domingo, 16 de junho de 2024

Realizou-se a cimeira da paz pela Ucrânia, mas a guerra continua

 

Realizou-se, a 15 e 16 de junho, na estância de Bürgenstock, perto de Lucerna, no centro da Suíça, com a participação de cerca de cem países (na sua maioria ocidentais), incluindo Portugal, uma cimeira, com vista à consecução da paz na Ucrânia e, consequentemente, na Europa.

Num comunicado conjunto, 83 dos países presentes (algumas das principais nações em desenvolvimento não o subscreveram) apelaram a que a “integridade territorial” da Ucrânia seja a base de qualquer acordo de paz que ponha fim à guerra da Rússia.

O comunicado encerrou a conferência de dois dias, marcada pela ausência da Rússia, que não foi convidada, mas que muitos participantes esperavam que participasse num roteiro para a paz. E os especialistas estiveram atentos para ver como seria o alinhamento com o documento final.

A Arménia, a Arábia Saudita, a África do Sul, o Bahrain, a Índia, a Indonésia, a Líbia, o México, os Emirados Árabes Unidos (EAU) e a Tailândia – que têm ligações estreitas com Moscovo – foram os países presentes que não subscreveram o documento final, que se centrava nas questões de segurança nuclear, de segurança alimentar e de troca de prisioneiros.

O documento afirma que a Carta das Nações Unidas e o “respeito pela integridade territorial e pela soberania” podem e vão servir de base para obter uma paz abrangente, justa e duradoura, na Ucrânia. Todavia, os analistas consideram que a conferência terá pouco impacto concreto no fim da guerra, porque a Rússia, país que a lidera e mantém, não foi convidada, por enquanto. O seu principal aliado, a China, que não participou, e o Brasil, que esteve presente como observador, procuraram, em conjunto, traçar caminhos alternativos para a paz.

A cimeira procurou chamar a atenção para a guerra, numa altura em que o conflito em Gaza, as eleições nacionais e outras preocupações têm atraído a atenção mundial.

Também constam da declaração final os três temas da segurança nuclear, da segurança alimentar e da troca de prisioneiros, abordados no segundo dia.

A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, considerou tratar-se de “condições mínimas” para as negociações com a Rússia, numa alusão ao facto de que outras áreas de desacordo entre Kiev e Moscovo serão mais difíceis de ultrapassar.

Um dia antes, o xeque Mohammed bin Abdulrahman Al Thani, primeiro-ministro do Qatar, referiu que o seu rico país do Golfo foi o anfitrião de conversações com delegações ucranianas e russas, sobre a reunificação de crianças ucranianas com as suas famílias, que até agora resultaram na reunião de 34 crianças.

Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, disse aos repórteres, no resort, no dia 15, que vai ser preciso trabalho e que os países estão a intensificar os esforços de nações como o Qatar. “Vai ser necessário um esforço da comunidade internacional, não apenas das vozes dos Estados Unidos da América [EUA] ou da Europa, mas também de vozes invulgares, para dizer que o que a Rússia fez aqui é mais do que repreensível e deve ser revertido”, afirmou.

O governo ucraniano considera que 19546 crianças foram deportadas ou deslocadas à força e Maria Lvova-Belova, comissária russa para os Direitos da Criança, confirmou, anteriormente, que, pelo menos, duas mil foram retiradas de orfanatos ucranianos. “Milojko Spajic, primeiro-ministro do Montenegro, afirmou, na reunião do dia 15: “Como pai de três filhos, estou profundamente preocupado com os milhares de crianças ucranianas transferidas à força para a Rússia ou para os territórios da Ucrânia ocupados pela Rússia. […] Todos nós, nesta mesa, precisamos de fazer mais para que as crianças da Ucrânia regressem à Ucrânia.”

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Os grupos de trabalho debateram, no segundo dia, a segurança nuclear, a segurança alimentar e a assistência humanitária, nomeadamente no que diz respeito à troca de prisioneiros.

A segurança nuclear tem sido preocupação dos líderes europeus, desde os primeiros dias da invasão da Ucrânia. Os Russos tomaram o controlo da central nuclear de Zaporizhzhia, em março de 2022, e continuam a ocupar o local até hoje.

É a maior instalação nuclear da Europa e, antes da guerra, fornecia 30% da eletricidade da Ucrânia, mas não gera energia para a rede nacional, desde setembro de 2022.

Entretanto, como os combates intermitentes junto da central continuam, Rafael Grossi, chefe da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), avisou, em abril, que um acidente estava perigosamente próximo. Por isso, desde o final de 2022, a AIEA mantém, no local, uma equipa rotativa de inspetores. E Grossi, advertindo que estes “ataques imprudentes devem cessar imediatamente”, observou que dois anos de guerra pesam muito na segurança da central nuclear de Zaporizhzhia e que foi comprometido cada um dos seus sete pilares da segurança nuclear.

Em fevereiro de 2022, os Russos também tomaram o controlo da central nuclear de Chernobyl – local de um desastre nuclear catastrófico, em 1986 –, mas abandonaram o local em março.

No atinente à segurança alimentar, é de relevar que o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais afirmou que “a invasão russa da Ucrânia causou o maior aumento da insegurança alimentar global relacionado com o exército em, pelo menos, um século”.

A Ucrânia tem sido apelidada “celeiro da Europa” e os seus solos férteis colocam-na entre os três maiores exportadores de cereais do Mundo, mas as linhas de abastecimento foram fortemente afetadas. Com efeito, a Rússia tem visado, frequentemente, o setor agrícola ucraniano, inclusive com ataques a infraestruturas de produção, a terras agrícolas, a campos e a armazéns.

A ocupação, desde 2014, da península da Crimeia pela Rússia e a sua frota do Mar Negro, que aí se encontra baseada, também afetaram as rotas de abastecimento por mar através do Bósforo e para o Mediterrâneo.

Em julho de 2022, a Turquia e a Organização das Nações Unidas (ONU) negociaram um acordo entre a Rússia e a Ucrânia, que permitiu a exportação segura de cereais ucranianos via três portos do Mar Negro. Ao abrigo desse acordo, foram exportados quase 33 milhões de toneladas de cereais, mas a Rússia retirou-se, em julho de 2023, alegando insatisfação com as condições que regiam as suas próprias exportações, e o acordo foi anulado. Por outro lado, a Ucrânia tornou-se, em 2023, o país mais minado do Mundo, com munições escondidas a afetar a produtividade agrícola. Com efeito, em março desse ano, a União Europeia (UE), a Escola de Economia de Kiev, a ONU e o Banco Mundial estimaram que o custo total das perdas e danos no setor agrícola da Ucrânia ascendia a 40,2 milhões de dólares (37,5 mil milhões de euros).

A par da insegurança nuclear, que põe a Europa e uma grande fatia do resto do Mundo em temor, a insegurança alimentar dificulta a assistência humanitária nos países em conflito e aumenta a onda de fome nos países mais pobres, cuja subsistência dependia do “celeiro da Europa”.

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Entretanto, logo no primeiro dia da cimeira, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, enfatizou que “está a ser feita história”, no caminho para a obtenção da paz, mas, como se disse, os especialistas e os críticos não esperam avanços, uma vez que a Rússia não esteve presente.

Numa breve declaração aos jornalistas, ao lado da presidente suíça Viola Amherd, no início da cimeira, Zelenskyy considerou o encontro um sucesso: “Conseguimos trazer de volta ao Mundo a ideia de que os esforços conjuntos podem acabar com a guerra e estabelecer uma paz justa.”

Embora a Rússia não tenha participado, Vladimir Putin, no dia 14, deu o excecional passo de expor, claramente, as suas condições para acabar com a guerra. Porém, as suas propostas não incluíam quaisquer novas exigências e Kiev classificou-as de “manipuladoras” e “absurdas”.

Putin declarou, perante diplomatas russos e legisladores seniores, que ordenaria, imediatamente, um cessar-fogo e iniciaria negociações, se a Ucrânia desistisse da sua candidatura à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e começasse a retirar as tropas de quatro regiões que Moscovo anexou em 2022.

Ora, apesar de as exigências de Putin não serem um bom começo, para a Ucrânia, os analistas sustentam que Kiev também não está, atualmente, em condições de negociar a partir de uma posição de força. Na verdade, nenhum dos contendores está disposto a negociar: cada um parte do pressuposto do “tudo ou nada”. Por outro lado, organizar uma cimeira de paz sem o convite aos dois contendores é condenar a cimeira ao fracasso. É certo que o presidente russo está sob um mandado de detenção da parte do Tribunal Penal Internacional (TPI) e a Suíça aderiu ao Tratado de Roma, que instituiu o TPI. Contudo, poderia a cimeira garantir o livre-trânsito de Putin ou este delegar a participação num seu alto representante, como o primeiro-ministro ou o ministro dos Negócios Estrangeiros.

Aliás, o comunicado final, que falhou na unanimidade, apoia a independência e a integridade territorial de Kiev, bem como a necessidade de conversações com a Rússia sobre o fim da guerra, mas deixa por resolver questões sobre como e quando. A forma de trazer a Rússia para o processo parece obscura. A presidente suíça, Viola Amherd, anfitriã da cimeira, admitiu que “o caminho a seguir é longo e desafiador”. Já o Canadá, como anunciou o primeiro-ministro, Justin Trudeau, tenciona receber, nos próximos meses, uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros para discutir o custo humano desta guerra

Portugal, que participou ao mais alto nível, com a presença, do Presidente da República e do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, falhou na promessa do primeiro-ministro de influenciar os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) no sentido da participação. Só Cabo Verde, Timor-Leste e Portugal participaram. O Brasil foi observador.  

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Como nota final, é de realçar que foram colossais os dispositivos de segurança montados na estância de luxo de Bürgenstock, na Cimeira para a Paz na Ucrânia. Cerca de quatro mil soldados para o local do encontro. Milhares de soldados tomaram posição nos múltiplos postos de controlo instalados nas estradas sinuosas que conduzem à estância. Foram instalados à volta do perímetro cerca de 6,5 quilómetros de vedações e oito quilómetros de arame farpado. “Um evento desta dimensão exige medidas de proteção abrangentes”, disse a presidente suíça, antes da cimeira.

Além disso, foi criado um heliporto militar temporário no meio de um campo, para permitir as descolagens e as aterragens das diferentes delegações.

O Hotel Bürgenstock tem longo historial de reuniões políticas de alto nível e a sua localização no topo da montanha proporciona uma camada extra de segurança. Já tinha sido palco de anteriores conversações de paz sobre o Sudão, em 2002, e sobre Chipre, em 2004.

As ameaças à segurança não são apenas físicas: incluem ataques cibernéticos e desinformação em torno do evento. Ignazio Cassis, ministro suíço dos Negócios Estrangeiros, disse que havia “um interesse óbvio em perturbar o bom funcionamento da conferência”.

A primeira vaga de ataques distribuídos de negação de serviço (DDoS) a sítios Web governamentais começou no dia 13. Estes ataques visam sobrecarregar os sítios Web com grande número de pedidos. Normalmente, o volume de dados não pode ser tratado por uma única organização, provocando o bloqueio do sítio Web e do sistema informático. Ora, de acordo com o Centro Nacional Suíço de Cibersegurança, esperavam-se mais ataques no fim de semana.

Mais de 400 moradores com casas e terrenos, além dos postos de controlo, precisavam de um passe especial para acesso à zona. E alguns moradores expressaram frustração com a organização da Conferência. “Ninguém nos perguntou a nossa opinião”, disse uma mulher. “Este maldito barulho a toda a hora”, exclamou outro habitante, após a passagem de um helicóptero.

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Enfim, até no incómodo para as populações pacíficas, a paz se torna cara. É pena que não avance o processo, mas, de costas voltadas e com todos a querer tudo, não haverá paz!

2024.06.16 – Louro de Carvalho

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