sábado, 29 de junho de 2024

A poetisa que “faz poesia como faz bom tempo” venceu o Prémio Camões

 

Na sua 36.ª edição, o Prémio Camões, prémio de literatura em Língua Portuguesa, que distinguiu, no ano passado, João Barrento, foi atribuído à densidade poética do quotidiano de Adélia Prado – nome incontornável na poesia contemporânea brasileira – nascida, há 88 anos, em Divinópolis, no Estado de Minas Gerais, no Brasil, onde reside até hoje.

O anúncio surgiu, em comunicado enviado às redações pelo Ministério da Cultura, liderado por Dalila Rodrigues, a 26 de junho, após a reunião do júri constituído por Clara Crabbé Rocha, Professora Catedrática aposentada da Universidade Nova de Lisboa; Isabel Cristina Mateus, da Universidade do Minho; Francisco Noa (Moçambique), Professor da Universidade Eduardo Mondlane; Cleber Ranieri Ribas de Almeida, Professor Associado da Universidade Federal do Piauí (Brasil); Deonísio da Silva, Professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (Brasil); Dionísio Bahule, Professor da Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique).

Segundo o júri, “Adélia Prado é autora de uma obra muito original, que se estende ao longo de décadas, com destaque para a produção poética. Herdeira de Carlos Drummond de Andrade, o autor que a deu a conhecer e que sobre ela escreveu as conhecidas palavras ‘Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo…’, Adélia Prado é, há longos anos, uma voz inconfundível na Literatura de Língua Portuguesa”.

Católica, natural da cidade de Divinópolis, onde nasceu em 1935, formada em Filosofia, casada, mãe de família, dona de casa, ex-professora de Religião, Adélia Prado é uma das maiores poetisas – ou poetas –​ não só em Língua Portuguesa, mas deste tempo.

O Prémio Camões, o mais celebrado galardão literário de Língua Portuguesa, no valor de 100 mil euros, foi instituído por Portugal e pelo Brasil, em 1989, para prestar, anualmente, uma homenagem à literatura em português, recaindo a escolha num escritor cuja obra contribua para a projeção e para o reconhecimento da Língua Portuguesa.

Com 88 anos, Adélia Prado tem uma boa dúzia de livros, entre poesia e ficção. Tem três livros editados pela extinta Cotovia: “Bagagem” (2002), livro de estreia da autora, “Com Licença Poética” (2003) e “Solte os Cachorros” (2003). Em 2016, a Assírio & Alvim publicou a antologia “Tudo Que Existe Louvará”.

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Adélia Luzia Prado de Freitas, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa, nasceu em Divinópolis, a 13 de dezembro de 1935, no Estado de Minas Gerais; é poetisa, professora, filósofa, romancista e contista, ligada ao novo Modernismo; e é considerada a maior poetisa viva do Brasil. 

Professora por formação, exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora se lhe tornou a atividade central. Em termos da Literatura Brasileira, o seu surgimento representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que incorpora os papéis de intelectual e de mãe, de esposa e de dona de casa. A sua obra retrata o quotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspeto lúdico, uma das caraterísticas do seu estilo único. Em 1973, enviou o manuscrito de “Bagagem” a Affonso Roamno de Sant’Anna, que assinava uma coluna de crítica literária no Jornal do Brasil. Admirado, o qual repassou o manuscrito a Carlos Drummond de Andrade, que incentivou a publicação do livro pela Editora Imago, em artigo do mesmo periódico.

Iniciou os estudos, na sua terra natal, no Grupo Escolar Padre Matias Lobato e mora na rua Ceará. Em 1950, faleceu-lhe a mãe, o que levou a autora a escrever os seus primeiros versos. Nessa época, concluiu o curso ginasial no Ginásio Nossa Senhora do Sagrado Coração.

Em 1951, iniciou o curso de Magistério na Escola Normal Mário Casassanta, que concluiu em 1953. Começou a lecionar no Ginásio Estadual Luiz de Mello Viana Sobrinho, em 1955.

Em 1958 casou, em Divinópolis, com José Assunção de Freitas, funcionário do Banco do Brasil, SA. Dessa união nasceriam cinco filhos: Eugênio (em 1959), Rubem (em 1961), Sarah (em1962), Jordano (em 1963) e Ana Beatriz (em 1966).

Antes do nascimento da última filha, a escritora e o marido iniciam o curso de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis.

Em 1972, morreu-lhe o pai e, em 1973, formou-se em Filosofia. Nessa ocasião, enviou carta com originais dos seus novos poemas ao poeta e crítico literário Affonso de Sant’Anna, que os submeteu à apreciação de  Drummond, o qual sugeriu, em 1975, a Pedro Paulo de Sena Madureira, da Editora Imago, a publicação do livro de Adélia, cujos poemas lhe pareciam “fenomenais”. Eram os originais de “Bagagem”.

A 9 de outubro desse ano, Drummond publica uma crónica no Jornal do Brasil a enaltecer o trabalho inédito da escritora. O livro é lançado no Rio, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso de Sant’Anna, Nélida Cuíñas Piñón e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros.

O ano de 1978 marca o lançamento de O coração disparado, agraciado com o Prémio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. E, em 1979, estreia em prosa, com “Soltem os cachorros”.

Com o sucesso da sua carreira de escritora, obriga-se a deixar o magistério, após 24 anos de trabalho. Nesse período, trabalhou no Instituto Nossa Senhora do Sagrado Coração, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, na Fundação Geraldo Corrêa – Hospital São João de Deus, na Escola Estadual são Vicente e na Escola Estadual Martin Cyprien, lecionando Educação Religiosa, Moral e Cívica, Filosofia da Educação, Relações Humanas e Introdução à Filosofia. A sua peça, “O Clarão”, auto de natal escrito em parceria com Lázaro Barreto, foi encenada em Divinópolis.

Em 1980, dirige o grupo teatral amador Cara e Coragem na montagem de “O Auto da Compadecida”, de Arainao Suassuna. Em 1981, ainda sob sua direção, o grupo encenaria “A Invasão”, de Dias Gomes. Publica “Cacos para um vitral”. Lucy Ann Carter apresenta, no Departament of Comparative Literature, da Princeton University, o primeiro de uma série de estudos universitários sobre a obra de Adélia Prado.

Em 1981, lança “Terra de Santa Cruz”. De 1983 a 1988, exerce as funções de chefe da Divisão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e da Cultura de Divinópolis, a convite do prefeito, Aristides Salgado dos Santos. Entretanto, em 1984, publica “Os componentes da banda”. 

Participa, em 1985, em Portugal, num programa de intercâmbio cultural entre autores brasileiros e portugueses, e em Havana, em Cuba, do II Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América. E Fernanda Montenegro estreia, no Teatro Delfim, no Rio de Janeiro, em 1987, o espetáculo “Dona Doida”: interlúdio, baseado em textos de livros da autora. A montagem, sob a direção de Naum Alves de Souza, fez grande sucesso, tendo sido apresentada em diversos estados brasileiros, nos Estados Unidos da América (EUA), em Itália e em Portugal.

Apresenta-se, em 1988, em Nova Iorque, na Semana Brasileira de Poesia, evento promovido pelo Comité Internacional pela Poesia. Publica “A faca no peito”. E participa, em Berlim, Alemanha, no Línea Colorada, um encontro de escritores latino-americanos e alemães.

Em 1991 é publicada “Poesia Reunida”. Volta, em 1993, à Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Divinópolis, integrando a equipa de orientação pedagógica na gestão da secretária Teresinha Costa Rabelo. E, em 1994, após anos de silêncio poético, sem nenhuma palavra, nenhum verso, ressurge com o livro “O homem da mão seca”. Conta a autora que o livro foi iniciado em 1987, mas, após concluir o primeiro capítulo, foi acometida de uma crise de depressão, que a bloquearia literariamente por longo tempo. Vê “a aridez como uma experiência necessária” e “essa temporada no deserto” fez-lhe bem.

Estreia, em 1996, no Teatro Sesi Minas, em Belo Horizonte, a peça Duas horas da tarde no Brasil, adaptada da obra da autora por Kalluh Araújo e pela filha de Adélia, Ana Beatriz Prado.

Em 1999, são lançados “Manuscritos de Felipa”, “Oráculos de maio” e a sua Prosa reunida. Participa, em maio, na série “O escritor por ele mesmo”, no ISM-São Paulo. Em Belo Horizonte, é apresentado, sob a direção de Rui Moreira, “O sempre amor”, espetáculo de dança de Teresa Ricco baseado em poemas da escritora.

Em 2010 recebeu o Prémio Literário da Fundação Biblioteca Nacional e o Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Recentemente, recebeu o Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. E, em 2024, tornou-se a terceira escritora brasileira – e a primeira escritora mineira – a vencer o Prémio Camões em 36 anos.

Para Adélia, o quotidiano é a própria condição da literatura. Morando na pequena Divinópolis, cidade com aproximadamente 200 mil habitantes, tem, na prosa e na poesia, temas recorrentes da vida de província, como a moça que arruma a cozinha, a missa, um certo cheiro do mato, vizinhos, a gente de lá. A sua obra poética está entre as mais relevantes do século XXI no Brasil, ladeada por nomes como Augusto Branco e Bruna Lombardi, conforme estudo que levou em consideração a propagação da sua obra para o público em geral e em sites especializados em literatura, trabalhos académicos, bem como a referência aos seus textos em obras literárias de outros autores.

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Não podia ter nascido em outro lugar. Divinópolis ("cidade de Deus”). Nem ter outro nome, Adélia Prado. Considerada a maior poeta viva do Brasil, a mulher que ousou juntar a fé com a emoção mais sensorial em poesias contundentes, publicou o primeiro livro, tinha já 40 anos. Em 1976, com o título de “Bagagem”, onde se encontram poemas antológicos como a desconstrução de Carlos Drummond de Andrade. Em “Com licença poética, marca o terreno da sua linguagem, que vale a pena recordar:

“Quando nasci, um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher, / esta espécie ainda envergonhada. / Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. / Não tão feia que não possa casar, / acho o Rio de Janeiro uma beleza e / ora sim, ora não, creio / em parto sem dor. / Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. / Inauguro linhagens, fundo reinos / – dor não é amargura. / Minha tristeza não tem pedigree, / já a minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô. / Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.”

O Prémio Camões foi já atribuído, por ordem cronológica, a Miguel Torga (Portugal), João Cabral de Mello Neto (Brasil), José Craveirinha (Moçambique), Vergílio Ferreira (Portugal), Rachel de Queiroz (Brasil), Jorge Amado (Brasil), José Saramago (Portugal), Eduardo Lourenço (Portugal), Pepetela (Angola), António Cândido (Brasil), Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal), Autran Dourado (Brasil), Eugénio de Andrade (Portugal), Maria Velho da Costa (Portugal), Rubem Fonseca (Brasil), Agustina Bessa-Luís (Portugal), Lygia Fagundes Telles (Brasil), Luandino Vieira – recusado (Angola), António Lobo Antunes (Portugal), João Ubaldo Ribeiro (Brasil), Arménio Vieira (Cabo Verde), Ferreira Gullar (Brasil), Manuel António Pina (Portugal), Dalton Trevisan (Brasil), Mia Couto (Moçambique), Alberto da Costa e Silva (Brasil), Hélia Correia (Portugal), Radouan Nassar (Brasil), Manuel Alegre (Portugal), Germano Almeida (Cabo Verde), Chico Buarque (Brasil), Vítor de Aguiar e Silva (Portugal), Paulina Chiziane (Moçambique), Silviano Santiago (Brasil), João Barrento (Portugal) e Adélia Prado (Brasil).

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“Uma razão de festa para todos os leitores de poesia”, segundo o cardeal Tolentino de Mendonça que diz de Adélia Prado: “Ela é uma das criadoras mais irreverentes, mais originais da literatura contemporânea e estabelece uma ponte entre religião e poesia, que a modernidade havia declarado impossível.”

2024.06.28 – Louro de Carvalho

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