domingo, 7 de julho de 2024

Precisamos da fé que dispersa os cálculos do egoísmo humano

 

O Papa Francisco presidiu à missa, a 7 de julho, na Piazza Unità d’Italia, no âmbito da visita pastoral a Trieste, para a conclusão da 50.ª Semana Social dos Católicos na Itália. Na homilia, disse que “precisamos do escândalo da fé”, da fé arraigada no Deus que Se fez homem e, portanto, de uma fé humana, de carne, que entra na História, “que acaricia a vida das pessoas, que cura os corações partidos, que se torna fermento de esperança e germe de um Mundo novo”.

Na verdade, a liturgia do 14.º domingo do Tempo Comum no Ano B desvenda-nos a “estratégia” de Deus para se aproximar de nós e para continuar a sua obra criadora na História: chama pessoas – frágeis, simples, normais – e envia-as a testemunhar a sua oferta de salvação. Na fragilidade dos seus enviados revela-se a irresistível força de Deus.

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primeira leitura (Ez 2,2-5) apresenta-nos um extrato do relato da vocação de Ezequiel (nome que significa “Deus que dá força”). A vocação profética é iniciativa de Javé, que chama um “filho de homem” (isto é, um homem normal, com limites e fragilidades) e lhe dá força para ser, no meio do Povo sofredor, arauto da salvação.

Neste chamamento, aparecem dos elementos fundamentais constantes dos relatos de vocação. Desde logo, a indicação de que a vocação do profeta é desígnio de Deus. Não se nomeia Javé, mas O que chama Ezequiel não pode ser outro senão Deus. O trecho em apreço é antecedido de uma solene manifestação de Deus, após o que o profeta ouve uma voz que o chama e que o convida a pôr-se de pé e a escutar o que lhe vai ser dito. Então, Ezequiel recebe o Espírito de Deus, que toma conta dele e o capacita para escutar a palavra que lhe vai ser dirigida.

Segundo a catequese judaica, era Deus que comunicava uma força divina – o seu espírito – àqueles que escolhia para enviar a salvar o seu Povo, como os juízes, os reis e os profetas.

No caso de Ezequiel, esse espírito surge como uma manifestação violenta de Deus, que se apossa do profeta e o destina ao seu serviço. A vocação é sempre iniciativa de Deus e não escolha do homem. Foi Deus que chamou Ezequiel e que o designou para a missão.

Depois, o chamamento não é dirigido a alguém dotado de capacidades extraordinárias, mas a homem normal, frágil, como todos os outros. Ezequiel é “filho de homem” (“ben-adam”), expressão hebraica que significa “homem ligado à terra”, “homem comum”, ser humano de carne osso, igual aos outros. Deus age no Mundo através das limitações e das fragilidades de pessoas normais. A indignidade e a limitação, típicas de um “filho do homem”, não são impeditivas para a missão: a eleição divina dá ao profeta autoridade, apesar dos seus limites bem humanos.

Por fim, vem a definição da missão. O profeta é enviado aos concidadãos exilados: um Povo rebelde, que, reiteradamente, se afasta dos caminhos de Deus e que, apesar disso, pede explicações a Deus, como se Deus fosse o culpado dos dramas do Exílio. A missão do profeta no meio do Povo tem a ver com a Palavra: deve proclamar, em linguagem dos homens, a mensagem que Deus tem para o seu Povo. Por isso, o profeta deve escutar Deus, para ser o seu intérprete fiel, diante do Povo. De resto, Ezequiel não deve estar preocupado se a mensagem é escutada ou não; o que interessa é que ele seja, no meio do Povo, a voz que transmite, fielmente, as indicações de Deus. E o profeta realizou integralmente a missão para que foi chamado. Foi, entre os exilados, uma voz humana, através da qual Deus lhes transmitiu ânimo e lhes apontou um futuro novo. Por isso, foi chamado “o profeta da esperança”.

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Na segunda leitura, (2Cor 12,7-10) Paulo assegura aos cristãos de Corinto (pelo seu exemplo pessoal) que Deus age e manifesta o seu poder no Mundo por instrumentos débeis, finitos e limitados. Na ação do apóstolo – vivendo a condição de finitude, vulnerabilidade, debilidade – manifesta-se ao Mundo a força e a Vida de Deus.

Assumindo a vulnerabilidade, Paulo fala aos Coríntios de uma limitação que transporta no corpo, um “anjo de Satanás” que lhe recorda continuamente a sua fragilidade. Não sabemos do que se trata em concreto. Provavelmente, será uma doença física crónica. Em Gl 4,13-14, o apóstolo fala de grave enfermidade física, que tornou o seu corpo, para os Gálatas, uma provação, mas nada garante que tal enfermidade esteja relacionada com o “anjo de Satanás” de que fala aqui. O facto de chamar a tal limitação “anjo de Satanás” terá a ver com o facto de a mentalidade judaica ligar a enfermidade aos espíritos maus. Por outro lado, esse “espinho na carne” pode referir-se aos obstáculos que Satanás põe a Paulo, no atinente ao anúncio do Evangelho.

De qualquer modo, o problema de Paulo mostra como a finitude não são determina a missão; o que é determinante é a graça de Deus. O apóstolo, cônscio das limitações que o “espinho na carne” lhe podia trazer pessoalmente e, por arrastamento, à sua forma de desempenhar a missão que lhe foi confiada, pediu insistentemente a Deus que o livrasse do problema, mas Deus não o fez. Deu-lhe, antes, força para continuar a missão. Deus não suprime os obstáculos que as circunstâncias nos põem no caminho, mas dá a força para os vencermos. O que sucedeu com Paulo prova uma verdade incontornável: Deus atua e manifesta o seu poder no Mundo através de instrumentos débeis, finitos e limitados. No apóstolo das Gentes, manifesta-se ao Mundo a força de Deus e do seu Cristo. Apesar dos seus limites humanos, Paulo tudo pode, porque tem em si a força de Deus. Por isso, alegra-se nas fraquezas, que tornam mais evidente o poder de Deus.

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Evangelho (Mc 6,1-6) mostra-nos, pelos Nazarenos, o que sucede, se não entendemos a estratégia de Deus para intervir no Mundo e na História:  arriscamo-nos a passar ao lado de Deus sem O ver, a ignorar os seus desafios, a tratar com indiferença a sua oferta de salvação.

O ensinamento de Jesus na sinagoga de Nazaré deixa perplexos os que participavam no ofício sinagogal. Os conterrâneos de Jesus expressaram tal perplexidade com perguntas que têm alguma pertinência: “De onde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos?”

De facto, a sabedoria de Jesus, que tanto impressionou o auditório, é uma sabedoria nova e extraordinária, diferente da sabedoria ensinada nas escolas rabínicas (bem conhecida pela pregação dos escribas e doutores da Lei). Além disso, não constava que Jesus tivesse frequentado as lições de algum mestre conceituado. Portanto, a origem desta novidade era suspeita. Além disso, havia os gestos prodigiosos (dynámeis) que Jesus fazia por toda a parte e cujos ecos chegaram a Nazaré, não sendo suposto que Jesus tenha realizado esses gestos poderosos com as suas próprias forças.

Os Nazarenos conhecem bem Jesus: é “o carpinteiro” (o termo grego “téktôn” designa o artesão que trabalha a madeira ou a pedra), em quem nunca se notaram poderes especiais ou qualidades excecionais. Sabem que é o “filho de Maria” e que os seus irmãos e irmãs são pessoas normais, que em nada se distinguem dos outros habitantes de Nazaré. Portanto, parece claro que o papel de Jesus e as suas ações são humanamente inexplicáveis.

A questão seguinte (não explicitamente formulada) é esta: “As capacidades extraordinárias de Jesus (e que não vêm dos conhecimentos adquiridos no contacto com famosos mestres, nem do ambiente familiar), vêm de Deus ou do diabo?” Em pano de fundo do pensamento dos habitantes de Nazaré estará a acusação feita a Jesus, algum tempo antes, pelos doutores da Lei, que, tendo descido de Jerusalém, afirmavam: “Ele tem Belzebu! É pelo chefe dos demónios que ele expulsa os demónios.”

O certo é que os Nazarenos, apesar de encantados com as suas palavras, não se abriram à fé, ofuscados pela pouca importância social da família a que Jesus pertencia. Não estavam abertos ao desígnio de Deus, que escolhe para as grandes missões o que é humanamente frágil.  

Desde o primeiro instante, deixam transparecer uma atitude negativa e o tom depreciativo em relação a Jesus: não O tratam pelo próprio nome, mas usam sempre um pronome para falar d’Ele (Jesus é “este” ou “ele”); chamam-Lhe depreciativamente “o filho de Maria”, embora fosse uso o filho ser designado pelo nome do pai. Alguns veem nisto a indicação de que os Nazarenos tinham Jesus, pela sua conduta ou pelo seu estilo de vida, como indigno de usar o nome do pai. Tudo isto aponta para um quadro de incredulidade e de má vontade contra Jesus.

Marcos vê os Nazarenos escandalizados com Jesus (o verbo grego “scandalídzô”, significa muito mais do que o “ficar perplexo” das nossas traduções: significa “ofender”, “magoar”, “ferir suscetibilidades”). Há, na localidade, indignação por Jesus, apesar de desautorizado pelos mestres reconhecidos do judaísmo, desenvolver a sua atividade à margem da instituição judaica. Põe em causa a religião tradicional, ao ensinar coisas diferentes e de forma diferente dos mestres reconhecidos. Está fora da instituição judaica, pelo que o seu ensinamento não pode vir de Deus. Os conterrâneos de Jesus não reconhecem a presença de Deus no que Ele diz e faz.

Jesus responde, citando um conhecido provérbio, mas que Ele modifica, em parte. O original soaria mais ou menos assim: “nenhum profeta é respeitado no seu lugar de origem, nenhum médico faz curas entre os seus conhecidos”. Nessa resposta, Jesus assume-Se como profeta, isto é, como enviado de Deus, que age em nome de Deus e que tem uma mensagem de Deus para oferecer aos homens. Os ensinamentos de Jesus não vêm dos mestres judaicos, mas de Deus; a Vida que Ele oferece é a Vida plena que Deus oferece aos homens. A recusa generalizada da proposta de Jesus coloca-o na linha dos grandes profetas de Israel. O Povo teve sempre dificuldade em reconhecer o Deus que vinha ao seu encontro na palavra e nos gestos proféticos. O facto de as propostas de Jesus serem rejeitadas pelos líderes, pelo povo da sua terra, pelos seus “irmãos e irmãs” e até pelos da sua casa não invalida a sua verdade e a sua procedência divina. Apenas mostra falta de fé dos conterrâneos.

Jesus “não podia ali fazer qualquer milagre”. Com efeito, Deus oferece aos homens, através de Jesus, perspetivas de Vida eterna. Porém, os homens são livres; se se mantêm fechados nos seus esquemas e preconceitos e rejeitam a Vida que Deus lhes oferece, Jesus não pode fazer nada. Apesar de tudo, Jesus “curou alguns doentes impondo-lhes as mãos”. Terão sido os que manifestavam certa abertura a Jesus, mas que não tinham a ousadia de cortar com os mecanismos religiosos do judaísmo para descobrir a novidade radical do Reino que Jesus anuncia.

Marcos nota a surpresa de Jesus pela falta de fé dos concidadãos. Esperava-se que, confrontados com a proposta nova de liberdade e de vida que Jesus apresenta, os interlocutores renunciassem à escravidão, para abraçarem com entusiasmo a nova realidade. No entanto, estão de tal forma acomodados, que preferem a vida da escravidão à novidade libertadora.

Contudo, este facto dececionante não impede Jesus de continuar a propor a Boa Nova do Reino a todos os homens. Deus oferece, sem interrupção, Vida; ao homem resta acolher ou não essa oferta.

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“Para despertar a esperança dos corações aflitos e apoiar os esforços do caminho, Deus sempre suscitou profetas entre o seu povo”, disse o Pontífice no início da sua homilia. Os profetas encontraram um povo rebelde e foram rejeitados e Jesus tem a experiência dos profetas. “Retorna a Nazaré, sua pátria, entre as pessoas com as quais cresceu, mas não é reconhecido”. Até “era motivo de escândalo para eles”.

O Papa diz que o termo “escândalo” não era algo obsceno, como pensamos hoje. Significava ‘pedra de tropeço’, isto é, obstáculo, impedimento, algo que bloqueia. As pessoas não entendem como do filho de José, o carpinteiro, ou seja, de pessoa comum, poderia surgir tanta sabedoria e a capacidade de realizar prodígios. O escândalo é a humanidade de Jesus. O obstáculo que impede as pessoas de reconhecer a presença de Deus em Jesus é o facto de Ele ser humano, simplesmente o filho de José, o carpinteiro.

“Este é o escândalo: uma fé fundada num Deus humano, que se inclina para a Humanidade, que cuida dela, que se comove com as nossas feridas, que toma sobre si o nosso cansaço, que Se parte como pão para nós”, vincou o Papa, sustentando que um Deus forte e poderoso, que está do nosso lado e nos satisfaz, é atraente; o Deus fraco, que morre na cruz por amor e nos pede para vencermos o egoísmo e oferecermos a vida pela salvação do Mundo, é um Deus incómodo.

Diante do Senhor Jesus e olhando para os desafios que nos interpelam, para os muitos problemas sociais e políticos, para a vida concreta da nossa gente, dizemos que precisamos do escândalo da fé, não de religiosidade fechada, que ergue o olhar para o céu, sem se preocupar com o que acontece na terra, e celebra liturgias no templo, esquecendo a poeira que corre nas estradas. “Precisamos do escândalo da fé”, disse Francisco, de fé arraigada no Deus que se fez homem e “de uma fé humana, de uma fé de carne, que entra na História, que acaricia a vida das pessoas, que cura os corações partidos, que se torna fermento de esperança e germe de um Mundo novo”.

É uma fé que desperta as consciências do torpor, que põe o dedo nas feridas da sociedade, que levanta questões sobre o futuro do homem e da História, uma fé inquieta, que se move de coração a coração, que acolhe os problemas da sociedade, que nos ajuda a vencer a mediocridade e a acídia do coração, que se torna espinho na carne de uma sociedade anestesiada pelo consumismo.

O consumismo é uma chaga que entrou no coração das pessoas, pela ânsia de ter, de ter coisas e ter mais, pela ânsia de desperdiçar dinheiro. É um cancro que adoece o coração, que torna a pessoa egoísta, que a faz olhar apenas para si mesma. Por isso, precisamos de uma fé que dispersa os cálculos do egoísmo humano, denuncia o mal, aponta o dedo contra as injustiças e perturba as tramas de quem, na sombra do poder, brinca com a pele dos fracos. Usar a fé para explorar as pessoas não é fé, soa a blasfémia.

O Papa disse que não devemos esquecer que “Deus Se esconde nos cantos escuros da vida e das nossas cidades”. A sua presença revela-se nos rostos escavados pela dor e onde a degradação parece triunfar. Jesus viveu, na própria carne, a profecia do quotidiano, entrando na vida e nas histórias diárias do povo, manifestando a compaixão nas vicissitudes humanas. Manifestou o ser de Deus, que é compassivo. Permaneceu fiel à sua missão, não se escondeu atrás da ambiguidade, não aceitou a lógica do poder político e religioso. Fez da sua vida uma oferta de amor ao Pai. Assim também nós, cristãos, somos chamados a ser profetas e testemunhas do Reino de Deus, em todas as situações que vivemos, em todos os lugares em que vivemos.

O Papa Francisco concluiu, incentivando a Igreja em Trieste a continuar a trabalhar na linha de frente, “para difundir o Evangelho da esperança, especialmente para os que chegam da rota dos Balcãs e para todos os que, no corpo ou no espírito, precisam de ser encorajados e consolados. E apelou a que nos empenhemos, juntos, para que, redescobrindo-nos amados pelo Pai, todos vivamos como irmãos. “Todos irmãos, com o sorriso do acolhimento e da paz na alma.”

A fé com obras faz maravilhas, move montanhas!

2024.07.07 – Louro de Carvalho

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