Foi publicada, em alguns órgãos de comunicação social, cópia de um decreto do
Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), da Santa Sé, a convocar o arcebispo
Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico nos Estados Unidos da América (EUA) para
comparecer às 15h30 do dia 20 de junho (ou, em alternativa, se fazer
representar), no Palácio do Santo Ofício, para ser ouvido num processo penal
extrajudicial por suspeita de cisma.
De acordo com a conta social do convocado no X, que reproduz uma cópia de um decreto atribuído ao DDF, remoto sucessor
do Santo Ofício, Viganò, que serviu como núncio apostólico em Washington, D.C., de 2011 a
2016, deveria comparecer (ou nomear um defensor) para “tomar conhecimento das
acusações e das provas relativas ao crime de cisma do que é acusado”,
materializado, nomeadamente em declarações públicas que evidenciam a negação
dos elementos necessários para manter a comunhão com a Igreja Católica, como a
negação da legitimidade do Papa Francisco, a rutura da comunhão com ele e a rejeição
do Concílio Vaticano II. O documento publicado no X afirma que, se o dignitário eclesiástico não comparecer ou não
apresentar defesa por escrito, até 28 de junho, “será julgado em sua ausência”.
Como é de recordar, Viganò, em setembro de 2018, foi o protagonista da
clamorosa carta em que pedia a renúncia do Papa, devido ao suposto conhecimento,
pelo Papa, do caso do cardeal norte-americano Theodore McCarrick, que terá
abusado de seminaristas e de outros adolescentes. Esse caso, que foi totalmente
esclarecido pela Santa Sé, com a publicação de um meticuloso relatório, em
novembro de 2020, que desmente o ex-núncio em todos os aspetos, não é o objeto
do documento publicado na conta X. Em
vez disso, Viganò seria acusado, de acordo com a sua conta, de não reconhecer a
legitimidade do Pontífice, nem a do último Concílio. O DDF não comentou, de
nenhum modo, o anúncio publicado na comunicação social.
“Fui
convocado para o Palácio do Santo Ofício no dia 20 de junho, pessoalmente ou
representado por um canonista”, escreveu o arcebispo no X. “Presumo que a sentença já esteja preparada, visto que se trata
de um processo extrajudicial”.
“Acredito que a própria redação das acusações confirma as teses
que tenho repetidamente enunciado nas minhas intervenções. Não é por
contingência que a arguição contra mim diz reverência ao questionamento da
legitimidade de Jorge Mario Bergoglio e ao repúdio do Vaticano II”, explica o
prelado no X, ao comunicar a decisão do velho e relho Santo Ofício.
O
arcebispo não tem qualquer intenção de se submeter a “uma farsa” na qual
aqueles que deveriam julgá-lo, de forma imparcial, para defender a ortodoxia
católica são os que ele acusa de heresia, de traição e de abuso de poder.
Ao publicar o decreto, o perfil social com o nome de Viganò atribui estas
palavras ao ex-núncio: “Considero uma honra as acusações contra mim”. A seguir,
define o Concílio Vaticano II um “cancro ideológico, teológico, moral e
litúrgico”, e a Igreja Sinodal “uma metástase”.
O secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, comentou o caso: “O
arcebispo Viganò tomou algumas atitudes e alguns gestos pelos quais deve
responder”, disse o purpurado, no âmbito de uma conferência na Pontifícia
Universidade Urbaniana, explicando que ao ex-núncio foi dada a possibilidade de
se defender.
No âmbito pessoal, recordando, a pedido dos jornalistas, os tempos em que
compartilharam o trabalho, o cardeal declarou: “Sinto muito, porque sempre o
apreciei como um grande trabalhador, muito fiel à Santa Sé, que, em certo sentido,
também era um exemplo. Quando foi núncio apostólico, trabalhou bem.” O que
aconteceu”, concluiu o secretário de Estado, “eu não sei”.
***
Viganò
ganhou as manchetes em 2018 com a alegação, seguida de várias cartas, de
que importantes bispos tinham sido cúmplices no encobrimento de supostos abusos
sexuais cometidos pelo ex-cardeal Theodore McCarrick. E pediu ao Papa
Francisco que renunciasse.
Em artigo publicado
por Settimna News, a 15 de
janeiro de 2024, Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, desenvolve
o tema.
Carlo Maria Viganò, ex-secretário do
governo da Cidade-Estado do Vaticano, ex-núncio em Washington e ex-moralizador,
na sua busca pela extrema intransigência, excede um tríplice limite.
Acusa o Papa de ter
aceitado a posição apenas exteriormente, escondendo a intenção de prejudicar a
Igreja, o que pode ser entendido “pelo comportamento de Bergoglio, ostensivamente
anticatólico e heterogéneo, face à essência do papado, não havendo nenhuma ação
deste homem que não pareça, claramente, uma rutura com a prática e o magistério
da Igreja.
A segunda rutura é aceitar
ser reordenado bispo por Richard Williamson, o bispo mais radical (e decrépito)
consagrado por Lucien Lefebre, expulso da Fraternidade São Pio X.
A terceira rutura é
fundar, em Viterbo, o Collegium Traditionis, seminário
e albergue para padres e religiosos tradicionalistas, alegando: “Na Igreja, há
centenas, milhares de clérigos, sacerdotes, religiosos e leigos a quem é negado,
por uma autoridade tirânica e corrupta, o direito sacrossanto de serem fiéis a
Nosso Senhor, como o têm sido os nossos irmãos na fé há dois mil anos.”
Sites e publicações de
tradicionalistas católicos como Corrispondenza
Romana e La comsola falam
diária e extensivamente sobre estas coisas.
Multiplicam-se as
acusações contra o Papa e torna-se mais clara a posição de Viganò. Não
é um “sedevacantista” (embora diga que já não existe um papa legítimo), não
nega a validade da renúncia de Bento XVI e aceita a eleição
de Francisco como
legítima. Porém, nega o sentido positivo do seu ministério, contaminado desde o
início pela intenção de prejudicar a Igreja. É um verdadeiro papa, mas como,
“com coerência e premeditação (realiza) o oposto do que se espera do vigário de
Cristo e sucessor do príncipe dos apóstolos, por “defeito de consenso”,
invalida toda a sua ação pastoral e distorce o seu sinal.
Como salienta R. de Mattei,
não se trata de tese nova. Já o padre Guérand de Lauriers (1898-1988),
primeiro, seguidor de Lefebvre e,
depois, fundador de outro ramo intransigente, o instituto Mater Boni
Consilii, considerou São Paulo VI e os seus sucessores
como tal, em contradição com a tarefa do papado – tese que, para ser
verdadeira, deveria demonstrar que todas as decisões individuais do Papa estão
em conflito com o Evangelho e com o bem da Igreja.
A bússola diária
concentra-se na reordenação, a 12 de janeiro. A informação circulou, há alguns
meses, e o interessado não a negou. A reconsagração episcopal de Carlo Maria Viganò, sub
condicione, significa que o antigo núncio apostólico nos EUA estava
convencido da tese (primeiro, apoiada e, depois, rejeitada por Lefebvre)
de que são de validade ‘duvidosa’ todos os sacramentos ministrados após a reforma
litúrgica subsequente ao Concílio Vaticano II, ou de que a
sua validade não seria certa, devido aos desvios doutrinários cometidos pelo
próprio concílio.
A reconsagração
desencadeia a excomunhão latae sententiae (quer
dizer que não é punição que a autoridade decide imputar ao fiel, mas é a
própria autoexclusão do delinquente do seio da comunidade através do seu ato). É uma operação que
reforça a paranoia de Viganò pela conspiração global de um estado profundo e de
uma “Igreja profunda” paralela, que perseguem o plano obscuro para tirar a
liberdade dos povos, homens e instituições.
Os únicos resistentes
seriam Donald Trump e Vladimir Putin. Com
efeito, o ex-núncio nos EUA é próximo dos círculos mais
conservadores do catolicismo no exterior. Além de criticar o Papa, chegando
ao ponto de pedir a sua exoneração, apoia, de forma persuasiva, posições antivacinas,
anticientistas, antimigrantes e antigay. E comentou: “Nenhum católico digno desse
nome pode estar em confraria com ele Igreja bergogliana porque atua em evidente descontinuidade e rutura
com todos os papas da História e com a Igreja de Cristo” sublinhou Viganò,
convidando-nos a rezar por “aqueles que são perseguidos por culpa da sua fé”.
Em virtude da sua reconsagração
episcopal, é natural que Viganò seja, com razão, acusado de ordenação ilícita
de alguns sacerdotes e avolumam-se os rumores “sobre uma consagração episcopal
que já ocorreu”.
O Collegium Traditionalis será
inaugurado na ermida de Palanzana, em Viterbo. Apoiado pela
fundação Exsurge Domine, fundada pelo próprio Viganò,
pretende criar um presbitério próprio, para garantir o futuro dos seus cargos
eclesiais. Já são quatro clérigos da Familia Christi,
fraternidade sacerdotal fundada, à época, por Luigi Negri e fechada
por autoridade do seu sucessor em Ferrara, Gian Carlo Perego, por
deficiências graves. E as religiosas de Pienza que se opuseram à visita canónica
do Dicastério para a Vida Consagrada também deveriam mudar-se
para lá. “São loucos furiosos”, confidenciou um funcionário do departamento.
Os personalismos
cismáticos contrastam a Fraternidade São Pio X. Porém, um
certo espaço é encontrado por todos, aberto pelo impulso conservador que também
percorre o corpo eclesial. As ordenações episcopais são registadas para todos,
exceto para a Fraternidade São Pio X.
O frenesim das fações
intransigentes e a multiplicação das ordenações episcopais turvam as águas dos
que invocam o punho duro da autoridade, sem sequer saberem respeitar a sua
própria.
***
“A Igreja de Bergoglio não é a Igreja Católica”, sustenta o
ex-núncio apostólico em Washington, que acusou Francisco de ser um “usurpador”
e um “servo de Satanás”, por causa da permissão para bênçãos a casais
homoafetivos. Em contrapartida, o arcebispo já foi repreendido pelo Vaticano
por espalhar notícias falsas sobre a pandemia de covid-19.
Apelidado de “exterminador de papas”, trabalhou, durante mais de 10 anos, na
Cúria Romana e foi afastado da secretaria do Governatorato da Cidade-Estado do
Vaticano, em 2011, após cultivar desavenças na Igreja. Também é um dos pivôs do
escândalo “Vatileaks”, que vazou documentos sigilosos do pontificado de Bento
XVI, que viria a culminar na renúncia de Joseph Ratzinger, em
2013.
Em 2016, o arcebispo italiano foi removido por Francisco da
Nunciatura Apostólica em Washington e forçado a aposentar-se.
Em seus anos nos EUA, Viganò estreitou laços com o clero
ultraconservador americano, que, no entanto, se calou sobre a acusação de
cisma. Por outro lado, o ator Jim Caviezel, que interpretou Jesus no filme “A
paixão de Cristo”, de Mel Gibson, pediu “orações” por Viganò, um “cruzado em
defesa da verdade”.
***
As orações são necessárias e bem-vindas, mas as acusações ao
Papado e à Igreja, bem como as atitudes cismáticas, com ideias e comportamentos
de hereges são de repudiar.
2024.06.23
– Louro de Carvalho
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