segunda-feira, 22 de julho de 2024

Os santos e a amizade

 

Fica-se, muitas vezes, com a ideia de que os santos e as santas foram avessos/as ao Mundo. E efetivamente, alguns/algumas o foram. Foram santos/as, não por isso, mas apesar disso.

O Mundo, que Deus criou, mereceu que o Filho de Deus o viesse salvar. Não é possível viver em paz fugindo dele ou evitando-o. Outra coisa é desligar-se do espírito mundano, que se afasta do Mundo que Deus criou e salvou, afastar-se do apego aos bens terrenos e aspirar às coisas do Alto. Na verdade, somos peregrinos no Mundo, não seus proprietários, nem seus habitantes em definitivo. Os crentes sabem que a sua pátria definitiva é o céu. Por conseguinte, são de apreciar os santos/as que, no quadro da fraternidade, praticaram e incentivaram a amizade entre as pessoas.

É possível que muitos de nós sejamos ricos e ainda não nos tenhamos dado conta. A Palavra de Deus já nos ensinava desde o Antigo Testamento: “Amigo fiel é proteção poderosa e quem o encontrar, terá encontrado um tesouro. Amigo fiel não tem preço, e o seu valor é incalculável. Amigo fiel é remédio que cura, e os que temem ao Senhor encontrá-lo-ão” (Sir 6,14-16).

Se Jesus, que é Deus, quis precisar de amigos para seguir a sua caminhada neste Mundo, imagine-se a nossa condição. O ser humano não pode viver como uma ilha. É como afirmou São João Bosco: “Deus colocou-nos no Mundo para os outros”. Podemos dizer que, a partir de Cristo, a amizade tomou novo sentido: o amigo é o que descobriu o valor e a dignidade do irmão, à luz do Evangelho. Essa sincera amizade, no genuíno sentido humano e cristão, propagou-se entre os primeiros cristãos refugiados nas catacumbas. A História da Igreja é marcada por exemplos de profundas amizades entre os santos padres, como São Basílio e São Gregório, entre os grandes santos, como Francisco de Assis e Clara, Ambrósio e Mónica e muitos outros.

São Gregório Nazianzeno, um dos padres da Igreja, escreveu sobre o amigo São Basílio e explicou como viviam, profundamente, a amizade: “Encontramo-nos em Atenas. Como o curso de um rio, que, partindo da única fonte, se divide em muitos braços, Basílio e eu tínhamo-nos separado para buscarmos a sabedoria em diferentes regiões. Mas voltamos a reunir-nos, como se nos tivéssemos posto de acordo, sem dúvida, porque Deus assim quis. Nesta ocasião, eu não só admirava o meu grande amigo Basílio, vendo-lhe a seriedade de costumes e a maturidade e prudência das suas palavras, mas ainda tratava de persuadir outros, que não o conheciam bem, a fazerem o mesmo. Logo começou a ser considerado por muitos que já conheciam a sua reputação.”

Ele foi quase o único, entre todos os que iam estudar em Atenas, a ser dispensado da lei comum; e parecia ter obtido maior estima do que comportava a condição de novato. Este foi o prelúdio da amizade dos dois, a centelha que fez surgir a intimidade e foram tocados pelo amor mútuo.

Com o passar do tempo, confessaram um ao outro o seu desejo: a Filosofia era o que almejavam. Desde então, eram tudo um para o outro: moravam juntos, faziam as refeições à mesma mesa, estavam sempre de acordo, aspiravam aos mesmos ideais e cultivavam, cada dia, mais estreita e firmemente a sua amizade. Movia-os igual desejo de obterem o que há de mais invejável: a ciência. Não tinham inveja, mas valorizavam a emulação. Lutavam, não para ver quem tirava o primeiro lugar, mas para cedê-lo ao outro. Cada um considerava como própria a glória do outro.

Parecia que tinham uma só alma em dois corpos. E, embora não se deva dar crédito aos que dizem que tudo se encontra em todas as coisas, no caso deles, podia afirmar-se que, de facto, cada um se encontrava no outro e com o outro.

O único objetivo era a virtude e as esperanças futuras, de tal modo que, mesmo antes de partirem desta vida, tivessem emigrado dela. Nesta linha, organizaram toda a sua vida e modo de agir. Deixaram-se conduzir pelos mandamentos divinos, estimulando-se mutuamente à prática da virtude. Eram um para o outro a regra e o modelo para discernir o certo e o errado.

Assim como cada pessoa tem um sobrenome recebido dos pais ou adquirido por si próprio, isto é por causa da atividade ou orientação de sua vida, para ambos, a maior atividade e o maior nome era serem cristãos e como tal reconhecidos.

A verdadeira amizade, além de ser relação entre pessoas, é ajuda mútua e caminho espiritual. Numa de suas catequeses, o Papa Bento XVI destacou: “Essa é uma caraterística dos santos: cultivam a amizade, porque é uma das manifestações mais nobres do coração humano e tem em si algo de divino, como Tomás explicou em algumas quaestiones da Summa Theologiae, na qual escreveu: ‘A caridade é a amizade do homem com Deus em primeiro lugar, e com os seres que a Ele pertencem’.”

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Eis 15 ensinamentos dos santos sobre a amizade:

1. “Nem sempre o que é indulgente connosco é nosso amigo, nem o que nos castiga, nosso inimigo. São melhores as feridas causadas por um amigo do que os falsos beijos de um inimigo. É preferível amar com severidade a enganar com suavidade.” – Santo Agostinho

2. “Amando o próximo e cuidando dele, vais percorrendo o teu caminho. Ajuda, portanto, o que tens ao lado, enquanto caminhas neste Mundo, e chegarás junto daquele com quem desejas permanecer para sempre.” – Santo Agostinho

3. “Disse muito bem quem definiu o amigo como metade da própria alma. Eu tinha, de facto, a sensação de que as nossas duas almas fossem uma em dois corpos.” – Santo Agostinho

4. “A amizade é tão verdadeira e tão vital, que nada mais santo e vantajoso se pode desejar no Mundo.” – Santo Agostinho

5. “A amizade é a mais verdadeira realização da pessoa.” – Santa Teresa D’Ávila

6. “A amizade com Deus e a amizade com os outros é uma e mesma coisa, não podemos separar uma da outra.” – Santa Teresa D’Ávila

7. “A amizade, cuja fonte é Deus, não se esgota nunca”. – Santa Catarina de Sena

8. “Qualquer amigo verdadeiro quer para o seu amigo: que exista e viva; todos os bens; fazer-lhe o bem; deleitar-se com a sua convivência; e compartilhar com ele as suas alegrias e tristezas, vivendo com ele um só coração.” – Santo Tomás de Aquino

9. “A amizade diminui a dor e a tristeza.” – Santo Tomás de Aquino

10. “Quem com palavras, com conversas ou com ações der escândalos, não é amigo, mas assassino de almas.” – São João Bosco

11. “Temos de ir à procura das pessoas, porque podem ter fome de pão ou de amizade.” – Santa Madre Teresa de Calcutá

12. “As palavras de amizade e conforto podem ser curtas e sucintas, mas o seu eco é infindável.” – Santa Madre Teresa de Calcutá

13. “Ama a todos os homens com um grande amor de caridade cristã, mas não traves amizade senão com as pessoas cujo convívio te pode ser proveitoso; e quanto mais perfeitas forem estas relações, tanto mais perfeita será a tua amizade.” - São Francisco de Sales

14. “No mundo, é preciso que os que se entregam à prática da virtude se unam por santa amizade, para mutuamente se animarem e conservarem nesses santos exercícios.” – São Francisco de Sales

15. “Faz-nos tanto bem, quando sofremos, ter corações amigos, cujo eco responde à nossa dor.” – Santa Teresa de Lisieux

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Há um conjunto de 10 santos, bem conhecidos, que descobriram o tesouro da amizade e testemunharam ao Mundo que é possível ter uma amizade bonita, fecunda e centrada no Senhor.

1. São Francisco e Santa Clara de Assis, italianos. A sua amizade é uma das mais conhecidas na Igreja Católica. Quando Francisco de Assis conheceu Clara, tomou a decisão de “retirar do Mundo malvados tão precioso dom para enriquecer com ele o seu Divino Mestre”. Em 1212, a jovem fugiu de casa para se consagrar a Deus na igreja de são Damião e prometeu obedecer a Francisco em tudo. Logo depois, fundou a ordem das clarissas e cuidava dos doentes que Francisco lhe enviava. Em 1225, atendeu o amigo, que sofria, devido aos estigmas e cuja saúde havia piorado. E Francisco, antes de morrer, em 1226, enviou uma mensagem de encorajamento a Clara, para que não desanimasse com a sua partida.

2. São João Paulo II e Santa Teresa de Calcutá. A amizade entre o Papa polaco e a fundadora albanesa das missionárias da caridade é uma das que mais comove os fiéis na atualidade. João Paulo II chamava-a de “minha mãe”. O Papa peregrino desenvolveu a vocação religiosa no meio da guerra e do comunismo, enquanto ela descobria a vocação a servir os mais necessitados em Calcutá, uma das cidades mais pobres da Índia. Teresa de Calcutá visitou-o, várias vezes, no Vaticano; e, em 1986, o Papa visitou a Índia, onde conheceu o asilo “Nirmal Hriday” (Sagrado Coração) que ela fundou. A religiosa disse que esse foi “o dia mais feliz” da sua vida.

3. São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac. O principal motor da vida destes santos franceses foi a caridade. Aos 36 anos, Vicente de Paulo sentiu a vocação a servir os pobres. Fundou a Congregação da Missão (Vicentinos), para evangelizar os mais necessitados e para trabalhar na formação do clero. Alguns anos depois, conheceu uma corajosa e determinada viúva chamada Luísa de Marillac. O santo decidiu dar-lhe formação espiritual e, juntos, fundaram, em 1633, a Companhia das Filhas da Caridade.

4. Santa Teresa do Menino Jesus e Santa Elisabete da Trindade. Foram duas religiosas carmelitas francesas cuja amizade se baseava na sua profunda vida espiritual. Conheceram-se no Carmelo de Dijon, localizado no Leste da França. Isabel, conhecida como a “irmã espiritual” de Santa Teresa, escreveu diversos livros sobre a Santíssima Trindade. Ambas desejavam fervorosamente chegar ao céu e estar junto com o seu amado Jesus. Morreram antes de completarem 30 anos de idade. Teresa de Lisieux morreu, em 1897, e a sua amiga, nove anos depois.

5. Santa Rosa e São Martinho de Lima. São os dois santos mais importantes do Peru e conhecidos pelo testemunho de humildade e de serviço aos mais necessitados. Segundo a tradição, ambos foram batizados na igreja de São Sebastião, com dois anos de diferença, e receberam o sacramento da Crisma das mãos de Santo Toríbio de Mogrovejo, segundo arcebispo de Lima. Cresceram em amizade enquanto atendiam doentes e escravos na cidade. Além disso, pertenciam à ordem dominicana. Rosa de Lima era terciária, enquanto Martinho era religioso.

6. Santo Inácio de Loyola e São Francisco Xavier, espanhóis. Conheceram-se na Universidade de La Sorbona, em Paris, na França. Inácio de Loyola tinha aproximadamente 33 anos, quando o seu discípulo São Pedro Fabro o apresentou a Francisco Xavier. A princípio, Francisco considerou Inácio antipático, por sempre repetir a frase de Cristo: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”. Pouco a pouco, o jovem deixou de lado a vaidade e fez os exercícios espirituais criados pelo fundador da Companhia de Jesus (jesuítas). Em 1540, o Papa Paulo III aprovou a criação da Companhia e Inácio foi escolhido como seu primeiro superior geral e Francisco Xavier partiu como missionário para Índia e para o Japão.

7. Santa Teresa d’Ávila e Aão João da Cruz. Teresa era uma jovem sonhadora e determinada, quando emitiu os votos no Carmelo, em 1536, aos 21 anos de idade. No Carmelo, percebeu que as carmelitas, na Espanha e em outros lugares, tinham diminuído e se converteram em centro social para todos os que desejavam vida fácil e relaxada. Quando começou a encontrar os novos conventos carmelitas, conheceu o jovem frade chamado João e, depois de o entrevistar, convidou-o a fazer parte da reforma do Carmelo, a fim de revitalizar o carisma original da pobreza e da oração. Esses amigos também escreveram lindos poemas baseados nas suas provações e alegrias espirituais. O mais conhecido de Teresa d’Ávila é “Nada te turbe” e de João Cruz é “A noite escura da Alma”.

8. São João Bosco e São Domingos Sávio. Após ser ordenado sacerdote, em 1841, João Bosco criou um oratório onde reuniu centenas de jovens para os formar. Naquela época, um sacerdote apresentou-o a um menino chamado Domingos. O santo ficou impressionado com a vida espiritual e a alegria do menino. Por isso, decidiu acolhê-lo e tornou-se seu diretor espiritual. Numa noite, Dom Bosco encontrou-o a tremer de frio na cama e coberto apenas com um lençol. Quando chamou a atenção de Domingos Sávio, o menino brincou dizendo: “Nosso Senhor não pegou nenhuma pneumonia no estábulo em Belém”. Domingos morreu em 1857. Dois anos depois, Dom Bosco fundou a ordem dos salesianos junto com um grupo de jovens.

9. São Cornélio e São Cipriano. O Papa Cornélio e Cipriano, Bispo de Cartago, testemunharam a sua fé durante a perseguição que sofreram por parte do Império Romano. Este Papa  enfrentou o sacerdote Novaciano, que proclamou a heresia de que a Igreja Católica não tinha o poder para perdoar os pecados. O santo enfrentou-o e foi apoiado, no debate pelo seu amigo Cipriano. Cornélio foi enviado para o exílio e morreu decapitado, em 253. Por sua parte, Cipriano foi martirizado da mesma maneira, cinco anos depois.

10. Santas Felicidade e Perpétua. Perpétua era uma jovem mãe de 22 anos, de família rica e Felicidade era a sua escrava. Foram presas por serem cristãs. Na prisão, Felicidade deu à luz uma menina e os cristãos ajudaram para que Perpétua pudesse permanecer com o seu bebé durante os últimos dias de vida. Receberam a comunhão, antes de serem lançadas a uma vaca selvagem e morrerem decapitadas, em 203. Os cristãos criaram a filha de Felicidade, enquanto as tias e a avó de Perpétua foram responsáveis pela educação do seu filho.

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É bom que nos disponhamos a aprender com os santos e, como eles, cultivar as relações interpessoais e a vivência em conexão com a comunidade eclesial. Em vez de tentarmos explorar seus eventuais defeitos ou de passarmos o tempo a divertir-nos à sua custa, devemos imitá-los naquilo em que são exemplo a seguir.

2024.07.22 – Louro de Carvalho

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