sexta-feira, 5 de julho de 2024

Isabel, a mulher diplomata, “a Rainha Santa da Concórdia e da Paz”

 

Celebrou-se, a 4 de julho, a memória litúrgica – em Coimbra, festa, pois trata-se da padroeira da Cidade – da Rainha Santa Isabel, a mulher diplomata e santa.

Nasceu no Reino de Aragão, a 4 de janeiro de 1271. Entre os antepassados, contam-se santos, reis e imperadores, sobressaindo a tia materna, Isabel da Hungria e da Turíngia. Era filha de Pedro III, rei de Aragão (reinante entre 1276 e 1285), e de Constança da Sicília. O pai, ainda jovem quando ela nasceu, não querendo ocupar-se da sua educação, confiou-a ao cuidado do avô, Tiago I, que se convertera ao cristianismo e tinha vida de fé. Sorte da futura rainha, que recebeu formação perfeita e digna no seguimento de Cristo! Tinha 12 anos quando foi pedida em casamento por três príncipes. O pai escolheu Dinis, herdeiro do trono português. Este casamento significou, para Isabel, uma coroa de rainha e uma cruz de martírio, que levou com humildade e galhardia.

Foi uma das rainhas mais belas das cortes de Espanha e de Portugal, com forte e doce personalidade, muito inteligente, culta e diplomata. Deu ao rei dois filhos: Constância, que seria, rainha de Castela, e Afonso, herdeiro do trono de Portugal. Porém, eram inúmeras as aventuras extraconjugais do rei, conhecidas e comentadas, a humilhar a bondosa rainha, que nunca se manifestava sobre a situação, de nada reclamava e tudo perdoava, mantendo-se fiel ao casamento em Deus, que fizera. Criou os filhos, inclusive os do rei fora do casamento, nos preceitos cristãos. E perdeu cedo a filha e o genro, criando ela mesma o neto Afonso, futuro monarca de Castela.

Não bastassem essas amarguras familiares, foi vítima das desavenças políticas do marido com parentes e, sobretudo, do comportamento do seu filho Afonso, que tinha combativa personalidade. Foi caluniada por um cortesão que dela não conseguiu aproximar-se. A rainha muito sofreu e muito lutou, até provar inocência, de forma incontestável.

A sua atuação nas disputas internas das cortes de Portugal e dos reinos de Espanha, nos séculos XIII e XIV, permanece na História das cortes como a única voz a pregar a concórdia e a conseguir a pacificação entre tantos desejosos de poder, ao mesmo tempo que ocupava o tempo a ajudar a mitigar as desgraças do povo pobre e as dores dos enfermos abandonados, com a caridade da sua esmola e da sua piedade cristã. Refundou o Mosteiro de Santa Clara de Coimbra para as jovens piedosas da corte, o mosteiro cisterciense de Almoste e o santuário do Espírito Santo, em Alenquer. Fundou, em Santarém, o Hospital dos Inocentes, para crianças cujas mães as iriam abandonar. Com as suas posses, sustentava asilos e creches, hospitais para idosos e doentes, tratando, pessoalmente, dos leprosos. Foi perfeito símbolo de solidariedade, no seu tempo.

Quando o marido morreu, em 1335, Isabel recolheu-se ao mosteiro das clarissas de Coimbra, onde ingressou na Ordem Terceira Franciscana. Antes, porém, abdicou do seu título real, indo depor a coroa no altar de São Tiago de Compostela. Doou toda a imensa fortuna pessoal para as obras de caridade. Viveu o resto da vida em pobreza voluntária, na oração, na piedade e na mortificação, atendendo os pobres e doentes, marginalizados. E morreu, em Estremoz, a 4 de julho de 1336. Faz agora, 688 anos. Venerada como santa, foi sepultada no Mosteiro de Coimbra, beatificada pelo Papa Leão X, em 1516, e canonizada pelo papa Urbano VIII, em 1665, é invocada como “a Rainha Santa da Concórdia e da Paz”.

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As Festas da Cidade de Coimbra e da Rainha Santa começaram a 4 de julho, Dia da Cidade. O evento, que surgiu com novo formato e com uma programação que integra 177 iniciativas, entre os dias quatro e 14, tem como mote “celebrar e homenagear Coimbra”. Quatro palcos, nove concertos, múltiplos eventos culturais e desportivos, um festival de música de rua, uma serenata, duas sessões de fogo-de-artifício e duas procissões religiosas são algumas das propostas.

Porém, de Coimbra e de festas haverá quem fale. Prefiro deter-me na leitura do artigo de João Sabido Costa, Ponto SJ, sob o título “Rainha Santa Isabel, mulher, mãe, política e diplomata?”.

Considera que a sua santidade dá “sinal inequívoco da força da sua personalidade, ligada ou não à sua intervenção em atos públicos ou ao desempenho desse tipo de funções”. E evoca os 50 anos da integração legal das mulheres na carreira diplomática portuguesa, pelo Decreto-Lei 308/1974, de 6 de julho, que dá altera os artigos 25.º e 81.º, respetivamente do Decreto-Lei n.º 47331, de 28 de novembro, e do Decreto n.º 47478, de 31 de dezembro, que restringiam a admissão a cidadãos de origem portuguesa e do sexo masculino, ficando esta segunda condição abolida.   

Assim, o articulista vê a presença e a ação de Isabel a mudar a forma e o conteúdo da diplomacia, vincando “a capacidade de atuação de uma mulher concreta, mesmo que quase singularizada na sua época, em prol do interesse público e do relacionamento entre os povos”. E, sem faltar à verdade, evidencia o facto de a Rainha Santa sobressair como a figura da mulher, “com maneiras de ser muito próprias, desde logo propícias à diplomacia”.

De facto, o diplomata tem a consciência da necessidade da aproximação aos outros, da busca de vias de pensamento e de diálogo, que possibilitem que não resulte de um diferendo a vitória absoluta de um sobre os interesses de outros. Aliás, há caraterísticas femininas que, diferentes das do homem, contribuem para a diplomacia: grande realismo e noção de que há, no diálogo diplomático, margem de aplicação mais alargada do que se julga, não se reduzindo à “mesa das negociações” com interlocutores estrangeiros.

Efetivamente, mais difícil do que a “diplomacia externa” pode ser a “interna”, a levada a cabo no próprio Estado, permitindo manter a máquina oleada e harmoniosa, cuja atuação se possa refletir nos resultados internacionais. A boa estratégia diplomática é, por vezes, embotada por conflitos internos ou pela falta de compreensão e de aceitação do público, pelo que saber construir ‘pontes’ se mostra indispensável para boa atuação no exterior. Por outro lado, o diplomata deve sê-lo 24 horas por dia, pois uma perda de imagem pode repercutir-se, negativamente, na sua proficiência.

Aristóteles dizia que à mulher, tendo como o homem, capacidade deliberativa, falta a volitiva. Contudo, a mulher, por ser mais realista, torna-se mais prudente e não age com base na simples reflexão – tendencialmente provisória, mesmo que racional. São aspetos que falham no homem, onde a necessidade de agir se pode prender mais à imagem que sente como importante dar de si mesmo do que à real convicção. E a vida de Santa Isabel, não correspondendo ao padrão comum da mulher do seu tempo, não é singular como figura pública, conselheira política e negociadora durante esse período peninsular. Outros casos ocorreram e que a História regista.

Isabel nasceu em 1271, mas não se sabe, exatamente, se em Zaragoza ou em Barcelona. Ela e D. Dinis eram tetranetos do Imperador do Sacro Império, Frederico Barba Ruiva, de Hohenstaufen, morto na Terra Santa e avô de Frederico II, o último da linhagem Staufen como dinastia imperial.

Casada, em 1281, recebeu do pai relevante dote, nomeadamente, em dinheiro e em joias e, do marido, diversas terras – Óbidos, Abrantes, Porto de Mós, a que se somaram, nomeadamente, Trancoso, Sintra, Vila Real, Leiria, Arruda, Torres Novas e Alenquer, bem como outras prebendas e direitos. A magnitude do património exigiu-lhe grande elenco de aias, de camareiras, de chanceleres, de ouvidores, de confessores, de médicos, de tesoureiros e de notários. Teve, pois, destacado posicionamento público que a fez entender que o estatuto de Rainha não podia ser passivo. Nunca se aliviaria do encargo da Coroa, sendo-lhe solicitada presença pública, traduzível na assunção de responsabilidades políticas ou diplomáticas. Nesse sentido, em 1291, D. Dinis nomeou-a sua primeira executora testamentária: encabeçaria um conselho de regência, em caso da sua morte. Em 1298, nomeou-a tutora dos filhos bastardos. Porém, juridicamente, o seu património era público e adstrito a fins de interesse do Estado. Apesar de doado, era res publica.

A simbologia do Milagre das Rosas, de Santa Isabel, em Portugal, e da sua Tia Isabel, na Turíngia, para ocultar a ajuda aos carenciados, talvez se relacione com o entendimento do valor público da assistência social, justificando aí gasto do património. Isabel da Hungria, após ter enviuvado, foi afastada dos seus bens pelo cunhado, Henrique Raspe, para evitar a delapidação do património. No caso de Isabel de Portugal, tornar-se-ia mais compreensível a oposição do Rei aos gastos com os pobres. Eram bens com estatuto público.

D. Dinis, nascido a 9 de outubro de 1261, subiu ao trono em 1279, com cerca de 17 anos, herdando o reino estabilizado, mas abrangido por interdito papal, do tempo do pai, D. Afonso III. O casamento de D. Dinis com Isabel terá resultado de cálculo estratégico-diplomático que excluía a aliança de Portugal com Navarra, cuja rainha casara com o herdeiro de França, e com Castela, que arriscava ilegalidade canónica pela proximidade de parentesco dos noivos.

O papel político e diplomático da Rainha Santa Isabel evidenciou-se logo no conflito entre D. Dinis e o irmão Afonso. Os conflitos régios não são de estranhar. À época, senhorios e linhagens chocavam-se, disputando as pretensões locais dos parentes do rei, tão próximos. Em Portugal, país pequeno, tais disputas tendiam a desenvolver-se na Casa Real. E Isabel percebeu os manejos do Infante D. Afonso e tornou-se relevante o sentimento da Rainha em prol da unidade nacional, da legitimidade do Rei como chefe de Estado e da Paz interna.

Noutro momento, destaca-se a intervenção abonatória junto do seu irmão de Aragão, na relação entre Portugal com o seu país de origem, a nível bilateral e no equilíbrio peninsular. Por exemplo, em 1303, Isabel interveio junto de Jaime II para a libertação de corsários portugueses cujo barco fora apreendido em Aragão. Por outro lado, contribuiu para conseguir, para o marido, durante certo período, estatuto de relevo como interlocutor diplomático, do Reino de Aragão e na política peninsular. Já na crise entre Afonso X de Castela – que levou à sua deposição, em 1282 – e o filho Sancho, na qual o Rei de Portugal favorecera o futuro Sancho IV, o Rei de Aragão pedira a D. Dinis colaboração para o entendimento entre os dois, mostrando o potencial da via mediadora.

No conflito desencadeado pelo apoio de Jaime II de Aragão, irmão da Rainha Santa Isabel, à candidatura à Coroa de Castela de Afonso de Lacerda, em 1295, por morte de Sancho IV e na menoridade do novo Rei, Fernando IV, D. Dinis apoiou os direitos reais do Infante João, tio de Fernando, invocando contra o Rei de Castela o alegado incumprimento do Tratado luso-castelhano de Castelo Rodrigo, celebrado em 1291.

Também Isabel possibilitou a participação destacada de D. Dinis nas negociações entre Aragão e Castela, sobre o domínio do Reino muçulmano de Granada, definidas, em 1308, pelo Tratado de Alcalá de Henares. Embora à custa de território muçulmano, visava-se evitar uma guerra, pela sua disputa, entre Aragão e Castela. Contudo, das ações militares conjuntas empreendidas, com apoio português, na base do Tratado – ataque em duas frentes contra Granada, reino vassalo de Castela até 1284, prevendo-se que Aragão ficasse com Almeria e Castela com Gibraltar e Algeciras – só resultou a conquista de Gibraltar, em 1309.

Novamente, no plano interno, a rebelião de D. Afonso contra o pai, iniciada em 1319, marcou bastante a Rainha, obrigando-a a intervir. Porém, o sentido de justiça levou-a a discordar do filho, nas suas queixas (para ela, imponderadas), contra Afonso Sanches, filho natural de D. Dinis. Na dúvida sobre a sua imparcialidade, o Rei exilou a esposa em Alenquer, o que ela aceitou, com gestos apaziguadores para os que o lamentavam. Porém, voltou a interferir no conflito entre pai e filho, em Alvalade, em 1323, embora a paz só tenha sido alcançada em 1324.

Santa Isabel é uma das mais conhecidas rainhas de Portugal. Denominada, entre nós, Santa Isabel de Portugal (nascida em Aragão), lembra como nos opomos à denominação de Santo António (de Lisboa) como Santo António de Pádua. Por outro lado, a sua fama de santidade (e posteriores beatificação e canonização) – como a de Isabel da Hungria – contribuíram para o apagamento de outras vertentes da sua vida.  Assim, a sua intervenção política e diplomática não é associada, geralmente, ao reflexo das virtudes que a levaram à canonização. Tal não é o caso, por exemplo, da fama de esmoleira e de protetora dos pobres, mais apresentada como causa da sua fama de santidade – embora os valores públicos por ela prosseguidos fossem os da Paz e Concórdia.

Porém, a sua santidade dá sinal inequívoco da força da sua personalidade, ligada ou não à sua intervenção em atos públicos. Nesse desempenho não esteve, nem estava sozinha entre os seus pares, nomeadamente de Castela, embora tenha sido excecional no modo de proceder.

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O questionamento e o realce do papel da mulher na História do Mundo têm conhecido um desenvolvimento acelerado nos tempos recentes, num processo de debate e reivindicação longe de terminado. E Santa Isabel é um exemplo do que pode a determinação feminina, nos campos da paz, da promoção da igualdade, da vivência da fraternidade e da implantação da justiça social.

2024.07.04 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Malefícios dos nanoplásticos e dos microplásticos na saúde humana e ambiental

 

Uma equipa de cientistas da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos da América (USA), utilizando tecnologias inovadoras, concluiu, em janeiro deste ano, que é 100 vezes maior do que o estimado, até agora, a quantidade de nanoplásticos presente no Meio Ambiente. Assim, por exemplo, um litro de água engarrafada apresenta, em média, cerca de 240 mil fragmentos de plástico, invisíveis a olho nu.

Os nanoplásticos são partículas de plástico com tamanho entre um e mil nanómetros, menores do que os microplásticos e também produzidas a partir da fabricação e degradação de objetos de plástico. E os microplásticos, como o nome sugere, são pequenas partículas de plástico. Estes tipos de material são dos principais poluentes dos oceanos. Para, alguns pesquisadores, o tamanho máximo dos microplásticos é de um milímetro, enquanto, para outros, é de cinco milímetros.

Uma célula de alga pode ser até mil vezes maior do que uma partícula de nanoplástico. Assim, os nanoplásticos minúsculas partículas de plástico que se foram degradando, a ponto de ficarem cada vez menores. São tão pequenos que podem atravessar tecidos de diferentes órgãos e chegar à corrente sanguínea. E, uma vez no sangue, podem ser transportados para outras partes do corpo.

Não são claras as potenciais consequências dos nanoplásticos na saúde. Porém, os cientistas põem-nos de sobreaviso: “Quer os vejamos quer não, estão lá. Portanto, é melhor sabermos em que quantidade e o que são. Mas eu própria, como cientista, gostaria de ter mais dados em termos do estudo toxicológico, para realmente saber quão prejudiciais são para o meu próprio corpo”, explica a investigadora Naixin Qian, coautora do referido estudo.

Entretanto, Zissis Samaras, diretor do Laboratório de Termodinâmica Aplicada da Universidade Aristóteles, de Salónica, é o coordenador da “Down To Tem” (“Baixar para 10”), um projeto de investigação com fundos europeus, com o objetivo de desenvolver novas ferramentas de medida das partículas expelidas pelos veículos motorizados com 10 nanómetros.

As partículas emitidas pelos motores de combustão poluem a atmosfera com substâncias venenosas e são uma das principais causas da má qualidade do ar que respiramos. A cada ano, só na União Europeia (UE), estima-se que meio milhão de mortes prematuras são provocadas por este tipo de poluição (dez vezes mais do que o número de fatalidades em acidentes de viação”. A legislação da UE não regula as emissões pelos motores, a gasóleo ou gasolina, de partículas 23 mil milhões de vezes mais pequenas do que o metro (23 nanómetros), nanopartículas que representam perigo para a saúde humana e não só. Assim, o sucesso do projeto ajudará os fabricantes a desenvolver motores com uma considerável redução na emissão de nanopartículas.

Samaras reconhece que “os carros têm vindo a ser limpos” e fala de “um longo caminho, desde o início dos anos 80, até termos agora emissões de partículas extremamente baixas”. Em alguns casos, as emissões são em concentrações mais baixas do que o ar atmosférico. Contudo, persistem problemas, a maioria associados a partículas tão pequenas que não são abrangidas pelas atuais regulamentações e que podem ser quase tão pequenas como o gás. E estas partículas podem afetar a saúde humana, ao serem inaladas e penetrarem muito fundo no sistema, provocando inúmeros problemas respiratórios, assim como permitindo considerável área outras substâncias nocivas serem arrastadas e absorvidas pelos pulmões.

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Os microplásticos, espalhados de tal modo que é difícil localizá-los, resultam da decomposição de plásticos maiores e estão associados a ataques cardíacos, a problemas de fertilidade, a cancro e à redução de espermatozoides. De acordo com um estudo canadiano de 2019, os seres humanos consomem até 52 mil partículas de microplástico por ano. E, segundo a organização ambiental alemã CleanHub, em junho deste ano, aumentou o interesse pelos microplásticos, com as pesquisas a atingirem uma pontuação recorde de 100, no Google Trends. Com efeito, um estudo da Universidade do Novo México despertou o interesse global, com muitas pessoas a procurarem informações sobre como os microplásticos entram no corpo e as formas de os reduzir ou eliminar. Embora omnipresentes no Meio Ambiente, há inúmeras fontes que contribuem para a sua presença e alternativas para as evitar – a começar pela cozinha.

Seguem-se exemplos de objetos que libertam microplásticos.

De acordo com um estudo da American Chemical Society (ACS), as tábuas de cortar podem expor os seres humanos a até 79,4 milhões de microplásticos de polipropileno (um tipo de polímero plástico) por ano. Quer dizer que a tábua de cortar de plástico pode aumentar a transferência de microplásticos para os alimentos. Mas há alternativa económica: a tábua de cortar de vidro temperado, fácil de limpar e, normalmente, isenta de microplásticos. E algumas marcas oferecem tábuas de cortar sem plástico, feitas de fibras de papel duráveis.

Os produtos de plástico, rotulados como “seguros para micro-ondas” libertam significativas quantidades de microplásticos nos alimentos, quando aquecidos. Um estudo de investigadores da Universidade de Nebraska-Lincoln, em 2023, encontrou até quatro milhões de microplásticos por centímetro quadrado, em certos alimentos para bebés embalados em plástico “seguros para micro-ondas”. Ao microscópio, verificou-se que tais partículas matavam até 75% das células renais em cultura, o que suscita preocupações, quanto ao impacto na saúde humana.

Assim, são de evitar produtos embalados com ftalatos, estireno e bisfenóis – químicos associados a vários plásticos, sugere um documento da Academia Americana de Pediatria.

Tal como os microplásticos se encontram na água engarrafada, os tabuleiros de plástico para cubos de gelo podem causar contaminação. Embora haja menos estudos sobre o assunto, o congelamento do plástico pode causar a libertação de microplásticos para a água, semelhante aos plásticos aquecidos, de acordo com um especialista entrevistado pela HealthCentral.

Nos últimos anos, tornaram-se populares opções mais sustentáveis e saudáveis: os tabuleiros para cubos de gelo em aço inoxidável ou em silicone, que melhoram a estética das bebidas e arrefecem mais depressa, o que significa que congelam mais rapidamente.

Embora os copos de papel sejam mais amigos do ambiente, contribuem para a poluição por plásticos, pois requerem uma camada de vedante composta por até 10% de polietileno de alta densidade (HDPE), para evitar fugas de líquidos. A sua reciclagem é problemática, devido à necessidade de separar a camada de PEAD do papel. E o uso de copos de papel para bebidas quentes liberta produtos químicos, incluindo flúor, cloreto, sulfato e nitrato, como salientado por um estudo de 2021 publicado no Journal of Hazardous Materials. Assim, a escolha de um frasco reutilizável de aço inoxidável beneficia o ambiente e reduz a exposição a microplásticos.

Também muitas saquetas de chá são feitas com plástico de polipropileno não sustentável e as saquetas de chá de papel podem conter vestígios de plástico no vedante. Isto significa que, muitas vezes, não são biodegradáveis e contribuem para a contaminação por microplásticos.

Em 2023, uma investigação publicada pela Dow University oh Health Sciences levantou preocupações sobre a forma como a água quente, para preparar chá, pode libertar milhões de microplásticos destes sacos, revelando que uma chávena de chá pode conter até 3,1 mil milhões de nanoplásticos. As saquetas de chá podem conter outras substâncias nocivas, incluindo compostos de flúor, arsénico, sais de rádio, alumínio, cobre, chumbo, mercúrio, cádmio, bário e nitratos. Porém, as folhas de chá soltas ganham popularidade e há alternativas sustentáveis para preparar chá, como o uso de bule de ferro fundido ou o coador de metal. E a Plastic Pollution Coalition recomenda saquetas de chá de algodão ou a passagem do chá por linho orgânico.

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Objetos tão úteis, como lentes de contacto, podem ser nocivos. Num estudo publicado pela American Chemical Society, investigadores estimam que as lentes, usadas durante 10 horas por dia, podem libertar mais de 90 mil partículas de microplásticos por ano, derramando-as para os olhos. Ora, em todo o Mundo, até 140 milhões de pessoas usam lentes de contacto, o aliado visual que pode ser fonte de poluição plástica. Estas partículas permanecem no sangue humano, alojam-se nos órgãos e poluem os fetos. Pesquisas recentes sugerem que podem induzir o processo que desencadeia mutações cancerígenas.

Só no Reino Unido, por ano, mais de 750 milhões de lentes de contacto são atiradas para os ralos dos lavatórios ou aterros. Uma vez nos aterros, podem levar até 500 anos para se decompor, libertando, potencialmente, poluentes para o solo e para a água. Dos 10 mil milhões de toneladas de plástico criados, uns seis mil milhões encontram-se em aterros sanitários ou poluem o Meio Ambiente. Isso tem impacto devastador na vida selvagem – mais de 90% das aves marinhas do Mundo têm plástico nas entranhas.

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A poluição por microplásticos é problema que requer muita atenção. Os objetos do quotidiano – desde as roupas até aos carros – estão a libertar pequenos fragmentos de plástico.

Segundo um relatório de 2020, do Pew Charitable Trust, 78% dos microplásticos presentes nos oceanos provêm de pneus, fabricados com cerca de 24% de borracha sintética – variante do plástico fabricada com subprodutos do petróleo – que se decompõe, à medida que os veículos se deslocam. E estes anéis de borracha não são apenas microplásticos em movimento. Uma investigação da Yale Environment 360 mostra que há preocupação científica crescente com “o cocktail químico” que os compõe e que inclui metais pesados como o cobre, o chumbo e o zinco.

A morte em massa de salmões nos cursos de água da costa Oeste dos EUA, há duas décadas, foi um dos primeiros sinais dos perigos ambientais dos pneus. Em 2020, os investigadores atribuíram as mortes ao produto químico chamado 6PPD, que é adicionado aos pneus, para evitar que rachem. Quando exposto ao ozono troposférico, o 6PPD transforma-se em outros químicos – incluindo um composto que se descobriu ser tóxico para várias espécies de peixes.

No total, a borracha dos pneus contém mais de 400 químicos e compostos, muitos deles cancerígenos. A investigação apenas começa a mostrar a amplitude dos riscos associados ao pó dos pneus, como refere o Yale Environment 360. Porém, as estatísticas chocam. Todos os anos, são fabricados cerca de dois mil milhões de pneus no Mundo – o suficiente para chegar à Lua, se fossem empilhados, de acordo com a empresa britânica Emissions Analytics, segundo a qual os quatro pneus do automóvel emitem um trilião de partículas ultrafinas por quilómetro. São partículas tão pequenas que podem passar através do tecido pulmonar para a corrente sanguínea e atravessar a barreira hemato-encefálica, com implicações preocupantes para a saúde.

A poluição causada pelo pó dos pneus rivaliza com as emissões dos tubos de escape em alguns casos. Um estudo mostra que as emissões de PM 2,5 e PM 10 provenientes dos pneus e dos travões excedem, em muito, a massa das emissões provenientes dos tubos de escape na Califórnia, por exemplo. E um estudo recente do Imperial College de Londres afirma que a redução das partículas de desgaste dos pneus (TWP) é tão importante como a redução das emissões de escape.

A solução do problema requer a combinação da investigação e da vontade de regulamentar. Do lado da ecoinovação, os investigadores experimentaram os dentes-de-leão – que produzem uma forma de borracha – e óleo de soja, para aumentar a componente de borracha natural dos pneus.

A empresa alemã Continental Tire Company está a avançar com esta solução: fabricar pneus de bicicleta, a partir de raízes de dente-de-leão. Emitem menos 25% de compostos cancerígenos, mas, segundo testes efetuados pela Emissions Analytics, necessitam de aditivos problemáticos. E, no Reino Unido, a The Tyre Collective foi pioneira na criação de  um dispositivo que é fixado em cada pneu. Utiliza a eletrostática e o fluxo de ar de uma roda giratória, para recolher o pó dos pneus, à medida que é produzido. Recolhidas, as partículas podem ser transformadas num tipo diferente de borracha com uma variedade de aplicações, incluindo pneus novos.

Na UE, regras “Euro 7”, a partir de 2025, serão as primeiras normas de emissões do Mundo a pôr limites às emissões de partículas dos travões e às emissões de microplásticos dos pneus. Estas normas aplicar-se-ão aos carros elétricos, que produzem mais emissões dos pneus, devido ao seu maior peso. Porém, a indústria está a tomar nota desta medida. O Projeto da Indústria de Pneus é composto por 10 dos principais fabricantes, cujo objetivo é “desenvolver uma abordagem holística, para compreender e promover ações de atenuação” da poluição dos pneus.

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O progresso, o desleixo e o comodismo estão a multiplicar os mais diversificados instrumentos de poluição, os quais, escondidos na pequenez do seu tamanho, causam, discretamente, inúmeros e enormes danos à saúde humana e ao Meio Ambiente. Têm de estar atentos os cientistas, os decisores e, obviamente, todos os cidadãos. A saúde é o bem e o problema de todos!

2024.07.04 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 3 de julho de 2024

O apóstolo São Tomé é o modelo de quem vê o Senhor Deus em Jesus

 

Celebrou-se, a 3 de julho, a Festa de São Tomé, católica e popularmente badalado por ter duvidado da Ressurreição de Cristo, até que o Senhor apareceu, mostrando-lhe as chagas, o que o levou a fazer a profissão de fé orante “Meu Senhor e meu Deus”, repetida muitas vezes, ainda nos dias de hoje, e que, mais tarde, veio a morrer como um grande mártir.

São Tomé era judeu, natural da Galileia e um pescador. Jesus escolheu-o como um dos doze Apóstolos e foi a ele que o Senhor fez uma revelação especial na Última Ceia. “Disse-lhe Tomé: ‘Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?’ Jesus respondeu-lhe: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim’.” (Jo 14,5-6).

Tomé pregou na Pérsia (Irão) e na região envolvente, Índia e Etiópia. A tradição diz que foi vendido como escravo para o rei indiano Gundafar, que procurava um arquiteto para construir o seu palácio e sabia que o santo era conhecedor desta técnica. Pregou para a filha do rei sobre as vantagens da castidade, pelo que foi aprisionado, mas escapou milagrosamente da prisão. Depois, morreu como mártir na costa de Coromandel (em Madrás, na Índia). Ali foi descoberto o seu corpo com marcas de lanças. Séculos depois, os seus ossos foram levados para Edessa e, atualmente, encontram-se na Catedral de Ortona, na Itália.

Iconograficamente, é representado com lança ou com cinturão, porque se diz que, depois da Assunção de Maria, foi ao sepulcro dela e pegou no cinturão da Virgem que estava lá e que é venerado na Catedral de Prato (Itália).

No evangelho de João (Jo 20,19-29), Jesus ressuscitado apareceu aos discípulos, quando as portas estavam trancadas, pôs-Se no meio deles e disse-lhes: “A paz convosco.” Soprou sobre eles, fê-los apóstolos, concedeu-lhes o Espírito Santo e deu-lhes o poder do perdão dos pecados. Nesta ocasião, Tomé não estava presente e, quando os companheiros lhe contaram que tinham visto o Senhor, duvidou e porfiou. “Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e não puser o meu dedo no lugar dos cravos, e não introduzir a minha mão no seu lado, não acreditarei.”

Oito dias depois, quando todos estavam, novamente, no mesmo lugar, inclusive Tomé, Jesus voltou a aparecer-lhes e repetiu a saudação: “A paz convosco”. Depois disse a Tomé: “Introduz aqui o teu dedo e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado. Não sejas incrédulo, mas homem de fé”. Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” Jesus disse: “Creste, porque me viste. Felizes aqueles que creem sem ter visto.”

De forma desviante, o apóstolo ficou para a História como o homem da dúvida, quando pode ter sido o homem da coragem, ao dizer o que todos pensavam e sentiam e não ousavam manifestar.

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A este respeito, uma homilia do Papa São Gregório Magno, no século VI, põe a claro o ocorrido.

Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio” (Jo 20,24). Era o único discípulo ausente. De volta, ouviu o que acontecera, mas negou-se a crer. Veio de novo o Senhor e mostrou-lhe o lado, para que o pudesse palpar; “mostrou-lhe as mãos e, mostrando-lhe também a cicatriz das suas chagas, curou a chaga da falta de fé”. Todavia, “não aconteceu por acaso que aquele discípulo estivesse ausente na ocasião, que, ao voltar, ouvisse contar, que, ao ouvir, duvidasse, que, ao duvidar, palpasse e que, ao palpar, acreditasse”.

Tudo aconteceu por disposição da providência divina. “A clemência do alto agiu de modo admirável, a fim de que, ao palpar as chagas do corpo do seu mestre, o discípulo que duvidara curasse as chagas da nossa falta de fé”. A sua incredulidade “foi mais proveitosa para a nossa fé do que a fé dos discípulos que acreditaram logo”, porque, “enquanto ele é reconduzido à fé, porque pôde palpar, o nosso espírito, pondo de lado toda a dúvida, confirma-se na fé”. Assim, o discípulo que duvidou e palpou “tornou-se testemunha da verdade da ressurreição”.

 Tomé palpou e exclamou: “Meu Senhor e meu Deus!” Jesus disse-lhe: “Acreditaste, porque me viste?” (Jo 20,28-29). Ora, como diz Paulo: “A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem (Heb 11,1). De facto, as coisas que podemos ver não são objeto de fé, mas conhecimento direto. Então, apesar de Tomé ter visto e palpado, o Senhor disse-lhe: “Acreditaste, porque me viste.” Ora, ele viu uma coisa e acreditou noutra. A divindade não podia ser vista por um mortal. Por isso, viu a humanidade de Jesus e proclamou a fé na sua divindade, exclamando: “Meu Senhor e meu Deus!” Assim, tendo visto, acreditou. Vendo um verdadeiro homem, proclamou que Ele é Deus, a quem não podia ver.

Como diz Gregório Magno, alegra-nos imensamente o que vem a seguir: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (Jo 20,29). Este enunciado refere-se, especialmente, a nós, que “não vimos o Senhor na sua humanidade, mas o possuímos no nosso espírito”. É, pois, “a nós que se refere, desde que as obras acompanhem a nossa fé. Efetivamente, quem crê realiza, pelas suas ações, a fé que professa. Ao invés, dos que têm fé apenas de boca, diz Paulo: “Fazem profissão de conhecer a Deus, mas negam-No com a sua prática” (Tt 1,16). E Tiago Diz: “A fé, sem obras, é morta” (Tg 2,26).

 

O episódio da “dúvida” do apóstolo Tomé será, talvez, uma das histórias que mais chamam a atenção na Bíblia. Felizmente, como vimos, o Evangelho de João e alguns dos primeiros historiadores da Igreja forneceram informações adicionais sobre Tomé, o que ajuda a entender que essa história é apenas parte da sua experiência como apóstolo.

Alguns dias depois de Jesus ter escapado de um apedrejamento feroz, em Jerusalém, recebeu a notícia de que o seu amigo Lázaro estava muito doente. Lázaro morava em Betânia, muito perto de Jerusalém. Então, Jesus sentiu-se fortemente compelido a visitá-lo e sabia que era necessário um milagre em torno da morte de Lázaro, para mostrar a glória de Deus. Porém, os apóstolos ficaram horrorizados e tentaram desencorajar Jesus, aconselhando-O a voltar ao lugar onde quase havia sido morto. Tomé foi o único que acreditou e animou os outros a irem para Betânia com Jesus, embora isso significasse a morte para eles. “Vamos também nós, para morrermos com ele” (Jo 11,16).

Por alguma razão, Tomé não estava no Cenáculo, quando Jesus apareceu aos discípulos em toda a sua glória. Quando se reuniu com eles, contaram-lhe tudo o que havia acontecido, mas não o convenceram. E ele fez a sua famosa declaração sobre a necessidade de “colocar o dedo e a mão nas feridas de Jesus”, pois só assim acreditaria. Jesus apareceu, novamente, uma semana depois, e Tomé estava lá. Jesus ofereceu ao apóstolo a oportunidade de tocar nas suas feridas.

Depois disso, Tomé proclamou uma fé ardente em Jesus ressuscitado.

A maioria das tradições aponta que Tomé havia evangelizado na Índia, depois do Pentecostes. Ainda hoje, há uma comunidade devota de católicos na costa do Malabar, naquele país, que se autodenomina “os cristãos de São Tomé”. Afirmam que a sua comunidade começou através dos ensinamentos do apóstolo.

São Tomé pregou na Pérsia e em outros lugares próximos, assim como na Etiópia e na Índia. Acredita-se que tenha sido condenado à morte, devido às suas obras de evangelização neste último país. A sua memória celebra-se a 3 de julho. E é o santo padroeiro dos arquitetos, dos construtores, dos juízes, dos teólogos e das cidades de Prato, de Parma e de Urbino, na Itália.

Com o objetivo de imitar melhor a coragem de Tomé para permanecer próximo ao Senhor, apesar dos perigos que possam surgir, assim como para superar as dúvidas no coração, é possível passar nove dias em oração junto do apóstolo, lendo uma passagem bíblica diária de São Tomé.

Desta maneira, o apóstolo ajuda a aproximar o coração a Cristo: dia 1 – Mt 10,1-15 – Eleição dos Doze; dia 2 – Mc 3,13-19 – Escolha dos Doze; dia 3 – Lc 6,12-16 – Eleição dos Doze; dia 4 – Lc 8,22-25 – A tempestade acalmada; dia 5 – Jo 11,8-16 – Reação dos discípulos, face à decisão do Mestre de ir a Betânia; dia 6 – Jo 14,5-6 – Jesus, caminho para o Pai; dia 7 – Jo 20,24-29 – Encontro de Tomé com os companheiros, primeiro, com Jesus na presença dos outros, depois; dia 8 – Jo 21,1-14 Aparição na margem do Lago; e dia 9 – At 1,6-14 – Ascensão.

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São Tomé é o apóstolo a quem Cristo apareceu e encarregou de evangelizar a Índia. Certa vez, Jesus enviou um relâmpago milagroso aos doentes e o santo aproveitou para comunicar os doze graus das virtudes. A história é narrada na Legenda Áurea, livro sobre a história dos santos, escrito no século XIII, pelo arcebispo de Génova Jacopo de Varazze.

Um dia, São Tomé reuniu muitos pobres e colocou os doentes num lugar especial. Orou por eles e, quando os seus seguidores disseram “Amém”, um relâmpago luminoso brilhou nos céus durante cerca de meia hora. Todos se prostraram no chão, acreditando que tinham morrido, mas o apóstolo, permanecendo de pé, disse-lhes: “Levantai-vos. O Senhor, na forma de uma faísca, veio em vosso auxílio e curou-vos.” Os doentes levantaram-se e verificaram que estavam saudáveis. Então começaram a dar glória a Deus e ao seu enviado. Depois, São Tomé deu-lhes uma catequese sobre os doze graus na escala das virtudes.

O primeiro grau “consiste em acreditar que Deus existe e que é uno em essência e trino em pessoas”. Para que esse mistério se tornasse mais compreensível para eles, o santo deu-lhes vários exemplos, como o facto de uma cepa de videira ser constituída por três partes: ramos, folhas e frutos, mas que fazem uma só cepa. O segundo grau de virtude é receber o batismo. O terceiro é abster-se da fornicação. O quarto é não se deixar levar pela avareza. O quinto é frear a gula. O sexto é fazer penitência. O sétimo é perseverar em boas. O oitavo é praticar a hospitalidade. O novo é “procurar fazer em tudo a vontade de Deus”. O décimo é “evitar tudo o que Deus não quer que seja feito”. Os dois últimos são “fazer caridade, tanto com os amigos como com os inimigos” e “zelar vigilantemente para respeitar esses graus”.

Ao final da reflexão, o apóstolo batizou cerca de nove mil homens, as mulheres e as crianças.

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Do apóstolo Tomé, refere o Vatican News, o portal da Santa Sé: “Quando se fala de Tomé, começa-se de trás para frente: depois da Ressurreição, por não estar presente na aparição de Jesus aos Apóstolos, não acreditou no que lhe disseram. Porém, ninguém tem o direito de pensar que Tomé era pessoa tépida ou pecadora. Era só um homem cuja fé, profunda, devia ser posta à dura prova da vida, o que ele não escondia: expôs as suas dúvidas e fez a Jesus as perguntas que lhe brotavam do coração. Por exemplo, quando Jesus voltou a Betânia – onde o amigo Lázaro tinha falecido – os discípulos ficaram com medo, porque, na Judeia, o clima não era favorável. Ali, Tomé demonstrou não ter medo de nada, a ponto de dizer: ‘Vamos morrer com Ele.’

“Durante a Última Ceia, quando Cristo disse que ia preparar um lugar para todos na Casa do Pai, Tomé ficou desorientado. Por isso, perguntou ao Senhor para aonde ia e qual seria o caminho para se chegar lá. Então, Jesus respondeu: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a vida!”

“Assim, chegamos ao episódio da incredulidade de Tomé. Toda a comunidade dos Apóstolos estava abalada pela morte de Jesus e pelas violências que padeceu. Porém, ao ressuscitar, Jesus apareceu, imediatamente, aos discípulos, para os tranquilizar. Tomé não estava lá e não acreditou no que diziam. Talvez, por causa da sua teimosia inata ou por sentir de estar ausente, quis tocar as feridas dos cravos nas suas mãos e no seu peito. Afinal, era um homem como todos.

“Por isso, Jesus o satisfez, ao voltar oito dias depois. Assim, Tomé acreditou, imediatamente, a ponto de confessar: “Meu Senhor e meu Deus!”, como ninguém fizera. Por fim, Jesus fez uma promessa para toda a Humanidade, até ao fim dos tempos: “Felizes dos que acreditarem, sem terem visto.” Sabemos que Tomé não era muito instruído, mas compensava esta lacuna pelo imenso amor que sentia por Jesus.

“Segundo a tradição, o Apóstolo recebeu a missão de evangelizar a Síria e, depois, a cidade de Edessa, donde partiu para fundar a comunidade cristã na Babilónia, Mesopotâmia, lá permaneceu sete anos e dali embarcou para a Índia. De Muziris, onde havia comunidade judaica promissora, que se tornou cristã atravessou o país até chegar à China, sempre e só por amor ao Evangelho. Ao voltar à Índia, foi martirizado, transpassado por uma lança, na atual Chennai, a 3 de julho de 72.”

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Também com Tomé, nem tudo é como parece!

2024.07.03 – Louro de Carvalho

A luta contra a inflação não acabou e exige vigilância

 

É a grande ideia a reter do Fórum do BCE, areópago de discussão de política monetária, que decorreu em Sintra, de 1 a 3 de julho, sob a batuta de Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), com a presença de Roberto Campos Neto, governador do Banco Central do Brasil (BCB), e de Jerome Powell, presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos (FED).

Christine Lagarde, no discurso de abertura, afirmou que foi possível “encontrar um caminho na incerteza e [que] já chegámos longe na luta contra a inflação”, mas alertou que a luta “ainda não acabou”, sendo necessário continuar a vigilância. E, para frisar que o BCE enfrentou a incerteza, mas conseguiu avançar com o primeiro corte de juros, em junho, citou Alex Ferguson, antigo treinador de futebol, enquanto decorria o jogo da seleção de Portugal: “Por vezes, não tens a certeza, duvidas e tens de adivinhar e, às vezes, simplesmente sabes.”

Apesar de a inflação estar relativamente controlada, a presidente do BCE salientou que a trajetória da política monetária “travou o crescimento económico”, pelo que, “dada a magnitude do choque inflacionista, ainda não está garantida uma aterragem suave”, Ou seja, é possível evitar uma recessão ou uma grande deterioração do emprego, nomeadamente devido à resiliência que tem demonstrado o mercado de trabalho. Todavia, persistem fatores de incerteza quanto à inflação futura, sobretudo em termos de como evoluirá o nexo entre lucros, salários e produtividade, bem como no atinente à possibilidade de novos choques do lado da oferta afetarem a economia.

Assim, o BCE continua determinado em “seguir uma abordagem dependente dos dados e reunião a reunião, na tomada de decisões”, sem compromisso com futuros cortes das taxas diretoras, na sequência corte das taxas diretoras em 25 pontos-base decidido em junho (a próxima reunião está marcada para dia 18 de julho).

A presidente do BCE concluiu o discurso, citando Bobby Robson, futebolista e treinador – “os primeiros 90 minutos são os mais importantes –, para garantir: “Não descansaremos, até termos ganho o jogo e a inflação ter regressado a 2%.”

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A Zona Euro está “muito adiantada” no caminho de redução dos preços, devendo convergir para a meta oficial de inflação de 2% (está no “processo de desinflação”), mas a rota das reduções de taxas de juro tem de ser “avaliada e reavaliada constantemente”, “tem de ser um passo de cada vez”, declarou Christine Lagarde.

No painel de debate do segundo dia, que reuniu três banqueiros centrais – Christine Lagarde, Campos Neto e Jerome Powell – a líder do BCE declarou que, no concernente à Zona Euro, “estamos muito adiantados no processo de desinflação”. Ou seja, as pressões sobre os preços estão a reduzir-se, bem como as pressões de segunda ordem (salários e lucros das empresas, que deixaram de ser a ameaça mais grave e latente. Ainda assim, há várias incertezas quanto à inflação futura, em termos da evolução do nexo entre lucros, salários e produtividade. Em todo o caso, tudo considerado, foi esse avanço no processo de “desinflação” que deu “confiança” ao BCE para reduzir taxas de juro em 0,25 pontos percentuais (de níveis máximos históricos), no início de junho (com a taxa de depósito, a nova referência de taxa principal, a cair de 4% para 3,75%). Foi a primeira descida em quase dois anos de aumentos severos e repetidos.

A 2 de julho, o Eurostat revelou que a inflação da Zona Euro voltou cair ligeiramente de 2,6%, em maio, para 2,5%, em junho (variação homóloga). Compara com o máximo histórico da Zona Euro de 10,6%, em outubro de 2022. Expurgando as componentes de bens de energia e alimentares, também diminuiu, mas o nível continua elevado, fixou-se em 2,8% em junho.

No debate, Lagarde comentou o valor da inflação de junho, que classificou de “positivo” (desceu uma décima, face a maio), mas repetiu o que já vem dizendo, que o caminho até ao final deste ano, pelo menos, “vai ser acidentado”.

No entanto, mal falou no sucesso do processo de desinflação, conservou o registo “água na fervura” a que habituou a Zona Euro, dizendo que a descida de taxas de juro por parte do BCE “não é um processo linear nem tem um caminho pré-determinado, é um passo de cada vez”, um processo que “exige constantemente avaliações e reavaliações” de acordo com os novos dados que forem surgindo. Entretanto, reiterou que a inflação do euro vai “na direção certa” (ao invés do que sustenta o presidente da FED), desvalorizou a importância da inflação no setor dos serviços, referindo não ter sofrido grandes alterações e que o BCE “não precisa que a inflação dos serviços esteja em 2%”, para se sentir confiante em prosseguir a sua missão.

“Obviamente, não precisamos que a inflação nos serviços esteja em 2%, porque a inflação dos bens da indústria transformadora está abaixo dos 2% e […] isso levará a um equilíbrio entre bens e serviços”, atirou Lagarde, tendo em mente que a inflação dos bens industriais (sem energia), segundo o Eurostat, está nos 0,7%, abaixo dos 2%, desde janeiro deste ano. E acrescentou que “necessitamos de ver os lucros das empresas a absorver os aumentos salariais”, para haver maior tranquilidade e maiores certezas quando ao passo seguinte nos preços gerais da economia e, ato contínuo, nas taxas de juro.

Até agora, como explicou a líder do BCE, a 1 de julho, as pressões salariais, que chegaram a ser temidas como grande problema para domar a inflação, estão a ser acomodadas pelas empresas, pois os lucros destas são elevados e os salários reais (mesmo que subam) são relativamente baixos. Ou seja, a resiliência do mercado laboral advém da capacidade de as empresas “acumularem” força de trabalho (pessoas) que aceita ganhos salariais de poder de compra (ganhos reais) baixos, apesar do contexto agreste (taxas de juro e de custo de vida agravado, desde o início de 2022.

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Para Lagarde, a prioridade é a política orçamental – à custa dos salários baixos e, por conseguinte, da pobreza da maior parte das pessoas –, nomeadamente agora que já se concretizou a reforma do quadro orçamental “dentro do qual os estados-membros têm de operar e controlar a direção da dívida e garantir que se mantém sustentável”. Têm de o fazer com flexibilidade, com foco na produtividade e no crescimento, com o investimento que estes dois elementos postulam. E a presidente o BCE espera que, “operando dentro do quadro orçamental europeu, os países olhem para as mudanças estruturais que têm de continuar a fazer, para terem um conjunto de ferramentas” que permitam a melhoria da produtividade.

Por isso, o BCE está preocupado com as regras orçamentais que têm de ser respeitadas na União Europeia (UE) e com as reformas estruturais conducentes à melhoria da produtividade, que é a única forma de a UE se manter forte e prosperar. E um dos países com a situação orçamental mais preocupante é a França, por causa da crise política em curso; e, embora Lagarde se tenha escusado a comentar e este caso específico, admitiu que o BCE está atento, pois a instituição tem de estar atenta à estabilização dos mercados financeiros. “O BCE tem de fazer o que tem de fazer, o nosso mandato é a estabilidade dos preços e estamos atentos a isso, porque é parte do nosso trabalho”, garantiu Christine Lagarde, salientando que estas são as coisas que monitorizam.

Do lado dos Estados Unidos da América (EUA), o presidente da FED salientou que o país (na incerteza do futuro, devido às eleições que se avizinham) “está com um défice muito elevado” e que o nível de dívida pública “não é insustentável, mas a trajetória neste momento é”. “Devia ser um foco para a frente, pensar como voltamos a ter uma trajetória sustentável" para a dívida pública, alertou Jerome Powell.

Por seu turno, o governador do BCB, também alertou para os riscos da dívida pública elevada, apontando que o custo do serviço da dívida dos EUA, da UE e do Japão está a aumentar, tendo impacto no mercado. Segundo Campos Neto, “a dívida global é muito alta e vai começar a tirar liquidez dos mercados” e os “países de baixo rendimento já estão a sentir isto”. Com efeito, há várias “contas para pagar no futuro”: o custo da transição verde, o da fragmentação, o da pandemia nos países de baixo rendimento e a energia e inovação. Por isso, importa pensar como conseguir uma “trajetória estável da dívida”.

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A chefe máxima da autoridade monetária acentuou que “apenas cerca de 15% das aterragens suaves bem-sucedidas desde 1970 – isto é, em que se evitou recessão ou grande destruição de emprego – foram alcançadas na sequência de choques nos preços da energia”. Por isso, dadas as atuais circunstâncias, avisou que “não está garantida uma aterragem suave da economia” da Zona Euro, nem se pode excluir a ocorrência de novos choques externos sobre a inflação e perturbações na rota de descida das taxas de juro. E explicou como esta crise foi diferente de outras, no passado, pois tornou muito mais difícil medir o grau de enraizamento da inflação.

Ao mesmo tempo, apesar de ter iniciado a descida de taxas de juro, Lagarde advertiu que a economia pode estar a assimilar o aumento passado e muito forte das taxas de juro do BCE, ao mesmo tempo que não se pode colocar de parte um novo choque externo sobre os preços (do lado da oferta, como nova subida no custo da energia ou dos alimentos). Tal levaria o BCE a ter de ir mais devagar, na descida dos juros, ou a interromper o ritmo do alívio.

Perante a audiência de banqueiros centrais, de investidores e muitos economistas e investigadores académicos, a presidente do BCE admitiu progressos positivos no combate à inflação, recordando que, dado o enorme choque na inflação (exponenciado pelo começo da guerra contra a Ucrânia), no início de 2022, “sabíamos que estávamos longe de onde precisávamos de estar”, em termos de taxas de juro. Até julho de 2022, as taxas do BCE estiveram em zero, em mínimos históricos. Nessa altura, o fator mais importante foi colmatar o hiato, o que ainda faltava, o mais rapidamente possível”. “Por isso, tivemos uma subida historicamente acentuada, no início da nossa trajetória de taxas, com aumentos de 0,75 e 0,5 pontos percentuais nas nossas primeiras seis subidas de taxas”, lembrou a presidente do BCE.

Porém Christine Lagarde assumiu que os dados dizem para tirar o pé do travão das taxas, embora não se perceba se o crescimento económico e o emprego se manterão incólumes a estes dois anos de apertos. “A nossa trajetória de política ajudou a controlar a inflação, mas também enfraqueceu o crescimento económico. […] As taxas de juro subiram de forma constante e permaneceram elevadas, enquanto a economia estagnou durante cinco trimestres consecutivos. […] Este padrão é inevitável, quando os bancos centrais enfrentam choques que empurram a inflação e a produção em direções opostas”, [mas, desta vez], “os custos da desinflação foram contidos em comparação com episódios semelhantes no passado”, explanou Lagarde.

“Se olharmos para os ciclos históricos das taxas desde 1970, podemos ver que, quando os principais bancos centrais aumentavam as taxas de juro, enquanto os preços da energia estavam elevados, os custos para a economia eram geralmente bastante altos”, vincou. a também ex-ministra das Finanças de França, mostrando-se confiante, pois este ciclo não seguiu os padrões do passado, tendo a inflação atingido “um pico muito mais elevado do que durante as aterragens suaves anteriores”, mas abrandado “mais rapidamente”. Para já, o crescimento manteve-se no intervalo dos anteriores episódios de aterragem suave, “embora próximo do limite inferior desse intervalo” e o desempenho do mercado de trabalho tem sido “excecionalmente benigno”.

Apesar do abrandamento do Produto Interno Bruto (PIB), o emprego continuou a crescer (“mais 2,6 milhões de pessoas desde o final de 2022”) e o desemprego na Zona Euro “está em mínimos históricos”, indica Lagarde, considerando: [Assim], “a resiliência do mercado de trabalho é em si um reflexo da combinação invulgar de choques que atingiu a área do euro, com a escassez de mão-de-obra a levar as empresas a acumular mais mão-de-obra, e lucros mais elevados e salários reais mais baixos tornando-lhes mais fácil fazê-lo.”

Contudo, para a chefe do BCE, mercê das várias incertezas apontadas, levará tempo “até reunirmos dados suficientes, para termos a certeza de que os riscos de inflação acima do nosso objetivo já passaram”. Ou seja, o tempo será crucial para o BCE avaliar se pode continuar a descer juros, na sequência do que se começou em junho. Com efeito, “o mercado de trabalho forte significa que podemos reservar tempo para recolher novas informações, mas também precisamos de estar conscientes do facto de que as perspetivas de crescimento permanecem incertas” – diz a presidente da autoridade de política monetária da Zona Euro.

Enfim, continua a exigência de baixos salários, para que a finança não tenha prolemas.

2024.07.03 – Louro de Carvalho

terça-feira, 2 de julho de 2024

Banco de Córneas de Cultura avança no Hospital de Santo António

 

O Jornal de Notícias (JN), de 1 de julho, dá-nos conta, através da pena de Marta Neves, de que uma paciente que, aos 28 anos, “tinha a visão comprometida em 90%, devido à queratocone, doença que deforma as córneas”, foi chamada, ano e meio depois, para o transplante para o qual estava inscrita no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos.

Tal cirurgia foi possível, graças ao primeiro Banco de Córneas de Cultura, em Portugal, criado pela equipa de Oftalmologia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto.

A este respeito, Pedro Menéres, diretor do serviço de Oftalmologia do Hospital de Santo António, refere: “Há um ano e meio que submetemos o projeto […], tendo havido o aval do governo em outubro de 2023.”    

“Apesar de, só agora, Portugal ter encontrado condições para passar a usufruir de um Banco de Córneas de Cultura, no Porto, nos EUA [Estados Unidos da América] e noutros países da Europa, como a Holanda, a Itália e a Espanha, já é uma prática comum”, enfatizou o oftalmologista Luís Oliveira, falando da vontade de o banco vir a ser “autossuficiente”, no Santo António, e de até “exportar”. Porém, trata-se de “uma atividade nova e, para avançarmos, é preciso que se torne regular”, como observou o oftalmologista Miguel Neves, relevando que a cirurgia da paciente em causa “correu bem, dentro daquilo que estava previsto”, mas, porque a córnea não tem vasos, a cicatrização “será lenta”, devendo a recuperação demorar cerca de um ano.

O contacto para a cirurgia foi feito na véspera, pois, dados os critérios de prioridade, a chamada pode ser feita entre um a três dias antes da intervenção. E a operação de 50 minutos, realizada no Centro de Cirurgia Integrada de Ambulatório, promete dar nova vida à paciente, “com a vantagem de, passadas umas horas, ter ido para casa”. 

Foi utilizada a técnica lamelar no transplante, isto é, foi só utilizada a parte necessária da córnea, tendo sido retirada da paciente apenas a zona doente, como explicou Pedro Menéres, frisando que este método “diminui o risco de rejeição e de outras complicações, a longo prazo”.  

Para o transplante, foi necessária “uma sutura periférica” à volta do olho. No bloco operatório, a cirurgia foi acompanhada pela equipa num monitor fixado na parede, onde o olho direito da paciente surgia ampliado. Os médicos Luís Oliveira e Miguel Neves lideravam a operação, de olhos postos num microscópio. De acordo com Pedro Menéres, sentado “com a visão como se estivesse a olhar para o fundo da estrada e com um ecrã nos olhos”, Luís Oliveira ia intervencionando a córnea doente com várias ferramentas. E, em meticulosa articulação com os pedais onde tinha os pés, ia dimensionando a imagem do olho, dando-lhe maiores ou menores grandeza ou luminosidade.

A parte mais curiosa da cirurgia ocorreu ao chegar o momento de dar os pontos, com linha que não se vê, pois “é mais fina do que um cabelo, só visível ao microscópio”. A córnea a transplantar foi retirada do invólucro que a guardava (tão perfeita que parece uma lente). E, quase sem se dar por isso, a cirurgia entrou na reta final, com 16 pontos dados com se estivessem a ser desenhadas as horas no relógio. “Os primeiros quatro pontos são dados como se os ponteiros estivessem nas 12, nas 6, nas 3 e nas 9 horas, e os restantes nesses intervalos”, explicou Miguel Neves, ante a imagem do olho costurado com mestria.       

É de anotar que esta doença, no dizer dos especialistas, estava associada a “uma predisposição genética”. Por outro lado, como explicou o diretor do serviço de Oftalmologia, esta doença agrava-se “com o coçar dos olhos”, porque “faz com que a córnea vá ficando em cone, levando à distorção da imagem”.

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Embora a criação do primeiro Banco de Córneas de Cultura, em Portugal, tenha sido anunciada, em outubro de 2023, pelo então ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a equipa só começou com os transplantes desta natureza em junho. O primeiro foi no dia 12. Até aí, a equipa articulava sinergias e fazia ensaios. A expectativa de Pedro Menéres é que, em 2025, a equipa realize mais 100 transplantes, além dos 120 a 150 que já faz por ano. Efetivamente, com esta tecnologia, será possível usar córneas até mais de um mês após a colheita, o que não é possível com a conservação de bancos clássicos, no frio. Nesses, a conservação de córneas ia até ao máximo de 14 dias, a que se juntava a limitação a nível de critérios de seleção de dadores, para obter córneas.

Com as córneas de cultura, segundo os especialistas, é possível aumentar o número de córneas disponíveis para transplante, aumentar a qualidade e programar as cirurgias com mais tempo. Todavia, para que o novo banco funcione com a regularidade necessária, face às listas de espera, Pedro Menéres sustenta que é necessária “uma equipa própria de colheita permanente”. Com efeito, “foi possível criar, pela primeira vez, um Banco de Córneas de Cultura, em Portugal, porque usamos as instalações do Banco Público de Gâmetas, instalado no Centro Materno Infantil do Norte e criamos sinergias com os técnicos que lá trabalham. Porém, necessitamos de que a administração do hospital reveja incentivos, para que tenhamos uma equipa própria de colheita permanente”, desiderato que se prevê estar concretizado em breve. Na verdade, esta é “uma atividade imprevista, que pode acontecer ao fim de semana, à noite, e que envolve, não só a colheita da córnea, como também o processamento dos tecidos e o transplante”.        

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A córnea é um tecido transparente que fica na parte da frente do olho, comparável ao vidro de um relógio. Permite a entrada da luz e executa dois terços das tarefas de foco, seguida da íris (a área colorida do olho) e a pupila. Apesar de a córnea não ter vasos sanguíneos, tem diversos nervos e os nutrientes fornecidos são da mesma fonte que os canais lacrimais. Com perda de transparência da córnea (opacificação), ocorre o leucoma de córnea (ou corneano). Além da transparência, a córnea saudável apresenta curvatura que ajuda a formar a imagem na retina com foco e nitidez. Por isso, as alterações nesta curvatura prejudicam a visão.

A função da córnea é refratar e transmitir a luz. A face anterior, elíptica, mede aproximadamente 12,6 milímetros (mm), no meridiano horizontal e, 11,7 mm no vertical. Apresenta uma espessura média de 0,520 mm, na região central, e de quase 1,0 mm, na região mais periférica. A curvatura da face anterior não é uniforme, apresentando a curva na região central mais plana do que a região periférica. O raio de curvatura médio é de 7,8 mm, na face anterior da região central, e de 6,6 mm, na face posterior. A escala de poder refracional da estrutura é de 44,00 Dioptrias. A estrutura é não vascularizada e a inervação é desprovida de bainha de mielina, garantindo total transparência.

A córnea possui cinco camadas: epitélio, camada superficial composta por células provida de grande capacidade de regeneração; membrana de Bowman, constituída a partir de células do epitélio basal, lâmina basal e fibras do estroma anterior; estroma, tecido responsável por sustentar a célula (é o tecido conectivo); membrana de Descemet, responsável por revestir a superfície do estroma e uma camada posterior, próxima do endotélio; e endotélio, constituído pelas células hexagonais, responsáveis por manter transparenciadas as camadas da córnea.

Várias doenças oculares podem debilitar a córnea, causando -lhe perda de transparência ou irregularidade de forma ou de superfície. Por exemplo: queratocone em estágio avançado, trauma no olho, infeções, queimaduras por substâncias químicas, enfermidades congénitas ou outras causas em que a pessoa pode ter a visão bastante reduzida ou, às vezes, até a perder.

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transplante de córnea é um procedimento cirúrgico em que a córnea doente ou danificada é substituída por outra de dador, na totalidade (ceratoplastia penetrante) ou em parte (ceratoplastia lamelar). O enxerto é retirado de um indivíduo recentemente falecido, sem doenças conhecidas ou outros fatores que possam afetar a viabilidade do mesmo ou a saúde do recetor. Retirado o enxerto, é transplantado cirurgicamente para o indivíduo recetor.

Há dois tipos de transplante de córnea, de acordo com o número de camadas transplantadas. A córnea tem cinco camadas. Porém, em caso de transplante, nem sempre é necessário transplantar todas as camadas. Se todas forem transplantadas, o transplante é penetrante; e, se apenas parte das camadas forem transplantadas, o transplante é lamelar.

No transplante penetrante, a rejeição do enxerto é mais elevada do que nos enxertos lamelares e o tempo de recuperação e os erros refrativos são consideravelmente superiores. No transplante lamelar, as camadas são selecionadas e transplantadas, podendo incluir a camada mais profunda (posterior), o endotélio (transplante de córnea lamelar posterior). Uma versão comum desse procedimento é o de Descemet Stripping Automated endotelial Keratoplasty (DSAEK). Se o transplante incluir as camadas mais próximas da superfície (anterior), designa-se por transplante de córnea lamelar anterior.

Habitualmente, o transplante lamelar é mais adequado do que o transplante penetrante completo, quando o processo de doença se limita apenas a uma porção da córnea.

Os riscos e complicações na cirurgia de transplante de córnea são semelhantes aos de outros procedimentos intraoculares. Na cirurgia de córnea, há também riscos de infeção, minimizados através de profilaxia antibiótica (usando colírios antibióticos, mesmo quando não há infeção).

Nesta cirurgia, os riscos não se ficam por aqui, podendo ocorrer outras complicações graves, nomeadamente, descolamento da retina, hemorragia da coroide, infeção endocular (endoftalmite), cataratas secundárias, glaucoma secundário, sinéquias da íris, irregularidade pupilar, edema macular cistoide, etc.

Após o transplante da córnea, em alguns casos, o sistema imunológico pode atacar a córnea. É a rejeição (em cerca de 20% dos casos), que pode necessitar de tratamento médico ou de outro transplante de córnea. Os sinais e sintomas de rejeição de córnea podem incluir perda da visão, dor nos olhos, olhos vermelhos e sensibilidade à luz (fotofobia);

Na cirurgia de transplante de córnea, há cuidados no pós-operatório que devem ser assegurados, para minimizar os riscos, durante o período de recuperação: tratamento médico adequado, nomeadamente, medicamentos prescritos pelo oftalmologista, como colírios e, ocasionalmente, medicamentos orais, imediatamente após o transplante de córnea; uso de oclusor; repouso; retoma lenta do trabalho, até poder realizar as atividades normais, incluindo o exercício físico; de exames oftalmológicos, para detetar complicações no primeiro ano após o transplante; e exame anual.

A visão pode, inicialmente, ser pior do que antes da cirurgia, dependendo da forma como o olho se ajusta à nova córnea. Pode levar vários meses até a acuidade visual melhorar. Podem surgir erros refrativos após a cirurgia de transplante de córnea, como miopia e astigmatismo.

Os erros refrativos, como miopia e astigmatismo, podem ser corrigidos com óculos, lentes de contacto ou, em alguns casos, a realização de cirurgia ocular a laser.

A cirurgia do transplante de córnea pode ser necessária, se os óculos ou as lentes de contacto não forem capazes de restaurar a visão ou se o edema doloroso não puder ser aliviado pelo recurso a medicamentos ou a lentes de contacto. Certas situações podem afetar a transparência da córnea e colocar o doente em maior risco. Entre essas situações, algumas das mais comuns: queratocone e outras distrofias da córnea; cicatrizes de infeções, como a herpes oculares ou ceratite fúngica; condições hereditárias como a distrofia de Fuchs (lenta, que atinge ambos os olhos); complicações raras da cirurgia LASIK (cirurgia refrativa por laser); queimaduras químicas da córnea ou danos causados por uma lesão no olho; edema excessivo da córnea; rejeição do enxerto após um transplante anterior; e descompensação do endotélio da córnea, devido a complicações da cirurgia da catarata.

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A ciência avança, as doenças abundam, os riscos minimizam-se, os pacientes esperam e têm esperança.

2024.07.01 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 1 de julho de 2024

O Rassemblement National poderá causar fricções na União Europeia

 

O partido de extrema-direita francês, Rassemblement National (RN) foi o mais votado, a 30 de junho, na primeira volta das eleições legislativas, com pouco mais de 33,1% dos votos; logo a seguir, a aliança de esquerda, Nova Frente Popular (NFP) conquistou, 28% dos votos; e o partido de Emmanuel Macron, o Renaissance, ficou em terceiro lugar, com 21% dos votos.

Em face dos resultados, Marine Le Pen pediu ao eleitorado que dê ao RN, atualmente a primeira força política, a maioria absoluta na Assembleia Nacional (AN), a câmara baixa Parlamento francês. Porém, Jean-Luc Mélenchon, líder do movimento França Insubmissa, um dos partidos da Nova Frente Popular, garantiu que, se passassem os três partidos e se a NFP ficar em terceiro lugar e a União Nacional em primeiro, a coligação partidária da esquerda retiraria a candidatura, para travar a extrema-direita na segunda volta, a 7 de julho.

Os resultados são uma grande derrota para Emmanuel Macron e poderão provocar um terramoto político em França. Porém, o presidente francês não baixou os braços e pediu ao eleitorado que bloqueie a extrema-direita, na segunda volta.

Apesar de um em cada três eleitores franceses ter apoiado o RN, as coisas não estão decididas, mercê do sistema eleitoral único que rege a eleição da AN.

A votação foi convocada depois de a coligação liberal de Macron ter tido desastroso desempenho nas eleições para o Parlamento Europeu (PE), a 9 de junho, e pouco contribui para inverter a maré a favor do presidente quase isolado. Ao dissolver, prontamente, a AN, logo que os resultados da UE foram conhecidos, Macron desafiou os cidadãos a decidirem se estão preparados para serem governados por um partido nacionalista que enviou 30 eurodeputados para Bruxelas.

Para já, a resposta foi afirmativa. Com os novos aliados dos Republicanos divididos – derrotados nas eleições europeias – o partido anteriormente conhecido como Frente Nacional aumentou a quota de votos em quase dois pontos percentuais, para 33,1%.

A França é um dos dois países da Europa que não seguem o sistema de representação proporcional nas eleições parlamentares; o outro é o Reino Unido. Todavia, os dois sistemas não são iguais. A França tem segunda volta, havendo ainda muito para jogar, com 577 lugares em disputa. Em contraste com os seus aliados, o Reino Unido, deverá eleger um governo trabalhista de centro-esquerda, 4 de julho, de acordo com o sistema de votação por círculos eleitorais.

Em França, os candidatos só podem ganhar um círculo eleitoral na primeira volta, se obtiverem maioria absoluta apoiada por, pelo menos, 25% dos eleitores recenseados. Historicamente, foram poucos os que o conseguiram – apenas, cinco em 2022, quatro dos quais com o partido de esquerda de Jean-Luc Mélenchon, França Insubmissa (LFI). É um sinal da mudança sísmica que está a ocorrer na política francesa o facto de, desta vez, o RN ter conquistado 39 lugares. A maior parte destas vitórias, nesta primeira volta, situa-se no extremo Norte de França, mas há também um grupo significativo no Sudeste, que, apesar da reputação glamorosa da Côte d’Azur, alberga algumas das comunidades mais precárias do país. E a Nova Frente Popular – aliança construída em torno do LFI de Mélenchon, que ficou em segundo lugar, com 28% dos votos nacionais – conquistou 32 lugares na primeira volta, na sua maioria círculos eleitorais em Paris e arredores.

Embora o resultado do RN tenha sido o mais mediático, a votação da primeira volta viu o centro virar, tanto para a esquerda como para a direita.

Os restantes 501 círculos eleitorais serão objeto da segunda volta. Todos os candidatos apoiados pelo equivalente a 12,5% dos eleitores recenseados podem passar à ronda seguinte. A afluência às urnas de 30 de junho, que registou um recorde de duas pessoas a votar por cada três elegíveis. É muito, o que abre caminho a um exercício maciço de votação tática na próxima ronda.

Mélenchon comprometeu-se a retirar os seus candidatos das eleições nos círculos eleitorais em que ficaram em terceiro lugar, para aumentar as hipóteses de derrotar o candidato do RN. E fez o mesmo o Ensemble (Juntos pela República), o agrupamento liderado pelo partido Renascimento de Macron. “Perante a ameaça de uma vitória da extrema-direita, apelamos a todas as formações políticas para que atuem de forma responsável e façam o mesmo”, declarou o Ensemble, em comunicado, na noite de 30 de junho.

Roland Lescure, atual ministro macronista da Indústria e Energia, que obteve 39% dos votos no seu círculo eleitoral, resumiu o dilema que muitos eleitores enfrentarão subsequente fim de semana. “Estou convencido de que, apesar das personalidades censuráveis que assombram o França Insubmissa, em primeiro lugar, as mais proeminentes de entre elas, não vão tomar o poder”, disse Lescure, que não é fã do incendiário Mélenchon, acrescentando: “Apelo a todos os eleitores a que não hesitem em bloquear a extrema-direita, votando no candidato alternativo que ficou mais bem classificado na primeira volta.”

Lescure enfrenta a segunda volta num dos 11 círculos eleitorais que representam os cidadãos franceses que vivem no estrangeiro, no seu caso expatriados nos Estados Unidos da América (EUA) e no Canadá – outra peculiaridade do sistema eleitoral francês.

A propensão dos liberais franceses para engolirem sapos e votarem na aliança de Mélenchon – cujos membros vão desde comunistas desconstruídos a um Partido Socialista encolhido, que já foi o lar político do antigo banqueiro de investimento Macron – pode determinar, em grande parte, se o presidente do RN, Jordan Bardella, de 28 anos, será o próximo primeiro-ministro de França.

Os apoiantes do LFI, o que resta dos Republicanos e outros terão de fazer escolhas difíceis.

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Pela segunda vez, em menos de um mês, a coligação centrista de Emmanuel Macron sofreu um duro golpe desferido pelo RN, de extrema-direita, que garantiu a primeira posição na primeira volta das eleições legislativas antecipadas.

Macron dissolveu a AN e convocou eleições, depois de o RN ter vencido as eleições europeias, obtendo mais do dobro dos votos da coligação centrista de Macron. Tal decisão precipitada foi descrita pelos comentadores como um estratagema que lhe poderia garantir a maioria absoluta, perdida há dois anos, ou como uma aposta perigosa que poderia levar a extrema-direita a liderar um governo, pela primeira vez, no país.

O RN, liderado por Jordan Bardella, de 28 anos, parece ter cimentado a sua posição como a principal força política, ao assegurar mais de 33% dos votos. E, se o resultado se confirmar, poderá obter entre 230 e 280 lugares – no segundo caso, apenas nove lugares a menos do que a maioria absoluta. E Bardella já prometeu ser “o primeiro-ministro de todos os Franceses, respeitoso da oposição, aberto ao diálogo e sempre preocupado com a unidade do povo”, ao mesmo tempo que criticou a aliança de Macron e a Nova Frente Popular, de esquerda.

Em 2017, a então Frente Nacional (hoje, RN) obteve 13% dos votos na primeira volta e, em 2022, 18% dos votos. Agora, segundo Tara Varma, membro visitante da Brookings Institution, em Washington DC, “as pessoas já não têm vergonha de votar no Rassemblement National” e “não só já não têm vergonha de o fazer, como também já não têm vergonha de o dizer”.

O cenário em que o RN ganha a maioria absoluta no Parlamento pode não ser o “mais provável”, mas não está “excluído”.

A coligação centrista de Macron, Ensemble, sofreu outro golpe devastador, ao ficar em terceiro lugar com apenas 21% dos votos. São, respetivamente, 12 pontos e sete pontos abaixo da coligação de extrema-direita RN e da coligação de esquerda NFP.

Cerca de 300 dos seus candidatos ainda estão na disputa por um lugar no hemiciclo de 577 lugares. Se o resultado da primeira volta se confirmar, significará que a coligação centrista perderá até 180 lugares, mantendo apenas entre 70 e 100 deputados. Porém, desde que nenhuma outra aliança obtenha a maioria absoluta, Macron poderá, em tese, formar coligação governamental (incluindo os Socialistas e os Verdes, à esquerda, e os Republicanos, à direita), o que será difícil pois, não é claro se encontrarão uma base de negociação ou se terão, em conjunto, os 289 lugares necessários. No entanto, o campo presidencial tem rejeitado qualquer ideia de trabalhar com o partido de extrema-esquerda, La France Insoumise (LFI), tendo Macron afirmado que, se o RN, ou o LFI, chegassem ao poder, isso poderia levar a uma “guerra civil”. Outros falam de caos!

Poucos minutos depois de a sondagem à boca das urnas ter mostrado o RN na liderança, os líderes políticos da esquerda começaram a apelar a uma chamada “frente republicana”. Comprometeram-se a retirar os candidatos que ficaram em terceiro lugar e que se qualificaram para a segunda volta, na tentativa de evitarem que o RN ganhasse lugares devido a uma divisão de votos entre os outros partidos. O LFI, os socialistas, os Verdes e os comunistas, bem como alguns membros da coligação centrista de Macron estão a fazer o mesmo.

“Digo isto com toda a força que cada um dos nossos eleitores deve reunir. Nem um único voto deve ir para o Rassemblement National”, disse o primeiro-ministro Gabriel Attal no seu discurso. E outros membros da coligação do Presidente apelaram aos seus eleitores a que não apoiassem os membros do LFI, afirmando que nem o RN nem o partido de Jean-Luc Mélenchon, que faz parte da coligação de esquerda, deviam receber um voto.

Para Mathias Bernard, especialista em História política francesa e presidente da Universidade de Clermont Auvergne, “as desistências ou, pelo contrário, as disputas triangulares são a chave da eleição”. Se cada um dos três blocos se apresentar sozinho na segunda volta, o RN obterá a maioria absoluta, o que lhe será difícil, se houver uma espécie de frente republicana.

O interesse pelo escrutínio convocado por Macron foi intenso, com vários eleitores a dizerem, antes da votação, que estavam desiludidos com as políticas do Presidente e que queriam mudanças. A afluência às urnas, que é usualmente baixa em França, aumentou significativamente durante estas eleições. E os resultados deram origem a protestos no país, com milhares de eleitores de esquerda a reunirem-se contra os ganhos da extrema-direita.

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Em caso de vitória, o RN pode causar desentendimentos na União Europeia (UE). A extrema-direita já não fala do Frexit ou de saída do euro, mas algumas das suas propostas desencontram-se do compromisso assumido pela França com a UE. Bardella já propôs, por exemplo, a redução da contribuição da França para o orçamento da UE em dois mil milhões de euros (o orçamento é delineado segundo o princípio da equidade: quem mais tem mais contribui). 

No atinente à imigração, as ideias do partido de extrema-direita podem colidir com os valores e princípios da UE, pois o partido tem o compromisso de abrir negociações para reformar a liberdade de circulação no espaço Schengen, “reservando-a aos cidadãos europeus”, bem como a ideia de “controlos de imigração mais rigorosos”, possivelmente apoiados por um referendo para colocar a lei francesa acima da lei europeia.

No que diz respeito a políticas de energia da UE, o RN quer que a França saia das “regras europeias de fixação dos preços da energia”. E Bardella quer negociar uma derrogação do mercado da eletricidade igual ao modelo ibérico, de que são beneficiários a Espanha e Portugal.

O RN quer a redução do IVA sobre a energia e os combustíveis, bem como reverter a reforma das pensões adotada pela maioria de Emmanuel Macron (embora o projeto não seja de competência europeia, é recomendado, para controlar o défice público).

Assim, mesmo não saindo da UE, o programa do RN desafia a UE, o que também será feito por uma frente de esquerda, a partir de França, se obtiver o poder executivo.

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Enfim, o crescimento da extrema-direita na Europa tem consequências!

2024.07.01 – Louro de Carvalho