sexta-feira, 5 de julho de 2024

Isabel, a mulher diplomata, “a Rainha Santa da Concórdia e da Paz”

 

Celebrou-se, a 4 de julho, a memória litúrgica – em Coimbra, festa, pois trata-se da padroeira da Cidade – da Rainha Santa Isabel, a mulher diplomata e santa.

Nasceu no Reino de Aragão, a 4 de janeiro de 1271. Entre os antepassados, contam-se santos, reis e imperadores, sobressaindo a tia materna, Isabel da Hungria e da Turíngia. Era filha de Pedro III, rei de Aragão (reinante entre 1276 e 1285), e de Constança da Sicília. O pai, ainda jovem quando ela nasceu, não querendo ocupar-se da sua educação, confiou-a ao cuidado do avô, Tiago I, que se convertera ao cristianismo e tinha vida de fé. Sorte da futura rainha, que recebeu formação perfeita e digna no seguimento de Cristo! Tinha 12 anos quando foi pedida em casamento por três príncipes. O pai escolheu Dinis, herdeiro do trono português. Este casamento significou, para Isabel, uma coroa de rainha e uma cruz de martírio, que levou com humildade e galhardia.

Foi uma das rainhas mais belas das cortes de Espanha e de Portugal, com forte e doce personalidade, muito inteligente, culta e diplomata. Deu ao rei dois filhos: Constância, que seria, rainha de Castela, e Afonso, herdeiro do trono de Portugal. Porém, eram inúmeras as aventuras extraconjugais do rei, conhecidas e comentadas, a humilhar a bondosa rainha, que nunca se manifestava sobre a situação, de nada reclamava e tudo perdoava, mantendo-se fiel ao casamento em Deus, que fizera. Criou os filhos, inclusive os do rei fora do casamento, nos preceitos cristãos. E perdeu cedo a filha e o genro, criando ela mesma o neto Afonso, futuro monarca de Castela.

Não bastassem essas amarguras familiares, foi vítima das desavenças políticas do marido com parentes e, sobretudo, do comportamento do seu filho Afonso, que tinha combativa personalidade. Foi caluniada por um cortesão que dela não conseguiu aproximar-se. A rainha muito sofreu e muito lutou, até provar inocência, de forma incontestável.

A sua atuação nas disputas internas das cortes de Portugal e dos reinos de Espanha, nos séculos XIII e XIV, permanece na História das cortes como a única voz a pregar a concórdia e a conseguir a pacificação entre tantos desejosos de poder, ao mesmo tempo que ocupava o tempo a ajudar a mitigar as desgraças do povo pobre e as dores dos enfermos abandonados, com a caridade da sua esmola e da sua piedade cristã. Refundou o Mosteiro de Santa Clara de Coimbra para as jovens piedosas da corte, o mosteiro cisterciense de Almoste e o santuário do Espírito Santo, em Alenquer. Fundou, em Santarém, o Hospital dos Inocentes, para crianças cujas mães as iriam abandonar. Com as suas posses, sustentava asilos e creches, hospitais para idosos e doentes, tratando, pessoalmente, dos leprosos. Foi perfeito símbolo de solidariedade, no seu tempo.

Quando o marido morreu, em 1335, Isabel recolheu-se ao mosteiro das clarissas de Coimbra, onde ingressou na Ordem Terceira Franciscana. Antes, porém, abdicou do seu título real, indo depor a coroa no altar de São Tiago de Compostela. Doou toda a imensa fortuna pessoal para as obras de caridade. Viveu o resto da vida em pobreza voluntária, na oração, na piedade e na mortificação, atendendo os pobres e doentes, marginalizados. E morreu, em Estremoz, a 4 de julho de 1336. Faz agora, 688 anos. Venerada como santa, foi sepultada no Mosteiro de Coimbra, beatificada pelo Papa Leão X, em 1516, e canonizada pelo papa Urbano VIII, em 1665, é invocada como “a Rainha Santa da Concórdia e da Paz”.

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As Festas da Cidade de Coimbra e da Rainha Santa começaram a 4 de julho, Dia da Cidade. O evento, que surgiu com novo formato e com uma programação que integra 177 iniciativas, entre os dias quatro e 14, tem como mote “celebrar e homenagear Coimbra”. Quatro palcos, nove concertos, múltiplos eventos culturais e desportivos, um festival de música de rua, uma serenata, duas sessões de fogo-de-artifício e duas procissões religiosas são algumas das propostas.

Porém, de Coimbra e de festas haverá quem fale. Prefiro deter-me na leitura do artigo de João Sabido Costa, Ponto SJ, sob o título “Rainha Santa Isabel, mulher, mãe, política e diplomata?”.

Considera que a sua santidade dá “sinal inequívoco da força da sua personalidade, ligada ou não à sua intervenção em atos públicos ou ao desempenho desse tipo de funções”. E evoca os 50 anos da integração legal das mulheres na carreira diplomática portuguesa, pelo Decreto-Lei 308/1974, de 6 de julho, que dá altera os artigos 25.º e 81.º, respetivamente do Decreto-Lei n.º 47331, de 28 de novembro, e do Decreto n.º 47478, de 31 de dezembro, que restringiam a admissão a cidadãos de origem portuguesa e do sexo masculino, ficando esta segunda condição abolida.   

Assim, o articulista vê a presença e a ação de Isabel a mudar a forma e o conteúdo da diplomacia, vincando “a capacidade de atuação de uma mulher concreta, mesmo que quase singularizada na sua época, em prol do interesse público e do relacionamento entre os povos”. E, sem faltar à verdade, evidencia o facto de a Rainha Santa sobressair como a figura da mulher, “com maneiras de ser muito próprias, desde logo propícias à diplomacia”.

De facto, o diplomata tem a consciência da necessidade da aproximação aos outros, da busca de vias de pensamento e de diálogo, que possibilitem que não resulte de um diferendo a vitória absoluta de um sobre os interesses de outros. Aliás, há caraterísticas femininas que, diferentes das do homem, contribuem para a diplomacia: grande realismo e noção de que há, no diálogo diplomático, margem de aplicação mais alargada do que se julga, não se reduzindo à “mesa das negociações” com interlocutores estrangeiros.

Efetivamente, mais difícil do que a “diplomacia externa” pode ser a “interna”, a levada a cabo no próprio Estado, permitindo manter a máquina oleada e harmoniosa, cuja atuação se possa refletir nos resultados internacionais. A boa estratégia diplomática é, por vezes, embotada por conflitos internos ou pela falta de compreensão e de aceitação do público, pelo que saber construir ‘pontes’ se mostra indispensável para boa atuação no exterior. Por outro lado, o diplomata deve sê-lo 24 horas por dia, pois uma perda de imagem pode repercutir-se, negativamente, na sua proficiência.

Aristóteles dizia que à mulher, tendo como o homem, capacidade deliberativa, falta a volitiva. Contudo, a mulher, por ser mais realista, torna-se mais prudente e não age com base na simples reflexão – tendencialmente provisória, mesmo que racional. São aspetos que falham no homem, onde a necessidade de agir se pode prender mais à imagem que sente como importante dar de si mesmo do que à real convicção. E a vida de Santa Isabel, não correspondendo ao padrão comum da mulher do seu tempo, não é singular como figura pública, conselheira política e negociadora durante esse período peninsular. Outros casos ocorreram e que a História regista.

Isabel nasceu em 1271, mas não se sabe, exatamente, se em Zaragoza ou em Barcelona. Ela e D. Dinis eram tetranetos do Imperador do Sacro Império, Frederico Barba Ruiva, de Hohenstaufen, morto na Terra Santa e avô de Frederico II, o último da linhagem Staufen como dinastia imperial.

Casada, em 1281, recebeu do pai relevante dote, nomeadamente, em dinheiro e em joias e, do marido, diversas terras – Óbidos, Abrantes, Porto de Mós, a que se somaram, nomeadamente, Trancoso, Sintra, Vila Real, Leiria, Arruda, Torres Novas e Alenquer, bem como outras prebendas e direitos. A magnitude do património exigiu-lhe grande elenco de aias, de camareiras, de chanceleres, de ouvidores, de confessores, de médicos, de tesoureiros e de notários. Teve, pois, destacado posicionamento público que a fez entender que o estatuto de Rainha não podia ser passivo. Nunca se aliviaria do encargo da Coroa, sendo-lhe solicitada presença pública, traduzível na assunção de responsabilidades políticas ou diplomáticas. Nesse sentido, em 1291, D. Dinis nomeou-a sua primeira executora testamentária: encabeçaria um conselho de regência, em caso da sua morte. Em 1298, nomeou-a tutora dos filhos bastardos. Porém, juridicamente, o seu património era público e adstrito a fins de interesse do Estado. Apesar de doado, era res publica.

A simbologia do Milagre das Rosas, de Santa Isabel, em Portugal, e da sua Tia Isabel, na Turíngia, para ocultar a ajuda aos carenciados, talvez se relacione com o entendimento do valor público da assistência social, justificando aí gasto do património. Isabel da Hungria, após ter enviuvado, foi afastada dos seus bens pelo cunhado, Henrique Raspe, para evitar a delapidação do património. No caso de Isabel de Portugal, tornar-se-ia mais compreensível a oposição do Rei aos gastos com os pobres. Eram bens com estatuto público.

D. Dinis, nascido a 9 de outubro de 1261, subiu ao trono em 1279, com cerca de 17 anos, herdando o reino estabilizado, mas abrangido por interdito papal, do tempo do pai, D. Afonso III. O casamento de D. Dinis com Isabel terá resultado de cálculo estratégico-diplomático que excluía a aliança de Portugal com Navarra, cuja rainha casara com o herdeiro de França, e com Castela, que arriscava ilegalidade canónica pela proximidade de parentesco dos noivos.

O papel político e diplomático da Rainha Santa Isabel evidenciou-se logo no conflito entre D. Dinis e o irmão Afonso. Os conflitos régios não são de estranhar. À época, senhorios e linhagens chocavam-se, disputando as pretensões locais dos parentes do rei, tão próximos. Em Portugal, país pequeno, tais disputas tendiam a desenvolver-se na Casa Real. E Isabel percebeu os manejos do Infante D. Afonso e tornou-se relevante o sentimento da Rainha em prol da unidade nacional, da legitimidade do Rei como chefe de Estado e da Paz interna.

Noutro momento, destaca-se a intervenção abonatória junto do seu irmão de Aragão, na relação entre Portugal com o seu país de origem, a nível bilateral e no equilíbrio peninsular. Por exemplo, em 1303, Isabel interveio junto de Jaime II para a libertação de corsários portugueses cujo barco fora apreendido em Aragão. Por outro lado, contribuiu para conseguir, para o marido, durante certo período, estatuto de relevo como interlocutor diplomático, do Reino de Aragão e na política peninsular. Já na crise entre Afonso X de Castela – que levou à sua deposição, em 1282 – e o filho Sancho, na qual o Rei de Portugal favorecera o futuro Sancho IV, o Rei de Aragão pedira a D. Dinis colaboração para o entendimento entre os dois, mostrando o potencial da via mediadora.

No conflito desencadeado pelo apoio de Jaime II de Aragão, irmão da Rainha Santa Isabel, à candidatura à Coroa de Castela de Afonso de Lacerda, em 1295, por morte de Sancho IV e na menoridade do novo Rei, Fernando IV, D. Dinis apoiou os direitos reais do Infante João, tio de Fernando, invocando contra o Rei de Castela o alegado incumprimento do Tratado luso-castelhano de Castelo Rodrigo, celebrado em 1291.

Também Isabel possibilitou a participação destacada de D. Dinis nas negociações entre Aragão e Castela, sobre o domínio do Reino muçulmano de Granada, definidas, em 1308, pelo Tratado de Alcalá de Henares. Embora à custa de território muçulmano, visava-se evitar uma guerra, pela sua disputa, entre Aragão e Castela. Contudo, das ações militares conjuntas empreendidas, com apoio português, na base do Tratado – ataque em duas frentes contra Granada, reino vassalo de Castela até 1284, prevendo-se que Aragão ficasse com Almeria e Castela com Gibraltar e Algeciras – só resultou a conquista de Gibraltar, em 1309.

Novamente, no plano interno, a rebelião de D. Afonso contra o pai, iniciada em 1319, marcou bastante a Rainha, obrigando-a a intervir. Porém, o sentido de justiça levou-a a discordar do filho, nas suas queixas (para ela, imponderadas), contra Afonso Sanches, filho natural de D. Dinis. Na dúvida sobre a sua imparcialidade, o Rei exilou a esposa em Alenquer, o que ela aceitou, com gestos apaziguadores para os que o lamentavam. Porém, voltou a interferir no conflito entre pai e filho, em Alvalade, em 1323, embora a paz só tenha sido alcançada em 1324.

Santa Isabel é uma das mais conhecidas rainhas de Portugal. Denominada, entre nós, Santa Isabel de Portugal (nascida em Aragão), lembra como nos opomos à denominação de Santo António (de Lisboa) como Santo António de Pádua. Por outro lado, a sua fama de santidade (e posteriores beatificação e canonização) – como a de Isabel da Hungria – contribuíram para o apagamento de outras vertentes da sua vida.  Assim, a sua intervenção política e diplomática não é associada, geralmente, ao reflexo das virtudes que a levaram à canonização. Tal não é o caso, por exemplo, da fama de esmoleira e de protetora dos pobres, mais apresentada como causa da sua fama de santidade – embora os valores públicos por ela prosseguidos fossem os da Paz e Concórdia.

Porém, a sua santidade dá sinal inequívoco da força da sua personalidade, ligada ou não à sua intervenção em atos públicos. Nesse desempenho não esteve, nem estava sozinha entre os seus pares, nomeadamente de Castela, embora tenha sido excecional no modo de proceder.

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O questionamento e o realce do papel da mulher na História do Mundo têm conhecido um desenvolvimento acelerado nos tempos recentes, num processo de debate e reivindicação longe de terminado. E Santa Isabel é um exemplo do que pode a determinação feminina, nos campos da paz, da promoção da igualdade, da vivência da fraternidade e da implantação da justiça social.

2024.07.04 – Louro de Carvalho

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