Na sua 36.ª
edição, o Prémio Camões, prémio de literatura em Língua Portuguesa, que
distinguiu, no ano passado, João Barrento, foi atribuído à densidade poética do
quotidiano de Adélia Prado – nome incontornável na poesia contemporânea
brasileira – nascida, há 88 anos, em Divinópolis, no Estado de Minas Gerais, no
Brasil, onde reside até hoje.
O anúncio surgiu, em comunicado enviado às redações pelo
Ministério da Cultura, liderado por Dalila Rodrigues, a 26 de junho, após a
reunião do júri constituído por Clara Crabbé
Rocha, Professora Catedrática aposentada da Universidade Nova de Lisboa; Isabel
Cristina Mateus, da Universidade do Minho; Francisco Noa (Moçambique),
Professor da Universidade Eduardo Mondlane; Cleber Ranieri Ribas de Almeida,
Professor Associado da Universidade Federal do Piauí (Brasil); Deonísio da
Silva, Professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (Brasil);
Dionísio Bahule, Professor da Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique).
Segundo o júri, “Adélia Prado é autora de uma obra muito original, que se
estende ao longo de décadas, com destaque para a produção poética. Herdeira de
Carlos Drummond de Andrade, o autor que a deu a conhecer e que sobre ela
escreveu as conhecidas palavras ‘Adélia
é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo…’, Adélia
Prado é, há longos anos, uma voz inconfundível na Literatura de Língua Portuguesa”.
Católica,
natural da cidade de Divinópolis, onde nasceu em 1935, formada em Filosofia,
casada, mãe de família, dona de casa, ex-professora de Religião, Adélia Prado é
uma das maiores poetisas – ou poetas – não só em Língua Portuguesa, mas deste
tempo.
O Prémio
Camões, o mais celebrado galardão literário de Língua Portuguesa, no valor de
100 mil euros, foi instituído por Portugal e pelo Brasil, em 1989, para prestar,
anualmente, uma homenagem à literatura em português, recaindo a escolha num
escritor cuja obra contribua para a projeção e para o reconhecimento da Língua
Portuguesa.
Com 88 anos,
Adélia Prado tem uma boa dúzia de livros, entre poesia e ficção. Tem três
livros editados pela extinta Cotovia: “Bagagem” (2002),
livro de estreia da autora, “Com
Licença Poética” (2003) e “Solte
os Cachorros” (2003). Em 2016, a Assírio & Alvim publicou a
antologia “Tudo Que Existe Louvará”.
***
Adélia Luzia Prado de Freitas, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde
Corrêa, nasceu em Divinópolis, a 13 de
dezembro de 1935, no Estado de Minas Gerais; é poetisa, professora,
filósofa, romancista e contista, ligada ao novo Modernismo; e é considerada
a maior poetisa viva do Brasil.
Professora por
formação, exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira
de escritora se lhe tornou a atividade central. Em termos da
Literatura Brasileira, o seu surgimento representou a revalorização do feminino
nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que incorpora os
papéis de intelectual e de mãe, de esposa e de dona de casa. A sua obra retrata
o quotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo
aspeto lúdico, uma das caraterísticas do seu estilo único. Em 1973, enviou
o manuscrito de “Bagagem” a Affonso Roamno de Sant’Anna, que assinava uma
coluna de crítica literária no Jornal
do Brasil. Admirado, o qual repassou o manuscrito a Carlos Drummond de
Andrade, que incentivou a publicação do livro pela Editora Imago, em artigo do
mesmo periódico.
Iniciou os estudos,
na sua terra natal, no Grupo Escolar Padre Matias Lobato e mora na rua Ceará. Em
1950, faleceu-lhe a mãe, o que levou a autora a escrever os seus primeiros
versos. Nessa época, concluiu o curso ginasial no Ginásio Nossa Senhora do
Sagrado Coração.
Em 1951,
iniciou o curso de Magistério na Escola Normal Mário Casassanta, que concluiu
em 1953. Começou a lecionar no Ginásio Estadual Luiz de Mello Viana Sobrinho,
em 1955.
Em 1958 casou,
em Divinópolis, com José Assunção de Freitas, funcionário do Banco do Brasil, SA.
Dessa união nasceriam cinco filhos: Eugênio (em 1959), Rubem (em 1961), Sarah (em1962),
Jordano (em 1963) e Ana Beatriz (em 1966).
Antes do
nascimento da última filha, a escritora e o marido iniciam o curso de Filosofia
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis.
Em 1972,
morreu-lhe o pai e, em 1973, formou-se em Filosofia. Nessa ocasião, enviou
carta com originais dos seus novos poemas ao poeta e crítico literário Affonso
de Sant’Anna, que os submeteu à apreciação de Drummond, o qual sugeriu,
em 1975, a Pedro Paulo de Sena Madureira, da Editora Imago, a publicação do
livro de Adélia, cujos poemas lhe pareciam “fenomenais”. Eram os originais de “Bagagem”.
A 9 de outubro
desse ano, Drummond publica uma crónica no Jornal do Brasil a enaltecer o trabalho inédito da escritora. O
livro é lançado no Rio, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel
Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino
Kubitschek, Affonso de Sant’Anna, Nélida Cuíñas Piñón e Alphonsus de
Guimaraens Filho, entre outros.
O ano de 1978
marca o lançamento de O coração disparado, agraciado com o Prémio
Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. E, em 1979, estreia em prosa, com “Soltem os cachorros”.
Com o sucesso
da sua carreira de escritora, obriga-se a deixar o magistério, após 24 anos de
trabalho. Nesse período, trabalhou no Instituto Nossa Senhora do Sagrado
Coração, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, na Fundação
Geraldo Corrêa – Hospital São João de Deus, na Escola Estadual são Vicente e na
Escola Estadual Martin Cyprien, lecionando Educação Religiosa, Moral e Cívica,
Filosofia da Educação, Relações Humanas e Introdução à Filosofia. A sua
peça, “O Clarão”, auto de
natal escrito em parceria com Lázaro Barreto, foi encenada em Divinópolis.
Em 1980,
dirige o grupo teatral amador Cara e Coragem na montagem de “O Auto da
Compadecida”, de Arainao Suassuna. Em 1981, ainda sob sua direção, o grupo
encenaria “A Invasão”, de Dias Gomes. Publica “Cacos para um vitral”. Lucy Ann
Carter apresenta, no Departament of Comparative Literature,
da Princeton University, o primeiro de uma série de estudos universitários
sobre a obra de Adélia Prado.
Em 1981,
lança “Terra de Santa Cruz”. De 1983 a 1988, exerce as funções de chefe da
Divisão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e da Cultura de
Divinópolis, a convite do prefeito, Aristides Salgado dos Santos. Entretanto, em
1984, publica “Os componentes
da banda”.
Participa, em
1985, em Portugal, num programa de intercâmbio cultural entre autores
brasileiros e portugueses, e em Havana, em Cuba, do II Encontro de
Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América. E Fernanda Montenegro
estreia, no Teatro Delfim, no Rio de Janeiro, em 1987, o espetáculo “Dona Doida”:
interlúdio, baseado em textos de livros da autora. A montagem, sob a direção de
Naum Alves de Souza, fez grande sucesso, tendo sido apresentada em diversos
estados brasileiros, nos Estados Unidos da América (EUA), em Itália e
em Portugal.
Apresenta-se,
em 1988, em Nova Iorque, na Semana Brasileira de Poesia, evento promovido
pelo Comité Internacional pela Poesia. Publica “A faca no peito”. E participa,
em Berlim, Alemanha, no Línea Colorada, um encontro de escritores
latino-americanos e alemães.
Em 1991 é
publicada “Poesia Reunida”.
Volta, em 1993, à Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Divinópolis, integrando
a equipa de orientação pedagógica na gestão da secretária Teresinha Costa
Rabelo. E, em 1994, após anos de silêncio poético, sem nenhuma palavra, nenhum
verso, ressurge com o livro “O
homem da mão seca”. Conta a autora que o livro foi iniciado em 1987,
mas, após concluir o primeiro capítulo, foi acometida de uma crise de
depressão, que a bloquearia literariamente por longo tempo. Vê “a aridez como
uma experiência necessária” e “essa temporada no deserto” fez-lhe bem.
Estreia, em
1996, no Teatro Sesi Minas, em Belo Horizonte, a peça Duas horas da
tarde no Brasil, adaptada da obra da autora por Kalluh Araújo e pela filha
de Adélia, Ana Beatriz Prado.
Em 1999, são
lançados “Manuscritos de Felipa”, “Oráculos de maio” e a sua “Prosa reunida”. Participa, em maio, na série “O
escritor por ele mesmo”, no ISM-São Paulo. Em Belo Horizonte, é apresentado,
sob a direção de Rui Moreira, “O sempre amor”, espetáculo de dança de Teresa
Ricco baseado em poemas da escritora.
Em 2010
recebeu o Prémio Literário da Fundação Biblioteca Nacional e o Prémio da
Associação Paulista dos Críticos de Arte. Recentemente, recebeu o Prémio
Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. E, em 2024, tornou-se a terceira
escritora brasileira – e a primeira escritora mineira – a vencer o Prémio
Camões em 36 anos.
Para Adélia,
o quotidiano é a própria condição da literatura. Morando na pequena Divinópolis,
cidade com aproximadamente 200 mil habitantes, tem, na prosa e na poesia, temas
recorrentes da vida de província, como a moça que arruma a cozinha, a missa, um
certo cheiro do mato, vizinhos, a gente de lá. A sua obra poética está entre as
mais relevantes do século XXI no Brasil, ladeada por nomes como Augusto
Branco e Bruna Lombardi, conforme estudo que levou em consideração a propagação
da sua obra para o público em geral e em sites
especializados em literatura, trabalhos académicos, bem como a referência aos
seus textos em obras literárias de outros autores.
***
Não podia ter nascido em outro lugar. Divinópolis ("cidade
de Deus”). Nem ter outro nome, Adélia Prado. Considerada a maior poeta viva do
Brasil, a mulher que ousou juntar a fé com a emoção mais sensorial em poesias contundentes,
publicou o primeiro livro, tinha já 40 anos. Em 1976, com o título de
“Bagagem”, onde se encontram poemas antológicos como a desconstrução de Carlos
Drummond de Andrade. Em “Com licença poética, marca o terreno da sua linguagem,
que vale a pena recordar:
“Quando nasci, um anjo esbelto, / desses que tocam
trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher, / esta espécie ainda
envergonhada. / Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. / Não
tão feia que não possa casar, / acho o Rio de Janeiro uma beleza e / ora sim,
ora não, creio / em parto sem dor. / Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. /
Inauguro linhagens, fundo reinos / – dor não é amargura. / Minha tristeza não
tem pedigree, / já a minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô. /
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.”
O Prémio Camões foi já atribuído, por ordem cronológica, a Miguel Torga
(Portugal), João Cabral de Mello Neto (Brasil), José Craveirinha (Moçambique),
Vergílio Ferreira (Portugal), Rachel de Queiroz (Brasil), Jorge Amado (Brasil),
José Saramago (Portugal), Eduardo Lourenço (Portugal), Pepetela (Angola),
António Cândido (Brasil), Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal), Autran
Dourado (Brasil), Eugénio de Andrade (Portugal), Maria Velho da Costa
(Portugal), Rubem Fonseca (Brasil), Agustina Bessa-Luís (Portugal), Lygia
Fagundes Telles (Brasil), Luandino Vieira – recusado (Angola), António Lobo
Antunes (Portugal), João Ubaldo Ribeiro (Brasil), Arménio Vieira (Cabo Verde),
Ferreira Gullar (Brasil), Manuel António Pina (Portugal), Dalton Trevisan
(Brasil), Mia Couto (Moçambique), Alberto da Costa e Silva (Brasil), Hélia
Correia (Portugal), Radouan Nassar (Brasil), Manuel Alegre (Portugal), Germano
Almeida (Cabo Verde), Chico Buarque (Brasil), Vítor de Aguiar e Silva
(Portugal), Paulina Chiziane (Moçambique), Silviano Santiago (Brasil), João
Barrento (Portugal) e Adélia Prado (Brasil).
***
“Uma razão de
festa para todos os leitores de poesia”, segundo o cardeal Tolentino de
Mendonça que diz de Adélia Prado: “Ela é uma das
criadoras mais irreverentes, mais originais da literatura
contemporânea e estabelece uma ponte entre religião e poesia, que a
modernidade havia declarado impossível.”
2024.06.28 –
Louro de Carvalho
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