Luís
Marques Mendes, a 29 de junho, no seu comentário dominical na SIC, desta vez, em momento vespertino de
sábado, considerou que Lucília Gago, atual procuradora-geral da República (PGR),
não vai ficar na História, foi um “erro de casting”, deixou degradar o
Ministério Público (MP) “até níveis nunca vistos” e “não vai deixar saudades”.
E, alinhando com as demais vozes críticas, assaca-lhe a responsabilidade da
crise política desencadeada a 7 de novembro de 2023, que redundou na demissão
do primeiro-ministro (PM) e na dissolução da Assembleia da República (AR), com
a marcação de eleições antecipadas.
É
evidente que um comunicado do gabinete de imprensa da PGR a publicitar que o PM
é objeto de inquérito no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o foro competente, por
suspeitas de cumplicidade em prática de crime, lhe retirou condições políticas
para se manter no cargo.
Todavia,
a responsabilidade da dissolução da AR é, inquestionavelmente, da exclusiva
competência do Presidente da República (PR), medida que tomou sem o apoio
maioritário do Conselho de Estado, órgão constitucional de consulta do chefe de
Estado. E o PR, na linha do que indevidamente havia prometido, recusou dar
posse a novo governo, apresentado pelo partido que detinha a maioria
parlamentar. Nestes termos, admitindo que a PGR tenha ocasionado o
desencadeamento da crise, o PR, pelo menos, aproveitou-se dela, para fazer
valer o seu entendimento do valor do ato leitoral de 2022.
***
Porém,
ao invés do que diz Marques Mendes, Lucília Gago vai ficar na História, como
Fernando Pinto Monteiro e como José Cunha Rodrigues (que foi badalado por,
alegadamente, ter sido encontrado um microfone por baixo da secretária do seu
gabinete). E não sei se a atual PGR terá sido um “erro de casting”, pois,
“grosso modo”, desempenhou o seu papel com geral agrado dos magistrados do MP,
embora com exceções pontuais. Aliás, nunca se sentiu confortável, pois alguma
direita nunca digeriu o facto de a antecessora não ter sido reconduzida.
Quanto
às explicações que, supostamente, deve dar aos Portugueses, em geral, e à AR,
em especial, que também suponho que deveria já ter dado, pergunto-me qual será
a vantagem delas, se não pode, como dizem, falar de casos concretos, e qual a
razão do mistério do seu silêncio ou das suas parcas declarações. Na verdade, o
que interessava era saber por que motivo escreveu ou mandou escrever o letal
parágrafo no comunicado de 7 de novembro. Por outro lado, embora a PGR deva,
como tantos afirmam, prestar contas à AR, através de relatórios periódicos sobre
a atividade do MP, ou quando há factos extraordinários que o aconselhem, a
verdade é que não há essa tradição na PGR.
***
Contudo,
onde o comentador da SIC se estendeu,
do meu ponto de vista, foi na alegada vantagem da crise, sustentando que há
coisas más que dão resultados bons.
A crise
política que apeou o governo maioritário de António Costa acabou por beneficiar
o próprio, que foi eleito presidente do Conselho Europeu, um cargo que sempre
ambicionou. Ora, se continuasse no governo, não teria hipótese de ascender a
esse cargo, pois o PR declarou, aquando da tomada de posse do governo, em março
de 2022, que os eleitores deram a maioria ao Partido Socialista (PS) e ao seu
líder de então, pelo que, se este abandonasse o cargo a meio do mandato, seriam
convocadas novas eleições.
Não sei
se António Costa já agradeceu a Marcelo Rebelo de Sousa a sua liderança da
crise.
Também
tiraram vantagem desta crise: Luís Montenegro, que ascendeu a primeiro-ministro
mais cedo do que previa, o que até poderia não vir a acontecer; Pedro Nuno
Santos, que foi secretário-geral do PS, antes do tempo (é natural que viesse a
sê-lo, mas bastante mais tarde); o Chega, que passou de 12 deputados na AR a
50; e a direita moderada, que já governa (antes do previsto), ainda que sem
maioria.
E
Marques Mendes não se fica por aqui, na lista de vantagens. Com a eleição de
António Costa para líder do Conselho Europeu, beneficia Portugal, pois trata-se
de um pequeno país que tem um dos seus concidadãos num dos mais altos cargos
internacionais; beneficia a Europa, visto que dispõe de um líder com muita
experiência governativa, com grande conhecimento da Europa e do Mundo, um hábil
negociador, construtor de consensos, fazedor de pontes e impulsionador de
diálogo (são predicados verdadeiros); e beneficia Luís Montenegro, que faz
parte do Conselho Europeu (que reúne os chefes de Estado e de Governo), tendo
na presidência um concidadão (que tem de ser independente, mas que não deixa de
ser português).
O
comentador não o disse claramente, mas deixou-o subentendido. Até o Mundo
inteiro beneficiou da escolha do ex-PM de Portugal. Portugal onde está arrasa,
digo eu.
Na
verdade, Marques Mendes falou de cidadãos portugueses que ocuparam altos cargos
internacionais e mencionou Feitas do Amaral, presidente da Assembleia-Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) (1995-1996), Durão Barroso, presidente da
Comissão Europeia (2004-2014); António Vitorino, diretor-geral da Organização
Internacional para as Migrações (OIM) (2018-2023); e António Guterres, Alto-Comissário
das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) (2005-2015) e secretário-geral da
ONU, de 1 de janeiro de 2017 até ao presente, cargo em que se mantém.
Poderia
ter mencionado outros nomes, pois são portugueses: o cardeal José Tolentino de
Mendonça, atual Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, da Santa
Sé, e que foi bibliotecário e arquivista do Vaticano; o cardeal José Saraiva
Martins, que foi Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos (1998-2008);
o cardeal Manuel Monteiro de Castro, que foi
Penitenciário-mor do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica; o arcebispo
José Avelino Bettencourt, núncio apostólico nos Carmões e na Guiné Equatorial,
que fora, antes, núncio apostólico na Geórgia e na Arménia, depois de ter sido
chefe de protocolo da Santa Sé.
***
Falando de políticos, Portugal é
useiro e vezeiro em descartar nomes que, depois exporta para o estrangeiro. Por
exemplo, Freitas do Amaral perdeu uma eleição presidencial, mas foi útil na
ONU; Guterres demitiu-se, para não deixar o país no pântano, mas serviu como
ACNUR e serve como secretário-geral da ONU; Durão Barroso queimou-se com a
cimeira dos Açores, mas pôde servir como presidente da Comissão Europeia;
António Vitorino, não pôde continuar ministro da Defesa Nacional, por alegado
incumprimento fiscal, mas serviu como comissário europeu com a pasta da
Justiça; Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal (BdP), deixou ir ao
charco o Banco Português de Negócios (BPN), mas serviu para vice-presidente do
Banco Central Europeu; e António Costa é o político de quem tanto mal disseram
e a direita não descansou enquanto não o viu apeado do executivo, mas, agora,
com exceção do Chega e da Iniciativa Liberal (IL) – que se sente confortável,
mas não feliz –, todos, em coro, elogiam as suas qualidades. Fizeram-nos a
sério, por saloiísmo, por cinismo, por hipocrisia ou por sentimento de culpa,
mas fizeram-no.
De António Costa, Marques Mendes
anotou que, embora muitos (com razão ou não) considerem que teve fraco
desempenho como primeiro-ministro, todos reconhecem que tem qualidades para
desempenhar bem o cargo para que agora foi eleito. No dizer do comentador,
trata-se de cargo não executivo, mas de coordenação, para o que tem habilidade
e que aquilo que gosta de fazer.
Não sei dizer se o ex-PM teve fraco
desempenho como governante e se o sucessor o terá melhor. O certo é que a
ministra da Justiça, na entrevista ao Observador,
a 27 de junho, vincou algumas medidas positivas provindas do governo anterior,
o que Luís Montenegro também já fez. Por outro lado, alguns dos pacotes de
medidas, já apresentados, retomam a maior parte das opções anteriores, embora
com nova roupagem; e, mesmo no âmbito da imigração, em que o pacote
governamental era assaz radical, parece que vai haver recuo em alguns aspetos.
Penso que a capacidade de António
Costa para o cargo é indiscutível e que é, por certo, o beneficiário da crise
política. É verdade que o PR, o PM e tantos se concertaram – oportuna e
importunamente – no apoio inequívoco à candidatura do ex-PM. Todavia, esse
apoio, publicamente declarado (até parecia revelar sentimento de culpa),
poderia ter dificultado a escolha e o MP foi tardio e equívoco, em relação à
investigação em que o candidato esteve envolvido, nomeadamente na publicitação
de escutas sem relevância penal, em tempo de candidatura. Nesse campo, o eleito
presidente do Conselho Europeu foi um exemplo de serenidade.
Espero que António Costa se revista
de coragem e de inteligência (que não lhe falta) para enfrentar os desafios com
que se debaterá a União Europeia (UE): os resultados das eleições em França; os
resultados das eleições norte-americanas; a guerra na Ucrânia; a guerra em
Gaza; a política de Defesa da UE; o surto migratório; as alterações climáticas;
o ambiente e a agricultura; a questão do alargamento da UE; e a relação com a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).
***
E, quanto às desvantagens da crise,
que são mais do que as vantagens, é de ter em conta: Luís Montenegro e a
Aliança Democrática (AD) foram empurrados para o governo, sem disporem de tempo
para crescerem e para se consolidarem; Pedro Nuno Santos viu-se, de súbito,
candidato a secretário-geral e a liderar uma candidatura a eleições, sem ter
digerido o desgaste do seu partido e o histórico da sua demissão de ministro
das Infraestruturas e da Habitação; e o país, que, embora tivesse um governo
medíocre em muitos aspetos, mas atacado ao mais alto nível, passou a uma
situação de ingovernabilidade. A AD ou se alia ao Chega e falta à promessa eleitoral;
ou se alia ao PS e diz adeus às políticas que anunciou; ou joga aqui ou ali, conforme
a conveniência.
A UE terá lucrado com a eleição de
Costa, mas, mesmo para este, o país estava em primeiro lugar; e a Europa havia
de encontrar outra figura de prestígio que a liderasse ao nível do Conselho
Europeu, na resposta aos desafios presentes e futuros.
Quem teve real vantagem foi o
Chega, que obteve 50 deputados, mais do quádruplo das eleições anteriores.
Porém, tal vantagem fragilizou-se, rapidamente, com a “desvitória” nas eleições
europeias, com a módica representação de dois deputados, tantos como a IL.
Por isso, falar de tantas vantagens
da crise soa a absurdo e a insensatez. Não vale a pena andarmos a
autoenganar-nos e a meter a cabeça na areia.
2024.06.30 – Louro de Carvalho
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