domingo, 23 de junho de 2024

Ex-núncio apostólico nos EUA responde em processo por cisma

 

Foi publicada, em alguns órgãos de comunicação social, cópia de um decreto do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), da Santa Sé, a convocar o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico nos Estados Unidos da América (EUA) para comparecer às 15h30 do dia 20 de junho (ou, em alternativa, se fazer representar), no Palácio do Santo Ofício, para ser ouvido num processo penal extrajudicial por suspeita de cisma.

De acordo com a conta social do convocado no X, que reproduz uma cópia de um decreto atribuído ao DDF, remoto sucessor do Santo Ofício, Viganò, que serviu como núncio apostólico em Washington, D.C., de 2011 a 2016, deveria comparecer (ou nomear um defensor) para “tomar conhecimento das acusações e das provas relativas ao crime de cisma do que é acusado”, materializado, nomeadamente em declarações públicas que evidenciam a negação dos elementos necessários para manter a comunhão com a Igreja Católica, como a negação da legitimidade do Papa Francisco, a rutura da comunhão com ele e a rejeição do Concílio Vaticano II. O documento publicado no X afirma que, se o dignitário eclesiástico não comparecer ou não apresentar defesa por escrito, até 28 de junho, “será julgado em sua ausência”.

Como é de recordar, Viganò, em setembro de 2018, foi o protagonista da clamorosa carta em que pedia a renúncia do Papa, devido ao suposto conhecimento, pelo Papa, do caso do cardeal norte-americano Theodore McCarrick, que terá abusado de seminaristas e de outros adolescentes. Esse caso, que foi totalmente esclarecido pela Santa Sé, com a publicação de um meticuloso relatório, em novembro de 2020, que desmente o ex-núncio em todos os aspetos, não é o objeto do documento publicado na conta X. Em vez disso, Viganò seria acusado, de acordo com a sua conta, de não reconhecer a legitimidade do Pontífice, nem a do último Concílio. O DDF não comentou, de nenhum modo, o anúncio publicado na comunicação social.

“Fui convocado para o Palácio do Santo Ofício no dia 20 de junho, pessoalmente ou representado por um canonista”, escreveu o arcebispo no X. “Presumo que a sentença já esteja preparada, visto que se trata de um processo extrajudicial”.

“Acredito que a própria redação das acusações confirma as teses que tenho repetidamente enunciado nas minhas intervenções. Não é por contingência que a arguição contra mim diz reverência ao questionamento da legitimidade de Jorge Mario Bergoglio e ao repúdio do Vaticano II”, explica o prelado no X, ao comunicar a decisão do velho e relho Santo Ofício.

O arcebispo não tem qualquer intenção de se submeter a “uma farsa” na qual aqueles que deveriam julgá-lo, de forma imparcial, para defender a ortodoxia católica são os que ele acusa de heresia, de traição e de abuso de poder.   

Ao publicar o decreto, o perfil social com o nome de Viganò atribui estas palavras ao ex-núncio: “Considero uma honra as acusações contra mim”. A seguir, define o Concílio Vaticano II um “cancro ideológico, teológico, moral e litúrgico”, e a Igreja Sinodal “uma metástase”.

O secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, comentou o caso: “O arcebispo Viganò tomou algumas atitudes e alguns gestos pelos quais deve responder”, disse o purpurado, no âmbito de uma conferência na Pontifícia Universidade Urbaniana, explicando que ao ex-núncio foi dada a possibilidade de se defender.

No âmbito pessoal, recordando, a pedido dos jornalistas, os tempos em que compartilharam o trabalho, o cardeal declarou: “Sinto muito, porque sempre o apreciei como um grande trabalhador, muito fiel à Santa Sé, que, em certo sentido, também era um exemplo. Quando foi núncio apostólico, trabalhou bem.” O que aconteceu”, concluiu o secretário de Estado, “eu não sei”.

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Viganò ganhou as manchetes em 2018 com a alegação, seguida de várias cartas, de que importantes bispos tinham sido cúmplices no encobrimento de supostos abusos sexuais cometidos pelo ex-cardeal Theodore McCarrick. E pediu ao Papa Francisco que renunciasse.

Em artigo publicado por Settimna News, a 15 de janeiro de 2024, Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, desenvolve o tema.

Carlo Maria Viganò, ex-secretário do governo da Cidade-Estado do Vaticano, ex-núncio em Washington e ex-moralizador, na sua busca pela extrema intransigência, excede um tríplice limite.

Acusa o Papa de ter aceitado a posição apenas exteriormente, escondendo a intenção de prejudicar a Igreja, o que pode ser entendido “pelo comportamento de Bergoglio, ostensivamente anticatólico e heterogéneo, face à essência do papado, não havendo nenhuma ação deste homem que não pareça, claramente, uma rutura com a prática e o magistério da Igreja.

A segunda rutura é aceitar ser reordenado bispo por Richard Williamson, o bispo mais radical (e decrépito) consagrado por Lucien Lefebre, expulso da Fraternidade São Pio X.

A terceira rutura é fundar, em Viterbo, o Collegium Traditionis, seminário e albergue para padres e religiosos tradicionalistas, alegando: “Na Igreja, há centenas, milhares de clérigos, sacerdotes, religiosos e leigos a quem é negado, por uma autoridade tirânica e corrupta, o direito sacrossanto de serem fiéis a Nosso Senhor, como o têm sido os nossos irmãos na fé há dois mil anos.”

Sites e publicações de tradicionalistas católicos como Corrispondenza Romana e La comsola falam diária e extensivamente sobre estas coisas.

Multiplicam-se as acusações contra o Papa e torna-se mais clara a posição de Viganò. Não é um “sedevacantista” (embora diga que já não existe um papa legítimo), não nega a validade da renúncia de Bento XVI e aceita a eleição de Francisco como legítima. Porém, nega o sentido positivo do seu ministério, contaminado desde o início pela intenção de prejudicar a Igreja. É um verdadeiro papa, mas como, “com coerência e premeditação (realiza) o oposto do que se espera do vigário de Cristo e sucessor do príncipe dos apóstolos, por “defeito de consenso”, invalida toda a sua ação pastoral e distorce o seu sinal.

Como salienta R. de Mattei, não se trata de tese nova. Já o padre Guérand de Lauriers (1898-1988), primeiro, seguidor de Lefebvre e, depois, fundador de outro ramo intransigente, o instituto Mater Boni Consilii, considerou São Paulo VI e os seus sucessores como tal, em contradição com a tarefa do papado – tese que, para ser verdadeira, deveria demonstrar que todas as decisões individuais do Papa estão em conflito com o Evangelho e com o bem da Igreja.

A bússola diária concentra-se na reordenação, a 12 de janeiro. A informação circulou, há alguns meses, e o interessado não a negou. A reconsagração episcopal de Carlo Maria Viganòsub condicione, significa que o antigo núncio apostólico nos EUA estava convencido da tese (primeiro, apoiada e, depois, rejeitada por Lefebvre) de que são de validade ‘duvidosa’ todos os sacramentos ministrados após a reforma litúrgica subsequente ao Concílio Vaticano II, ou de que a sua validade não seria certa, devido aos desvios doutrinários cometidos pelo próprio concílio.

A reconsagração desencadeia a excomunhão latae sententiae (quer dizer que não é punição que a autoridade decide imputar ao fiel, mas é a própria autoexclusão do delinquente do seio da comunidade através do seu ato). É uma operação que reforça a paranoia de Viganò pela conspiração global de um estado profundo e de uma “Igreja profunda” paralela, que perseguem o plano obscuro para tirar a liberdade dos povos, homens e instituições.

Os únicos resistentes seriam Donald Trump e Vladimir Putin. Com efeito, o ex-núncio nos EUA é próximo dos círculos mais conservadores do catolicismo no exterior. Além de criticar o Papa, chegando ao ponto de pedir a sua exoneração, apoia, de forma persuasiva, posições antivacinas, anticientistas, antimigrantes antigay. E comentou: “Nenhum católico digno desse nome pode estar em confraria com ele Igreja bergogliana porque atua em evidente descontinuidade e rutura com todos os papas da História e com a Igreja de Cristo” sublinhou Viganò, convidando-nos a rezar por “aqueles que são perseguidos por culpa da sua fé”.

Em virtude da sua reconsagração episcopal, é natural que Viganò seja, com razão, acusado de ordenação ilícita de alguns sacerdotes e avolumam-se os rumores “sobre uma consagração episcopal que já ocorreu”.

O Collegium Traditionalis será inaugurado na ermida de Palanzana, em Viterbo. Apoiado pela fundação Exsurge Domine, fundada pelo próprio Viganò, pretende criar um presbitério próprio, para garantir o futuro dos seus cargos eclesiais. Já são quatro clérigos da Familia Christi, fraternidade sacerdotal fundada, à época, por Luigi Negri e fechada por autoridade do seu sucessor em Ferrara, Gian Carlo Perego, por deficiências graves. E as religiosas de Pienza que se opuseram à visita canónica do Dicastério para a Vida Consagrada também deveriam mudar-se para lá. “São loucos furiosos”, confidenciou um funcionário do departamento.

Os personalismos cismáticos contrastam a Fraternidade São Pio X. Porém, um certo espaço é encontrado por todos, aberto pelo impulso conservador que também percorre o corpo eclesial. As ordenações episcopais são registadas para todos, exceto para a Fraternidade São Pio X.

O frenesim das fações intransigentes e a multiplicação das ordenações episcopais turvam as águas dos que invocam o punho duro da autoridade, sem sequer saberem respeitar a sua própria.

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“A Igreja de Bergoglio não é a Igreja Católica”, sustenta o ex-núncio apostólico em Washington, que acusou Francisco de ser um “usurpador” e um “servo de Satanás”, por causa da permissão para bênçãos a casais homoafetivos. Em contrapartida, o arcebispo já foi repreendido pelo Vaticano por espalhar notícias falsas sobre a pandemia de covid-19.    Apelidado de “exterminador de papas”, trabalhou, durante mais de 10 anos, na Cúria Romana e foi afastado da secretaria do Governatorato da Cidade-Estado do Vaticano, em 2011, após cultivar desavenças na Igreja. Também é um dos pivôs do escândalo “Vatileaks”, que vazou documentos sigilosos do pontificado de Bento XVI, que viria a culminar na renúncia de Joseph Ratzinger, em 2013.   

Em 2016, o arcebispo italiano foi removido por Francisco da Nunciatura Apostólica em Washington e forçado a aposentar-se.   

Em seus anos nos EUA, Viganò estreitou laços com o clero ultraconservador americano, que, no entanto, se calou sobre a acusação de cisma. Por outro lado, o ator Jim Caviezel, que interpretou Jesus no filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson, pediu “orações” por Viganò, um “cruzado em defesa da verdade”.

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As orações são necessárias e bem-vindas, mas as acusações ao Papado e à Igreja, bem como as atitudes cismáticas, com ideias e comportamentos de hereges são de repudiar.  

2024.06.23 – Louro de Carvalho

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