sábado, 6 de julho de 2024

Ministério Público não derruba governos (?) e António Costa não é suspeito

 

O procurador-geral adjunto Rosário Teixeira concedeu uma entrevista, em exclusivo à SIC, parecendo substituir-se, para já, às explicações que a procuradora-geral da República (PGR) é solicitada a dar ao país e, em especial, à Assembleia da República (AR), sobre a atuação do Ministério Público (MP), o que fará depois de ter pronto o seu relatório anual.  
A entrevista, que surpreendeu a opinião pública e, em particular, alguns dos 50 subscritores do Manifesto “Por uma Reforma da Justiça”, merece-me alguns comentários.
Desde logo, o entrevistado considerou que as palavras da ministra da Justiça sobre a necessidade de o novo PGR arrumar a casa foram retiradas do contexto, o que não é exato, pois eu li, na íntegra, a sua entrevista ao Observador. E pior do que isso, foi ter dito que “significa pôr de acordo com aquilo que é o perfil que o poder político entende que deve ter o procurador-geral”.
Não sei se o governo pensa isso, mas a governante não o explicitou, nem o deu a entender.  
Sobre António Costa, o magistrado do MP sustentou que não é suspeito na Operação Influencer. Já o sabíamos, pois um juiz de instrução criminal (JIC) e o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) já o tinham declarado, mas só agora alguém do MP o diz. E é de questionar a razão por que o processo não foi arquivado.
Na linha de anteriores declarações de Francisca van Dunem, a entender que o ex-primeiro-ministro (ex-PM), se é objeto de inquérito, é arguido, porque o nosso ordenamento jurídico não contempla a figura do suspeito, Rosário Teixeira sustenta: “Se aquele cidadão foi ouvido e não como arguido, mas como testemunha ou declarante, essa pessoa não é suspeita naquele processo, porque, se for suspeita naquele processo, não pode deixar de ser constituída arguida.” E disse ser o que estabelece o Código do Processo Penal (CPP), que não contempla a condição de suspeito.
Algo não bate. O artigo 1.º do CPP faz algumas definições e, na alínea e), define como “suspeito” – “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar”. E, mais adiante define as condições em que o suspeito deve ser ouvido.
Questionado se os restantes 26 estados-membros da União Europeia (UE) “tiveram informação privilegiada” sobre o estatuto do ex-PM aquando da sua eleição como presidente do Conselho Europeu, Rosário Teixeira negou e atirou: Se calhar tiveram uma correta leitura do que é a realidade jurídica portuguesa.”
É, contudo, mais provável que tenham anotado a inconsistência do trabalho do MP no caso.
Defende o magistrado que o MP não tem interesse em derrubar governos, “nem faz parte das suas funções gerar essas consequências políticas”, garantindo que “isso não aconteceu” em nenhum dos processos que ditaram a queda do governo da República e a do executivo regional da Madeira. “Pura e simplesmente, houve diligências de recolha de prova, houve situações de detenções colaterais, por vezes, com o próprio poder político”, que “geraram essas consequências que não foram queridas, pretendidas, nem pedidas” pelo próprio MP, considerou, sustentando que a consciência de que as investigações podem ter impacto político não deve restringir o MP de agir.
Todavia, não explicou a forma espetacular com que decorrem, em direto, buscas domiciliárias e não domiciliárias e se passa para a opinião pública as suspeitas ainda não consolidadas da prática de crimes. E, quanto à violação do segredo de justiça, parece ter dado a entender que o fenómeno está só do lado dos jornalistas.
Instado a comentar o caso de governante escutado durante quatro anos, o magistrado referiu que a escuta “deve ser proporcional” e que “depende da situação em concreto”. E aduziu o caso de “negócios que demoram tanto tempo” a realizar-se que “é necessário um período de escuta alargado, que pode ser interpolado”. “São realidades que são complexas, são excecionalíssimas.”
A propósito dos megaprocessos, relevou que as megarrealidades é que os originam e que não se pode contemplar a árvore esquecendo a floresta. Porém, esqueceu que é possível extrair certidões para julgamentos que não contemplem a totalidade dos crimes do megaprocesso, que tem o demérito de se arrastar no tempo, podendo nunca chegar a conclusões. 
Parece ter desvalorizado a falta de meios, embora a reconheça, anotando que o MP, sendo dispensado de determinados misteres, pode otimizar os meios de que dispõe.    
Negou que o MP seja “uma magistratura indisciplinada” e “com rédea solta” ou que tenha, “como dizem, quase uma consciência política”. Frisou que a ideia de o MP ter algum comprometimento político “é um absurdo total” e que “não há uma congregação de vontades políticas”. Até apontou a contradição aos que dizem que o MP anda à toa, mas se conluia para derrubar figuras públicas.
Não parece haver contradição entre a falta de atuação da hierarquia do MP e a eventual existência de grupos com intenção político-partidária. E ninguém pode provar que o MP tem essas intenções, mas as coincidências falam por si. O procurador sabe que, embora as consequências da ação do MP não o inibam, devem ser, prudentemente, acauteladas ocorrências que levem ao derrube de governos ou a essa perceção, em caso de as suspeitas não serem consolidadas.    
Confrontado com o Manifesto pela Reforma na Justiça, apresentado por 50 subscritores de diversos quadrantes da sociedade e a que, entretanto, aderiram outras 50 personalidades, Rosário Teixeira admitiu que aponta “algumas ideias que são preocupações de todos”, como a morosidade ou a violação do segredo de justiça, mas frisou que não indica soluções para essas situações, deixando, ainda outra, crítica: “O desejável é que essa reforma não seja feita contra alguém e passa um pouco por esses manifestos ser contra o Ministério Público. Fazer uma reforma não pode ser contra alguém, tem de ser feita com todos.”
O magistrado vislumbra a “tentativa de impor modelos diferentes” e sustenta que tais mudanças no sentido do Manifesto seriam revolução e não reforma. Por exemplo, um MP designado administrativamente ou a voltar ao tempo de um JIC a dirigir a investigação – “isso é andar para trás, não seria de todo desejável”. No seu entender, “o modelo atual é o ideal”.
Rejeitando um eventual futuro como PGR, disse: “Sou um homem do caso concreto, não me passou sequer pela cabeça essa possibilidade.” A explicação é insuficiente, pois o homem do caso concreto ou duma especialidade não pode deixar de ter uma visão holística da realidade; e um supervisor com poder hierárquico não pode viver nas nuvens, ignorando a concretude dos casos.      
Rosário Teixeira admitiu, sobre o perfil para a sucessão a Lucília Gago, que gostava que fosse alguém de dentro do MP. A razão assiste-lhe em parte. Quem é do MP conhece os cantos da casa e o modus faciendi, mas há reformas que são mais viáveis com gente que vem de fora.
Provavelmente, a Justiça precisa de reformas cirúrgicas e de uma grande revolução nas mentalidades dos seus operadores, desde logo cumprindo a lei, sem conduzir a um seu entendimento desviante. 
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Quem não teve papas na língua foi Rui Rio, um dos subscritores do Manifesto, instado pela SIC Notícias a comentar a entrevista. Não se deixou convencer da inocência do MP sobre intenções político-partidárias e sobre a inocuidade de algumas coincidências. Criticou a espetacularidade de algumas ações da Justiça, que põem em causa o nome de algumas personalidades e fere o princípio da presunção de inocência. E, embora ninguém esteja acima da lei, diz que as figuras cimeiras do Estado não são cidadãos quaisquer, pelo que só devem ser expostas publicamente, se há suspeita forte e a subsequente constituição de arguido, tendo ocorrido o contrário, tantas vezes.
Acentuou que o MP tem poder para investigar qualquer matéria e qualquer personalidade. Todavia, questionou se tem poder para não investigar certos casos, por amizade pessoal, partidária ou clubística. Subliminarmente, admitiu que há casos que nunca foram investigados. 
Rejeitou que o Manifesto vise o controlo político-partidário sobre o MP. O que se exige é o escrutínio, não durante um processo, mas, a posteriori, por entidade imparcial, que poderá ser o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), constituído, maioritariamente, por elementos não oriundos do MP (por exemplo, designados pela AR e pelo Presidente da República), ou por outra entidade a criar.
Referiu que, sem descer a casos concretos, o PGR deve prestar contas na AR, periodicamente, da atividade do MP, exercer o seu poder hierárquico, sempre que necessário, e dar explicações públicas, quando os casos os justificarem.
Sustenta que os governos não fazem a reforma da Justiça, porque isso não dá votos, pelo que essa reforma só se fará, quando a opinião pública estiver consciencializada da sua necessidade.                      
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A este respeito, é de ter em conta a reflexão do constitucionalista Vital Moreira, vertida no blogue “Causa nossa”, a 5 de julho.
Ao pôr no debate público e político a reforma da justiça, a começar pelo MP, o referido Manifesto terá pesado na deliberação da AR de chamar a PGR a prestar contas da sua atividade perante os deputados. É “um enorme progresso no correto entendimento do lugar institucional do MP” no Estado de direito democrático, avesso a “poderes públicos irresponsáveis e imunes ao escrutínio parlamentar”. Só importa que os deputados estabeleçam como regra a apresentação regular do/a PGR na AR, para apresentar o seu relatório anual e para responder às perguntas dos parlamentares, sem prejuízo da eventual chamada sempre que as circunstâncias o exijam. “Assim, termina, finalmente, uma clara situação de inércia inconstitucional”, observa Vital Moreira.
Nestes termos, no dizer do renomado constitucionalista, a reforma do MP suporta-se em dois pilares. Em primeiro lugar, sobressai observância do “mandato constitucional da hierarquia interna, respeitando a cadeia de comando, que tem por vértice o/a PGR, dotado/a da autoridade democrática que deriva da sua designação por proposta do Governo e nomeação pelo PR [Presidente da República], e acabando com a pretensa, mas ilegítima, ‘independência funcional’ de cada magistrado”. Só assim é que o PGR responderá externamente pela ação do MP. Logo a seguir, vem a necessidade de “assegurar a autonomia da instituição, em relação à manifesta dependência do sindicato do MP”, que, através do seu domínio do CSMP e da abdicação dos titulares da PGR, “se erigiu em ‘eminência parda’ e se arroga em porta-voz externo da instituição, o que é incompatível com a  autonomia constitucional desta e com a autoridade do/a PGR”.
Ora, como vem sustentando Vital Moreira, “o pior inimigo da autonomia do MP é a autogestão corporativa instalada”.
E, para a concretização dos referidos dois pilares em que assenta a desejada reforma do MP, o constitucionalista defende a necessidade da “revisão do seu estatuto legislativo”, sendo que “o governo e a AR não podem falhar esta oportunidade”.  
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Em conclusão, o MP deve tomar a iniciativa de investigar, sempre que haja denúncia sustentada, mas deve ser prudente, não denunciando os suspeitos, sem ter indícios fortemente consolidados. Não deve expor, sem necessidade, no pelourinho público, os responsáveis máximos pela governação. Não pode valer-se da espetacularidade, da tentação, amical, clubística ou partidária, não pode deixar de investigar nenhum caso relevante, por inércia ou por interesses não judiciários. Não lhe é lícito abusar dos meios excecionais de recolha de prova, transformar em normais procedimentos excecionais. Convém que seja obrigatório o escrutínio post actum e a prestação regular de contas, bem como o exercício do poder hierárquico por parte da PGR.
Uma revisão do Estatuto do Ministério Público (EMP) pode ser necessária, mas não suficiente, se o MP insistir no incumprimento das leis ou na sua interpretação acomodatícia ou até desviante.
Urge, sobretudo, a reforma das mentalidades e dos procedimentos.

2024.07.06 – Louro de Carvalho

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