, se o que conta são só as coisas – que nunca são suficientes –, se não há escuta, se prevalecem o individualismo e a inveja, que é mortal, um veneno, o ar torna-se pesado, a vida difícil, e os encontros se tornam mais ocasião de inquietação, tristeza e desânimo do que de alegria.”

“Comunhão e sobriedade são valores importantes para a nossa vida cristã, valores indispensáveis a uma Igreja missionária, em todos os níveis”, explicitou Francisco, que instou cada um dos fiéis a questionar-se: “Sinto prazer em anunciar o Evangelho, a levar, onde vivo, a alegria e a luz que provêm do encontro com o Senhor? Estou comprometido em caminhar junto com os outros, compartilhando com ideias e habilidades, com mente aberta e coração generoso? E sei como cultivar um estilo de vida sóbrio e atento às necessidades dos irmãos?”

E, antes de conceder a bênção apostólica, concluiu: “Que Maria, Rainha dos Apóstolos, nos ajude a ser verdadeiros discípulos missionários, em comunhão e sobriedade de vida.”

2024.07.14 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário