O Jornal de Notícias (JN), de 1 de julho, dá-nos conta, através da pena de Marta Neves,
de que uma paciente que, aos 28 anos, “tinha a visão comprometida em 90%,
devido à queratocone, doença que deforma
as córneas”, foi chamada, ano e meio depois, para o transplante para o qual
estava inscrita no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos.
Tal
cirurgia foi possível, graças ao primeiro Banco de Córneas de Cultura, em
Portugal, criado pela equipa de Oftalmologia do Centro Hospitalar Universitário
de Santo António, no Porto.
A este
respeito, Pedro Menéres, diretor do serviço de Oftalmologia do Hospital de
Santo António, refere: “Há um ano e meio que submetemos o projeto […], tendo
havido o aval do governo em outubro de 2023.”
“Apesar
de, só agora, Portugal ter encontrado condições para passar a usufruir de um
Banco de Córneas de Cultura, no Porto, nos EUA [Estados Unidos da América] e
noutros países da Europa, como a Holanda, a Itália e a Espanha, já é uma
prática comum”, enfatizou o oftalmologista Luís Oliveira, falando da vontade de
o banco vir a ser “autossuficiente”, no Santo António, e de até “exportar”.
Porém, trata-se de “uma atividade nova e, para avançarmos, é preciso que se
torne regular”, como observou o oftalmologista Miguel Neves, relevando que a
cirurgia da paciente em causa “correu bem, dentro daquilo que estava previsto”,
mas, porque a córnea não tem vasos, a cicatrização “será lenta”, devendo a
recuperação demorar cerca de um ano.
O
contacto para a cirurgia foi feito na véspera, pois, dados os critérios de
prioridade, a chamada pode ser feita entre um a três dias antes da intervenção.
E a operação de 50 minutos, realizada no Centro de Cirurgia Integrada de
Ambulatório, promete dar nova vida à paciente, “com a vantagem de, passadas
umas horas, ter ido para casa”.
Foi
utilizada a técnica lamelar no transplante, isto é, foi só utilizada a parte
necessária da córnea, tendo sido retirada da paciente apenas a zona doente,
como explicou Pedro Menéres, frisando que este método “diminui o risco de
rejeição e de outras complicações, a longo prazo”.
Para o transplante,
foi necessária “uma sutura periférica” à volta do olho. No bloco operatório, a
cirurgia foi acompanhada pela equipa num monitor fixado na parede, onde o olho
direito da paciente surgia ampliado. Os médicos Luís Oliveira e Miguel Neves
lideravam a operação, de olhos postos num microscópio. De acordo com Pedro
Menéres, sentado “com a visão como se estivesse a olhar para o fundo da estrada
e com um ecrã nos olhos”, Luís Oliveira ia intervencionando a córnea doente com
várias ferramentas. E, em meticulosa articulação com os pedais onde tinha os
pés, ia dimensionando a imagem do olho, dando-lhe maiores ou menores grandeza
ou luminosidade.
A parte
mais curiosa da cirurgia ocorreu ao chegar o momento de dar os pontos, com linha
que não se vê, pois “é mais fina do que um cabelo, só visível ao microscópio”.
A córnea a transplantar foi retirada do invólucro que a guardava (tão perfeita
que parece uma lente). E, quase sem se dar por isso, a cirurgia entrou na reta
final, com 16 pontos dados com se estivessem a ser desenhadas as horas no
relógio. “Os primeiros quatro pontos são dados como se os ponteiros estivessem
nas 12, nas 6, nas 3 e nas 9 horas, e os restantes nesses intervalos”, explicou
Miguel Neves, ante a imagem do olho costurado com mestria.
É de
anotar que esta doença, no dizer dos especialistas, estava associada a “uma
predisposição genética”. Por outro lado, como explicou o diretor do serviço de
Oftalmologia, esta doença agrava-se “com o coçar dos olhos”, porque “faz com
que a córnea vá ficando em cone, levando à distorção da imagem”.
***
Embora a
criação do primeiro Banco de Córneas de Cultura, em Portugal, tenha sido
anunciada, em outubro de 2023, pelo então ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a
equipa só começou com os transplantes desta natureza em junho. O primeiro foi
no dia 12. Até aí, a equipa articulava sinergias e fazia ensaios. A expectativa
de Pedro Menéres é que, em 2025, a equipa realize mais 100 transplantes, além
dos 120 a 150 que já faz por ano. Efetivamente, com esta tecnologia, será
possível usar córneas até mais de um mês após a colheita, o que não é possível
com a conservação de bancos clássicos, no frio. Nesses, a conservação de
córneas ia até ao máximo de 14 dias, a que se juntava a limitação a nível de
critérios de seleção de dadores, para obter córneas.
Com as
córneas de cultura, segundo os especialistas, é possível aumentar o número de
córneas disponíveis para transplante, aumentar a qualidade e programar as
cirurgias com mais tempo. Todavia, para que o novo banco funcione com a
regularidade necessária, face às listas de espera, Pedro Menéres sustenta que é
necessária “uma equipa própria de colheita permanente”. Com efeito, “foi
possível criar, pela primeira vez, um Banco de Córneas de Cultura, em Portugal,
porque usamos as instalações do Banco Público de Gâmetas, instalado no Centro
Materno Infantil do Norte e criamos sinergias com os técnicos que lá trabalham.
Porém, necessitamos de que a administração do hospital reveja incentivos, para
que tenhamos uma equipa própria de colheita permanente”, desiderato que se
prevê estar concretizado em breve. Na verdade, esta é “uma atividade
imprevista, que pode acontecer ao fim de semana, à noite, e que envolve, não só
a colheita da córnea, como também o processamento dos tecidos e o transplante”.
***
A córnea
é um tecido transparente que fica na parte da
frente do olho, comparável ao vidro de um relógio. Permite a entrada da luz e
executa dois terços das tarefas de foco, seguida da íris (a área colorida do
olho) e a pupila. Apesar de a córnea não ter vasos sanguíneos, tem diversos
nervos e os nutrientes fornecidos são da mesma fonte que os canais lacrimais.
Com perda de transparência da córnea (opacificação), ocorre o leucoma de córnea
(ou corneano). Além da transparência, a córnea saudável apresenta curvatura que
ajuda a formar a imagem na retina com foco e nitidez. Por isso, as alterações
nesta curvatura prejudicam a visão.
A função da córnea é refratar e transmitir a luz. A face
anterior, elíptica, mede aproximadamente 12,6 milímetros (mm), no meridiano
horizontal e, 11,7 mm no vertical. Apresenta uma espessura média de 0,520 mm,
na região central, e de quase 1,0 mm, na região mais periférica. A curvatura da
face anterior não é uniforme, apresentando a curva na região central mais plana
do que a região periférica. O raio de curvatura médio é de 7,8 mm, na face
anterior da região central, e de 6,6 mm, na face posterior. A escala de poder
refracional da estrutura é de 44,00 Dioptrias. A estrutura é não
vascularizada e a inervação é desprovida de bainha de mielina, garantindo total
transparência.
A córnea possui cinco camadas: epitélio, camada superficial
composta por células provida de grande capacidade de regeneração; membrana de
Bowman, constituída a partir de células do epitélio basal,
lâmina basal e fibras do estroma anterior; estroma, tecido responsável por sustentar a célula (é o tecido
conectivo); membrana de Descemet,
responsável por revestir a superfície do estroma e uma camada posterior,
próxima do endotélio; e endotélio, constituído pelas células hexagonais, responsáveis
por manter transparenciadas as camadas da córnea.
Várias doenças oculares podem debilitar a córnea, causando -lhe perda de
transparência ou irregularidade de forma ou de superfície. Por exemplo: queratocone em estágio avançado, trauma no olho, infeções, queimaduras por substâncias
químicas, enfermidades congénitas ou outras causas em que a pessoa pode ter a
visão bastante reduzida ou, às vezes, até a perder.
***
O transplante de córnea é um procedimento
cirúrgico em que a córnea doente ou danificada é substituída por outra de dador,
na totalidade (ceratoplastia penetrante)
ou em parte (ceratoplastia lamelar).
O enxerto é retirado de um indivíduo recentemente falecido, sem doenças
conhecidas ou outros fatores que possam afetar a viabilidade do mesmo ou a
saúde do recetor. Retirado o enxerto, é transplantado cirurgicamente para o
indivíduo recetor.
Há
dois tipos de transplante de
córnea, de acordo com o número de camadas transplantadas. A córnea tem
cinco camadas. Porém, em caso de transplante, nem sempre é necessário
transplantar todas as camadas. Se todas forem transplantadas, o transplante
é penetrante; e, se apenas
parte das camadas forem transplantadas, o transplante é lamelar.
No
transplante penetrante, a
rejeição do enxerto é mais elevada do que nos enxertos lamelares e o tempo de
recuperação e os erros refrativos são consideravelmente superiores. No transplante lamelar, as camadas são
selecionadas e transplantadas, podendo incluir a camada mais profunda
(posterior), o endotélio (transplante
de córnea lamelar posterior). Uma versão comum desse procedimento
é o de Descemet Stripping Automated endotelial Keratoplasty (DSAEK). Se o
transplante incluir as camadas mais próximas da superfície (anterior),
designa-se por transplante de
córnea lamelar anterior.
Habitualmente,
o transplante lamelar é mais adequado do que o transplante penetrante completo,
quando o processo de doença se limita apenas a uma porção da córnea.
Os riscos e complicações na cirurgia de
transplante de córnea são semelhantes aos de outros procedimentos intraoculares.
Na cirurgia de córnea, há também riscos de infeção, minimizados através de profilaxia
antibiótica (usando colírios antibióticos, mesmo quando não há infeção).
Nesta
cirurgia, os riscos não se ficam por aqui, podendo ocorrer outras complicações graves,
nomeadamente, descolamento da retina, hemorragia da coroide, infeção
endocular (endoftalmite), cataratas secundárias, glaucoma secundário, sinéquias
da íris, irregularidade pupilar, edema macular cistoide, etc.
Após o transplante da córnea, em alguns
casos, o sistema imunológico pode atacar a córnea. É a rejeição (em cerca de 20% dos casos), que pode necessitar de
tratamento médico ou de outro transplante de córnea. Os sinais e sintomas de rejeição de córnea podem
incluir perda da visão, dor nos olhos, olhos vermelhos e sensibilidade à
luz (fotofobia);
Na cirurgia de transplante de córnea, há cuidados no pós-operatório que devem ser assegurados, para minimizar os riscos, durante o período de recuperação: tratamento médico adequado, nomeadamente, medicamentos prescritos pelo oftalmologista, como colírios e, ocasionalmente, medicamentos orais, imediatamente após o transplante de córnea; uso de oclusor; repouso; retoma lenta do trabalho, até poder realizar as atividades normais, incluindo o exercício físico; de exames oftalmológicos, para detetar complicações no primeiro ano após o transplante; e exame anual.
A visão pode, inicialmente, ser pior do que antes da cirurgia, dependendo da forma como o olho se ajusta à nova córnea. Pode levar vários meses até a acuidade visual melhorar. Podem surgir erros refrativos após a cirurgia de transplante de córnea, como miopia e astigmatismo.
Os erros
refrativos, como miopia e astigmatismo, podem ser corrigidos com óculos, lentes
de contacto ou, em alguns casos, a realização de cirurgia ocular a laser.
A cirurgia do transplante de córnea pode
ser necessária, se os óculos ou as lentes de contacto não forem capazes de
restaurar a visão ou se o edema doloroso não puder ser aliviado pelo recurso a
medicamentos ou a lentes de contacto. Certas situações podem afetar a
transparência da córnea e colocar o doente em maior risco. Entre essas
situações, algumas das mais comuns: queratocone e outras distrofias da córnea;
cicatrizes de infeções, como a herpes oculares ou ceratite fúngica; condições
hereditárias como a distrofia de Fuchs (lenta, que atinge ambos os olhos);
complicações raras da cirurgia LASIK (cirurgia refrativa por laser); queimaduras químicas da córnea ou danos causados
por uma lesão no olho; edema excessivo da córnea; rejeição do enxerto após um
transplante anterior; e descompensação do endotélio da córnea, devido a
complicações da cirurgia da catarata.
***
A ciência avança, as doenças abundam, os riscos minimizam-se,
os pacientes esperam e têm esperança.
2024.07.01
– Louro de Carvalho
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