O procurador-geral
adjunto Rosário Teixeira concedeu uma entrevista, em exclusivo à SIC, parecendo substituir-se, para já,
às explicações que a procuradora-geral da República (PGR) é solicitada a dar ao
país e, em especial, à Assembleia da República (AR), sobre a atuação do
Ministério Público (MP), o que fará depois de ter pronto o seu relatório
anual.
A
entrevista, que surpreendeu a opinião pública e, em particular, alguns dos 50 subscritores
do Manifesto “Por uma Reforma da Justiça”, merece-me alguns comentários.
Desde logo,
o entrevistado considerou que as palavras da ministra da Justiça sobre a
necessidade de o novo PGR arrumar a casa foram retiradas do contexto, o que não
é exato, pois eu li, na íntegra, a sua entrevista ao Observador. E pior do que isso, foi ter dito que “significa pôr de
acordo com aquilo que é o perfil que o poder político entende que deve ter o
procurador-geral”.
Não sei se o
governo pensa isso, mas a governante não o explicitou, nem o deu a entender.
Sobre
António Costa, o magistrado do MP sustentou que não é suspeito na Operação
Influencer. Já o sabíamos, pois um juiz de instrução criminal (JIC) e o
Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) já o tinham declarado, mas só agora alguém
do MP o diz. E é de questionar a razão por que o processo não foi arquivado.
Na linha de
anteriores declarações de Francisca van Dunem, a entender que o
ex-primeiro-ministro (ex-PM), se é objeto de inquérito, é arguido, porque o
nosso ordenamento jurídico não contempla a figura do suspeito, Rosário Teixeira
sustenta: “Se aquele cidadão foi ouvido e não como arguido, mas como testemunha
ou declarante, essa pessoa não é suspeita naquele processo, porque, se for
suspeita naquele processo, não pode deixar de ser constituída arguida.” E disse
ser o que estabelece o Código do Processo Penal (CPP), que não contempla a
condição de suspeito.
Algo não
bate. O artigo 1.º do CPP faz algumas definições e, na alínea e), define como “suspeito” – “toda a pessoa
relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer
um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar”. E, mais adiante define as condições em que o suspeito
deve ser ouvido.
Questionado
se os restantes 26 estados-membros da União Europeia (UE) “tiveram informação
privilegiada” sobre o estatuto do ex-PM aquando da sua eleição como presidente
do Conselho Europeu, Rosário Teixeira negou e atirou: Se calhar tiveram uma
correta leitura do que é a realidade jurídica portuguesa.”
É, contudo,
mais provável que tenham anotado a inconsistência do trabalho do MP no caso.
Defende o
magistrado que o MP não tem interesse em derrubar governos, “nem faz parte das
suas funções gerar essas consequências políticas”, garantindo que “isso não
aconteceu” em nenhum dos processos que ditaram a queda do governo da República e
a do executivo regional da Madeira. “Pura e simplesmente, houve diligências de
recolha de prova, houve situações de detenções colaterais, por vezes, com o
próprio poder político”, que “geraram essas consequências que não foram
queridas, pretendidas, nem pedidas” pelo próprio MP, considerou, sustentando
que a consciência de que as investigações podem ter impacto político não deve
restringir o MP de agir.
Todavia, não
explicou a forma espetacular com que decorrem, em direto, buscas domiciliárias
e não domiciliárias e se passa para a opinião pública as suspeitas ainda não
consolidadas da prática de crimes. E, quanto à violação do segredo de justiça,
parece ter dado a entender que o fenómeno está só do lado dos jornalistas.
Instado a
comentar o caso de governante escutado durante quatro anos, o magistrado
referiu que a escuta “deve ser proporcional” e que “depende da situação em
concreto”. E aduziu o caso de “negócios que demoram tanto tempo” a realizar-se
que “é necessário um período de escuta alargado, que pode ser interpolado”. “São
realidades que são complexas, são excecionalíssimas.”
A propósito
dos megaprocessos, relevou que as megarrealidades é que os originam e que não
se pode contemplar a árvore esquecendo a floresta. Porém, esqueceu que é
possível extrair certidões para julgamentos que não contemplem a totalidade dos
crimes do megaprocesso, que tem o demérito de se arrastar no tempo, podendo
nunca chegar a conclusões.
Parece ter
desvalorizado a falta de meios, embora a reconheça, anotando que o MP, sendo
dispensado de determinados misteres, pode otimizar os meios de que dispõe.
Negou que o
MP seja “uma magistratura indisciplinada” e “com rédea solta” ou que tenha, “como
dizem, quase uma consciência política”. Frisou que a ideia de o MP ter algum
comprometimento político “é um absurdo total” e que “não há uma congregação de
vontades políticas”. Até apontou a contradição aos que dizem que o MP anda à
toa, mas se conluia para derrubar figuras públicas.
Não parece
haver contradição entre a falta de atuação da hierarquia do MP e a eventual
existência de grupos com intenção político-partidária. E ninguém pode provar
que o MP tem essas intenções, mas as coincidências falam por si. O procurador
sabe que, embora as consequências da ação do MP não o inibam, devem ser,
prudentemente, acauteladas ocorrências que levem ao derrube de governos ou a
essa perceção, em caso de as suspeitas não serem consolidadas.
Confrontado
com o Manifesto pela Reforma na Justiça, apresentado por 50 subscritores de
diversos quadrantes da sociedade e a que, entretanto, aderiram outras 50
personalidades, Rosário Teixeira admitiu que aponta “algumas ideias que são
preocupações de todos”, como a morosidade ou a violação do segredo de justiça,
mas frisou que não indica soluções para essas situações, deixando, ainda outra,
crítica: “O desejável é que essa reforma não seja feita contra alguém e passa
um pouco por esses manifestos ser contra o Ministério Público. Fazer uma
reforma não pode ser contra alguém, tem de ser feita com todos.”
O magistrado
vislumbra a “tentativa de impor modelos diferentes” e sustenta que tais mudanças
no sentido do Manifesto seriam revolução e não reforma. Por exemplo, um MP
designado administrativamente ou a voltar ao tempo de um JIC a dirigir a
investigação – “isso é andar para trás, não seria de todo desejável”. No seu
entender, “o modelo atual é o ideal”.
Rejeitando
um eventual futuro como PGR, disse: “Sou um homem do caso concreto, não me
passou sequer pela cabeça essa possibilidade.” A explicação é insuficiente,
pois o homem do caso concreto ou duma especialidade não pode deixar de ter uma
visão holística da realidade; e um supervisor com poder hierárquico não pode
viver nas nuvens, ignorando a concretude dos casos.
Rosário
Teixeira admitiu, sobre o perfil para a sucessão a Lucília Gago, que gostava
que fosse alguém de dentro do MP. A razão assiste-lhe em parte. Quem é do MP
conhece os cantos da casa e o modus
faciendi, mas há reformas que são mais viáveis com gente que vem de fora.
Provavelmente,
a Justiça precisa de reformas cirúrgicas e de uma grande revolução nas
mentalidades dos seus operadores, desde logo cumprindo a lei, sem conduzir a um
seu entendimento desviante.
***
Quem não
teve papas na língua foi Rui Rio, um dos subscritores do Manifesto, instado
pela SIC Notícias a comentar a
entrevista. Não se deixou convencer da inocência do MP sobre intenções
político-partidárias e sobre a inocuidade de algumas coincidências. Criticou a
espetacularidade de algumas ações da Justiça, que põem em causa o nome de
algumas personalidades e fere o princípio da presunção de inocência. E, embora
ninguém esteja acima da lei, diz que as figuras cimeiras do Estado não são
cidadãos quaisquer, pelo que só devem ser expostas publicamente, se há suspeita
forte e a subsequente constituição de arguido, tendo ocorrido o contrário,
tantas vezes.
Acentuou
que o MP tem poder para investigar qualquer matéria e qualquer personalidade.
Todavia, questionou se tem poder para não investigar certos casos, por amizade
pessoal, partidária ou clubística. Subliminarmente, admitiu que há casos que
nunca foram investigados.
Rejeitou
que o Manifesto vise o controlo político-partidário sobre o MP. O que se exige
é o escrutínio, não durante um processo, mas, a posteriori, por entidade imparcial, que poderá ser o Conselho
Superior do Ministério Público (CSMP), constituído, maioritariamente, por
elementos não oriundos do MP (por exemplo, designados pela AR e pelo Presidente
da República), ou por outra entidade a criar.
Referiu
que, sem descer a casos concretos, o PGR deve prestar contas na AR,
periodicamente, da atividade do MP, exercer o seu poder hierárquico, sempre que
necessário, e dar explicações públicas, quando os casos os justificarem.
Sustenta
que os governos não fazem a reforma da Justiça, porque isso não dá votos, pelo
que essa reforma só se fará, quando a opinião pública estiver consciencializada
da sua necessidade.
***
A este
respeito, é de ter em conta a reflexão do constitucionalista Vital Moreira, vertida
no blogue “Causa nossa”, a 5 de julho.
Ao pôr no
debate público e político a reforma da justiça, a começar pelo MP, o referido
Manifesto terá pesado na deliberação da AR de chamar a PGR a prestar contas da
sua atividade perante os deputados. É “um enorme progresso no correto
entendimento do lugar institucional do MP” no Estado de direito democrático,
avesso a “poderes públicos irresponsáveis e imunes ao escrutínio parlamentar”.
Só importa que os deputados estabeleçam como regra a apresentação regular do/a
PGR na AR, para apresentar o seu relatório anual e para responder às perguntas
dos parlamentares, sem prejuízo da eventual chamada sempre que as
circunstâncias o exijam. “Assim, termina, finalmente, uma clara situação de
inércia inconstitucional”, observa Vital Moreira.
Nestes
termos, no dizer do renomado constitucionalista, a reforma do MP suporta-se em
dois pilares. Em primeiro lugar, sobressai observância do “mandato
constitucional da hierarquia interna, respeitando a cadeia de comando, que tem
por vértice o/a PGR, dotado/a da autoridade democrática que deriva da sua
designação por proposta do Governo e nomeação pelo PR [Presidente da República],
e acabando com a pretensa, mas ilegítima, ‘independência funcional’ de cada
magistrado”. Só assim é que o PGR responderá externamente pela ação do MP. Logo
a seguir, vem a necessidade de “assegurar a autonomia da instituição, em
relação à manifesta dependência do sindicato do MP”, que, através do seu
domínio do CSMP e da abdicação dos titulares da PGR, “se erigiu em ‘eminência
parda’ e se arroga em porta-voz externo da instituição, o que é incompatível
com a autonomia constitucional desta e com a autoridade do/a PGR”.
Ora, como vem
sustentando Vital Moreira, “o pior inimigo da autonomia do MP é a autogestão
corporativa instalada”.
E, para a
concretização dos referidos dois pilares em que assenta a desejada reforma do
MP, o constitucionalista defende a necessidade da “revisão do seu estatuto
legislativo”, sendo que “o governo e a AR não podem falhar esta
oportunidade”.
***
Em
conclusão, o MP deve tomar a iniciativa de investigar, sempre que haja denúncia
sustentada, mas deve ser prudente, não denunciando os suspeitos, sem ter
indícios fortemente consolidados. Não deve expor, sem necessidade, no
pelourinho público, os responsáveis máximos pela governação. Não pode valer-se
da espetacularidade, da tentação, amical, clubística ou partidária, não pode
deixar de investigar nenhum caso relevante, por inércia ou por interesses não
judiciários. Não lhe é lícito abusar dos meios excecionais de recolha de prova,
transformar em normais procedimentos excecionais. Convém que seja obrigatório o
escrutínio post actum e a prestação
regular de contas, bem como o exercício do poder hierárquico por parte da PGR.
Uma
revisão do Estatuto do Ministério Público (EMP) pode ser necessária, mas não
suficiente, se o MP insistir no incumprimento das leis ou na sua interpretação
acomodatícia ou até desviante.
Urge,
sobretudo, a reforma das mentalidades e dos procedimentos.
2024.07.06 –
Louro de Carvalho
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