A liturgia do 16.º domingo do Tempo Comum no Ano B evidencia o
carinho de Deus pelas “ovelhas sem pastor” ou que têm maus pastores, de tal modo
que promete dar-lhes pastores que tratem bem do rebanho – sem se aproveitarem dele
egoisticamente –, pela atenção, pela dedicação, pelo conhecimento e pelo cuidado
de cada uma, chamando-a pelo seu nome e tendo em conta as suas carências e
potencialidades. Ao mesmo tempo, institui como pastor cheio de compaixão o seu
Filho Unigénito que Se encarnou na pessoa de Jesus Cristo, o Pastor dos pastores.
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Na primeira
leitura (Jr 23,1-6), pela voz
de Jeremias, Deus condena os pastores indignos, os que usam o rebanho que lhes
foi confiado, para concretizarem os seus próprios projetos pessoais, anuncia
que vai, Ele próprio, tomar conta do seu rebanho, assegurando-lhe a Vida em
abundância.
O “ai” com que se inicia o oráculo dá às palavras de
Javé um tom ameaçador: Deus desaprova a forma negligente como os líderes de
Judá têm conduzido o seu Povo.
As formas verbais utilizadas definem a culpa dos
responsáveis da nação: “perdem”, “dispersam” e “escorraçam” as ovelhas que lhes
foram confiadas. São factos históricos concretos, recentes, que levaram ao
Exílio do Povo em terra estrangeira. As políticas aventureiras, os interesses
pessoais, os jogos políticos, a inconsciência erigida em estilo de condução da
comunidade, trouxeram consequências funestas ao Povo, ao rebanho de Deus e
abriram-lhe os portões da desgraça. Os líderes não serviam o Povo, mas
serviam-se dele, para concretizarem os seus objetivos pessoais. Privilegiaram os
seus interesses à custa do bem comum. Porém, o rebanho não é propriedade dos
pastores, mas do Senhor, que chamou os reis de Judá para a missão concreta de
cuidarem do rebanho, mas eles, depois de terem aceitado o compromisso, falharam
totalmente.
Após a nota de culpa, vem a decisão. Deus vai “ocupar-se”
dos maus pastores: castigá-los-á e pedir-lhes-á contas das suas más ações, pois
não tolera abuso de confiança, nem pactua com líderes que exploram o rebanho em
benefício próprio.
Todavia, a intervenção de Deus não se cinge ao pedido
de contas aos maus líderes; tomará medidas para remediar a situação e para
salvar o Povo abandonado e disperso. A intervenção de Deus vai desenvolver-se
em três tempos.
Primeiro, Deus tratará da repatriação dos exilados: as
ovelhas retornarão “às suas pastagens para que cresçam e se multipliquem”. Para
tanto, não conta com intermediários: Ele mesmo liderará o processo de
libertação e de regresso dos exilados à terra donde foram afastados.
A seguir, Deus escolherá novos pastores, exemplares,
para cuidarem do seu Povo. A missão desses pastores será apenas “apascentar”, o
que implica o cuidado, a solicitude, o amor, a ternura pelo rebanho. Esses pastores
serão dedicados e cuidadosos; estarão mesmo ao serviço do rebanho e não usarão as
ovelhas para concretizarem os seus interesses pessoais. As ovelhas aprenderão a
confiar nesses pastores que as amam e não terão medo nem sobressalto.
Por fim, o momento da intervenção de Deus é projetado
para o futuro, para um tempo sem data. Promete a chegada de um “rebento justo”
da dinastia de David. A imagem tirada do reino vegetal (“rebento”) sugere
fecundidade e vida em abundância, porque ele dará Vida abundante ao rebanho de
Javé. Esse pastor assegurará “o direito e a justiça” e trará salvação e
segurança ao Povo de Deus. O nome desse rei será “o Senhor é a nossa justiça”,
pois é Deus quem o legitimará e a sua missão será administrar a justiça que
Deus quer. Garantindo a justiça, esse pastor trará a harmonia, a paz, a
tranquilidade, a salvação, a Vida ao Povo de Deus. Esta promessa, com contornos
messiânicos, pretende anular a frustração e o desespero e inaugurar um tempo de
esperança para o Povo de Deus. Vislumbra-se aqui, embora veladamente, a figura
de Jesus.
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O Evangelho
(Mc
6,30-34) mostra como Jesus responde à fome de Vida e de esperança dos
que O procuram. “Profundamente comovido” com o desnorte das “ovelhas perdidas”
que correm atrás d’Ele pelas vilas e aldeias da Galileia, Jesus oferece-lhes a
Boa notícia do Reino e do desígnio humanizador que Deus tem para o Mundo dos
homens. A missão de Jesus é a missão dos discípulos. Para a concretizar, estes
devem manter estreita comunhão com Jesus.
Os apóstolos, depois de algum tempo a “pregar a
conversão”, a “expulsar demónios”, a “curar doentes”, regressam ao encontro de
Jesus e contam-lhe “o que tinham feito e ensinado”. Jesus é o ponto de partida
e o ponto de chegada. Os apóstolos partem, porque Jesus os envia; anunciam por
toda a parte, não uma mensagem própria, mas a Boa notícia confiada por Jesus;
regressam a Jesus, quando concluem o trabalho missionário; apresentam-Lhe o
relatório detalhado de tudo o que fizeram, porque todos os passos da missão devem
ser verificados por Jesus, pois a missão é de Jesus e os apóstolos são as
testemunhas e os arautos de Jesus. Convém que os enviados de Jesus de todas as
épocas estejam cônscios desta realidade.
A seguir, Jesus convida os apóstolos a irem com Ele
para um lugar isolado e descansarem um pouco. Este descanso ao pé de Jesus
serve para aprofundar e fortalecer a comunhão entre os discípulos e Jesus. Os
apóstolos, após intensa experiência de trabalho missionário, precisam de estar
a sós com Jesus, de revitalizar a comunhão com Ele. Precisam de Lhe contar o
que fizeram, de Lhe expor dúvidas e angústias, de escutar as indicações que Ele
tem para lhes dar, de fazer projetos com Ele, de redescobrir o princípio e o
fundamento da missão.
Se os apóstolos não aprofundam permanentemente a ligação
a Jesus, a missão deixa de fazer sentido; se não confrontam, frequentemente, os
seus esquemas, ideias e projetos pastorais com Jesus e com a sua Palavra, a
missão está condenada ao fracasso.
No entanto, a paragem proposta por Jesus também tem por
objetivo proporcionar aos apóstolos o merecido tempo de repouso. Com efeito
“havia sempre tanta gente a chegar e a partir que eles nem tinham tempo de
comer”. Há, aqui, o aviso contra o exagerado ativismo, que destrói as forças do
corpo e seca o espírito. O excesso de trabalho pode levar à saturação que esgota
o entusiasmo e faz perder o sentido da missão. Porém, a fuga ao trabalho leva
ao angelismo ineficaz.
O retiro dos discípulos com Jesus dura apenas o breve
espaço da viagem de barco. Na verdade, as multidões, ao verem para onde se
dirigia o barco, contornaram o lago da Galileia, a pé, e correram para o lugar
onde o barco ia aportar. Ao chegarem, Jesus e os discípulos deparam-se com a
multidão que os espera de novo. E Jesus recordou-se da velha metáfora que a
catequese de Israel usava: eram “como ovelhas sem pastor”. A busca incansável e
determinada espelhava a fome de Vida, de perspetivas, de esperança que as
pessoas sentiam. Corriam atrás de Jesus, porque acreditavam que Ele podia
saciar-lhes essa fome.
Perante este cenário, Jesus “comoveu-se
profundamente”. O termo grego que descreve a sua reação – o verbo grego
“splagknídzomai” – indica a comoção profunda que a mãe sente no ventre ante o
filho que ama ternamente. Aliás, o nome que resulta desta palavra – splágknon –
significa “seio materno”, barriga da mãe. A comoção profunda de Jesus ante a
multidão é um interior estremecimento que resulta de um imenso amor, de um amor
materno. É assim que Deus reage aos seus filhos e filhas que caminham pela
vida, frágeis, à procura de Vida.
Jesus responde a esta multidão necessitada,
ensinando-lhes “muitas coisas”. Pouco depois, irá alimentá-la com o pão
multiplicado e partilhado. Os discípulos ao lado de Jesus e veem como Ele
testemunha o amor, a ternura, a bondade de Deus aos homens e mulheres que buscam
a salvação.
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Na segunda
leitura (Ef 2,13-18), Paulo dirige-se aos cristãos de Éfeso e
fala-lhes do desígnio salvador de Deus, que abarca todos os filhos e filhas de
Deus, sem distinção de raças, de etnias, de diferenças sociais ou culturais e
de experiências religiosas. A todos quer reunir à sua volta e salvar. Reunidos
na família de Deus, os que acolhem a salvação são irmãos, unidos pelo amor.
O apóstolo dirige-se aos cristãos vindos do paganismo
(“vós outrora longe de Deus”) e explica-lhes a situação em que estão depois de
terem aderido a Jesus. Foi pela entrega de Cristo que se aproximaram de Deus.
Antes, adoravam os ídolos e, embora fossem religiosos, desconheciam o verdadeiro
Deus e a sua salvação, mas, pelo sangue derramado de Cristo, foram admitidos a
fazer parte da família de Deus. Passaram a integrar uma comunidade fraterna
onde cabem todos aqueles que foram salvos por Cristo, independentemente das
suas origens e das suas diferenças étnicas ou culturais. A entrega de Cristo
derrubou a barreira de inimizade que separava judeus e pagãos e fez de todos um
único Povo. Desfez o muro que separava os homens de Deus e uns dos outros.
Dantes, os Judeus, convictos de que eram um Povo à
parte, desprezavam os pagãos e não queriam contacto com eles; as suas leis pugnavam
pela rígida separação e interditavam o contacto com os outros povos. Os pagãos,
por sua vez, nutriam um profundo desprezo pelos Judeus, devido à sua diferença,
à sua arrogância, à sua convicção de que eram um povo especial, acima dos
outros.
A profunda barreira de inimizade, que dividia uns e
outros, estava bem representada no Templo de Jerusalém, onde um muro de pedra
dividia o átrio dos judeus e o átrio dos gentios. Ora, Cristo veio apresentar
um tipo de vida que é para todos, sem exceção. O que é decisivo não é a
pertença a determinado Povo, mas a forma como se responde à oferta de Vida que
Jesus faz. Quem responde positivamente a Cristo, integra a comunidade dos
santos. A Lei de Moisés, com as suas prescrições e exigências (que vedavam aos
pagãos a possibilidade de integrar o Povo de Deus), fica anulada. Na nova
economia da salvação, o que conta é a disponibilidade para acolher a Vida que
Deus oferece e aceitar viver como Homem Novo.
Nasce, assim, um corpo que integra os mais diversos
membros, pertencentes a todos os quadrantes da família humana. Todos os que
aceitaram integrar a comunidade de Jesus, sem diferenças de qualquer natureza pertencem
à família de Deus. Todos – judeus e pagãos – são membros da comunidade
trinitária do Pai, que oferece a Vida, do Filho, que vem ao encontro dos homens
para lhes comunicar a Vida do Pai, e do Espírito, que mantém unidos os membros
deste corpo entre si e com Deus.
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Uma vez que assim é, temos o dever e o direito de
cantar com o Salmista:
“O Senhor é
meu pastor: nada me falta.
Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.
Ele me guia
por sendas direitas por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos,
não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo:
o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.
Para mim
preparais a mesa
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça,
e o meu cálice transborda.
A bondade e
a graça hão de acompanhar-me
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.”
(Salmo 23)
2024.07.21 –
Louro de Carvalho
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