domingo, 30 de junho de 2024

O absurdo de uma crise política resultar em proveito de todos

 

Luís Marques Mendes, a 29 de junho, no seu comentário dominical na SIC, desta vez, em momento vespertino de sábado, considerou que Lucília Gago, atual procuradora-geral da República (PGR), não vai ficar na História, foi um “erro de casting”, deixou degradar o Ministério Público (MP) “até níveis nunca vistos” e “não vai deixar saudades”. E, alinhando com as demais vozes críticas, assaca-lhe a responsabilidade da crise política desencadeada a 7 de novembro de 2023, que redundou na demissão do primeiro-ministro (PM) e na dissolução da Assembleia da República (AR), com a marcação de eleições antecipadas.

É evidente que um comunicado do gabinete de imprensa da PGR a publicitar que o PM é objeto de inquérito no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o foro competente, por suspeitas de cumplicidade em prática de crime, lhe retirou condições políticas para se manter no cargo.

Todavia, a responsabilidade da dissolução da AR é, inquestionavelmente, da exclusiva competência do Presidente da República (PR), medida que tomou sem o apoio maioritário do Conselho de Estado, órgão constitucional de consulta do chefe de Estado. E o PR, na linha do que indevidamente havia prometido, recusou dar posse a novo governo, apresentado pelo partido que detinha a maioria parlamentar. Nestes termos, admitindo que a PGR tenha ocasionado o desencadeamento da crise, o PR, pelo menos, aproveitou-se dela, para fazer valer o seu entendimento do valor do ato leitoral de 2022.

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Porém, ao invés do que diz Marques Mendes, Lucília Gago vai ficar na História, como Fernando Pinto Monteiro e como José Cunha Rodrigues (que foi badalado por, alegadamente, ter sido encontrado um microfone por baixo da secretária do seu gabinete). E não sei se a atual PGR terá sido um “erro de casting”, pois, “grosso modo”, desempenhou o seu papel com geral agrado dos magistrados do MP, embora com exceções pontuais. Aliás, nunca se sentiu confortável, pois alguma direita nunca digeriu o facto de a antecessora não ter sido reconduzida. 

Quanto às explicações que, supostamente, deve dar aos Portugueses, em geral, e à AR, em especial, que também suponho que deveria já ter dado, pergunto-me qual será a vantagem delas, se não pode, como dizem, falar de casos concretos, e qual a razão do mistério do seu silêncio ou das suas parcas declarações. Na verdade, o que interessava era saber por que motivo escreveu ou mandou escrever o letal parágrafo no comunicado de 7 de novembro. Por outro lado, embora a PGR deva, como tantos afirmam, prestar contas à AR, através de relatórios periódicos sobre a atividade do MP, ou quando há factos extraordinários que o aconselhem, a verdade é que não há essa tradição na PGR.

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Contudo, onde o comentador da SIC se estendeu, do meu ponto de vista, foi na alegada vantagem da crise, sustentando que há coisas más que dão resultados bons.  

A crise política que apeou o governo maioritário de António Costa acabou por beneficiar o próprio, que foi eleito presidente do Conselho Europeu, um cargo que sempre ambicionou. Ora, se continuasse no governo, não teria hipótese de ascender a esse cargo, pois o PR declarou, aquando da tomada de posse do governo, em março de 2022, que os eleitores deram a maioria ao Partido Socialista (PS) e ao seu líder de então, pelo que, se este abandonasse o cargo a meio do mandato, seriam convocadas novas eleições. 

Não sei se António Costa já agradeceu a Marcelo Rebelo de Sousa a sua liderança da crise. 

Também tiraram vantagem desta crise: Luís Montenegro, que ascendeu a primeiro-ministro mais cedo do que previa, o que até poderia não vir a acontecer; Pedro Nuno Santos, que foi secretário-geral do PS, antes do tempo (é natural que viesse a sê-lo, mas bastante mais tarde); o Chega, que passou de 12 deputados na AR a 50; e a direita moderada, que já governa (antes do previsto), ainda que sem maioria.

E Marques Mendes não se fica por aqui, na lista de vantagens. Com a eleição de António Costa para líder do Conselho Europeu, beneficia Portugal, pois trata-se de um pequeno país que tem um dos seus concidadãos num dos mais altos cargos internacionais; beneficia a Europa, visto que dispõe de um líder com muita experiência governativa, com grande conhecimento da Europa e do Mundo, um hábil negociador, construtor de consensos, fazedor de pontes e impulsionador de diálogo (são predicados verdadeiros); e beneficia Luís Montenegro, que faz parte do Conselho Europeu (que reúne os chefes de Estado e de Governo), tendo na presidência um concidadão (que tem de ser independente, mas que não deixa de ser português).

O comentador não o disse claramente, mas deixou-o subentendido. Até o Mundo inteiro beneficiou da escolha do ex-PM de Portugal. Portugal onde está arrasa, digo eu.

Na verdade, Marques Mendes falou de cidadãos portugueses que ocuparam altos cargos internacionais e mencionou Feitas do Amaral, presidente da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) (1995-1996), Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia (2004-2014); António Vitorino, diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM) (2018-2023); e António Guterres, Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) (2005-2015) e secretário-geral da ONU, de 1 de janeiro de 2017 até ao presente, cargo em que se mantém.  

Poderia ter mencionado outros nomes, pois são portugueses: o cardeal José Tolentino de Mendonça, atual Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, da Santa Sé, e que foi bibliotecário e arquivista do Vaticano; o cardeal José Saraiva Martins, que foi Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos (1998-2008); o cardeal Manuel Monteiro de Castro, que foi Penitenciário-mor do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica; o arcebispo José Avelino Bettencourt, núncio apostólico nos Carmões e na Guiné Equatorial, que fora, antes, núncio apostólico na Geórgia e na Arménia, depois de ter sido chefe de protocolo da Santa Sé.

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Falando de políticos, Portugal é useiro e vezeiro em descartar nomes que, depois exporta para o estrangeiro. Por exemplo, Freitas do Amaral perdeu uma eleição presidencial, mas foi útil na ONU; Guterres demitiu-se, para não deixar o país no pântano, mas serviu como ACNUR e serve como secretário-geral da ONU; Durão Barroso queimou-se com a cimeira dos Açores, mas pôde servir como presidente da Comissão Europeia; António Vitorino, não pôde continuar ministro da Defesa Nacional, por alegado incumprimento fiscal, mas serviu como comissário europeu com a pasta da Justiça; Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal (BdP), deixou ir ao charco o Banco Português de Negócios (BPN), mas serviu para vice-presidente do Banco Central Europeu; e António Costa é o político de quem tanto mal disseram e a direita não descansou enquanto não o viu apeado do executivo, mas, agora, com exceção do Chega e da Iniciativa Liberal (IL) – que se sente confortável, mas não feliz –, todos, em coro, elogiam as suas qualidades. Fizeram-nos a sério, por saloiísmo, por cinismo, por hipocrisia ou por sentimento de culpa, mas fizeram-no.  

De António Costa, Marques Mendes anotou que, embora muitos (com razão ou não) considerem que teve fraco desempenho como primeiro-ministro, todos reconhecem que tem qualidades para desempenhar bem o cargo para que agora foi eleito. No dizer do comentador, trata-se de cargo não executivo, mas de coordenação, para o que tem habilidade e que aquilo que gosta de fazer.

Não sei dizer se o ex-PM teve fraco desempenho como governante e se o sucessor o terá melhor. O certo é que a ministra da Justiça, na entrevista ao Observador, a 27 de junho, vincou algumas medidas positivas provindas do governo anterior, o que Luís Montenegro também já fez. Por outro lado, alguns dos pacotes de medidas, já apresentados, retomam a maior parte das opções anteriores, embora com nova roupagem; e, mesmo no âmbito da imigração, em que o pacote governamental era assaz radical, parece que vai haver recuo em alguns aspetos.

Penso que a capacidade de António Costa para o cargo é indiscutível e que é, por certo, o beneficiário da crise política. É verdade que o PR, o PM e tantos se concertaram – oportuna e importunamente – no apoio inequívoco à candidatura do ex-PM. Todavia, esse apoio, publicamente declarado (até parecia revelar sentimento de culpa), poderia ter dificultado a escolha e o MP foi tardio e equívoco, em relação à investigação em que o candidato esteve envolvido, nomeadamente na publicitação de escutas sem relevância penal, em tempo de candidatura. Nesse campo, o eleito presidente do Conselho Europeu foi um exemplo de serenidade.   

Espero que António Costa se revista de coragem e de inteligência (que não lhe falta) para enfrentar os desafios com que se debaterá a União Europeia (UE): os resultados das eleições em França; os resultados das eleições norte-americanas; a guerra na Ucrânia; a guerra em Gaza; a política de Defesa da UE; o surto migratório; as alterações climáticas; o ambiente e a agricultura; a questão do alargamento da UE; e a relação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

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E, quanto às desvantagens da crise, que são mais do que as vantagens, é de ter em conta: Luís Montenegro e a Aliança Democrática (AD) foram empurrados para o governo, sem disporem de tempo para crescerem e para se consolidarem; Pedro Nuno Santos viu-se, de súbito, candidato a secretário-geral e a liderar uma candidatura a eleições, sem ter digerido o desgaste do seu partido e o histórico da sua demissão de ministro das Infraestruturas e da Habitação; e o país, que, embora tivesse um governo medíocre em muitos aspetos, mas atacado ao mais alto nível, passou a uma situação de ingovernabilidade. A AD ou se alia ao Chega e falta à promessa eleitoral; ou se alia ao PS e diz adeus às políticas que anunciou; ou joga aqui ou ali, conforme a conveniência.

A UE terá lucrado com a eleição de Costa, mas, mesmo para este, o país estava em primeiro lugar; e a Europa havia de encontrar outra figura de prestígio que a liderasse ao nível do Conselho Europeu, na resposta aos desafios presentes e futuros.

Quem teve real vantagem foi o Chega, que obteve 50 deputados, mais do quádruplo das eleições anteriores. Porém, tal vantagem fragilizou-se, rapidamente, com a “desvitória” nas eleições europeias, com a módica representação de dois deputados, tantos como a IL. 

Por isso, falar de tantas vantagens da crise soa a absurdo e a insensatez. Não vale a pena andarmos a autoenganar-nos e a meter a cabeça na areia.

2024.06.30 – Louro de Carvalho

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