terça-feira, 25 de junho de 2024

Grupo de trabalho sindical para travar violação do segredo de justiça!

 

Noticiou o Diário de notícias (Dn) online, a 25 de junho, que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) criou um grupo de trabalho para avançar com propostas de alterações legislativas que travem a violação do segredo de justiça, “uma entropia” no sistema cujos autores “devem ser devidamente penalizados”.

Em comunicado, o SMMP manifesta-se “preocupado com as fugas de informação em processos judiciais” e, “no âmbito dos seus deveres estatutários, para a dignificação e credibilização do sistema judiciário”, anunciou a criação de “grupo de trabalho específico”, para “refletir e avançar, junto do poder legislativo, com propostas que travem a violação do segredo de justiça e as subsequentes divulgações na praça pública”, já que “as mesmas são uma entropia no panorama judicial e que os seus autores devem ser devidamente penalizados”.

Vincando que, apesar de os casos conhecidos de violação do segredo de justiça representarem cerca de 1% dos casos e que são de difícil investigação, o SMMP não duvida de que “este é um fenómeno que atinge o âmago da justiça e a perceção que os cidadãos têm dela”. Por isso, focado nas medidas necessárias à melhoria do sistema judiciário, promete divulgar, “oportunamente”, o resultado final do grupo de trabalho, para “contribuir, com rigor e [com] profundidade, na prevenção, combate e [na] penalização da violação do segredo de justiça, que é crime”.

A pedra de toque para a quebra do marasmo nos magistrados do Ministério Público (MP) que não se reveem nos atropelos à lei e na violação dos direitos das pessoas, foi a recente divulgação, pela CNN Portugal, do teor de escutas que envolvem António Costa, no âmbito da Operação Influencer, mas não conexas com esse processo, revelando conversas com o então ministro das Infraestruturas, em que se ouve o ex-primeiro-ministro (ex-PM) a ordenar a João Galamba a demissão da ex-CEO da TAP, por motivos políticos. Na sequência da divulgação destas escutas, o MP ordenou a abertura de um inquérito à fuga de informação.

Em reação às escutas divulgadas, os subscritores do manifesto pela reforma da Justiça, criticando a atuação do MP, nomeadamente na Operação Influencer, que levou à queda do governo de António Costa, pediram explicações do MP e da sua hierarquia, designadamente da procuradora-geral da República, pois sustentam que a divulgação das escutas é mais um ato de violação das regras básicas do Estado de Direito Democrático, com envolvimento e participação de responsáveis dos setores da Justiça e da comunicação social, “que deviam estar na primeira linha da sua defesa”. E criticam a divulgação das escutas, a sua transcrição e o facto de terem sido consideradas com “relevância criminal para um processo-crime em curso”.

O secretário-geral do Partido Socialista (PS) defendeu que a procuradora-geral da República deve prestar esclarecimentos sobre a violação da lei nas escutas, considerando insuficiente a abertura do inquérito; o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) pediu a audição de Lucília Gago no Parlamento, para “prestar contas” sobre o cumprimento das garantias constitucionais e legais de proteção do segredo de justiça; e o Presidente da República (PR) defendeu que as fugas ao segredo da justiça são “um dos pontos importantes” a ponderar numa reforma do setor, visto que há um acordo em Portugal quanto à necessidade de repensar a justiça.

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É óbvio que o SMMP e os críticos do MP têm razão nas preocupações, nos lamentos e nas críticas. Porém, não cabe ao SMMP proceder à reforma da Justiça, mas à Assembleia da República (AR) e ao governo. Em tempos, o PR incentivou os operadores da Justiça a proporem a reforma da Justiça, porque os partidos não a queriam fazer. As propostas eram interessantes, embora algumas implicassem uma revisão constitucional. E tudo ficou no papel. Recentemente, o chefe de Estado disse que a reforma compete aos partidos. Não obstante, o atual presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) veio a terreiro esclarecer que não há necessidade de uma reforma estrutural da Justiça, mas de reformas pontuais (eu diria “cirúrgicas”).     

O segredo de justiça, um imperativo constitucional (ver artigo 20.º, n.º 3 da Constituição), é um regime de reserva jurídica sobre o conteúdo dos atos processuais, que se estende à proibição de divulgação da ocorrência de atos processuais e de informações acerca da sua tramitação.

Assim, implica as seguintes limitações: proibição de assistir, proibição de tomar conhecimento e proibição de divulgação. Visa garantir o sucesso da investigação (obtenção de prova) e proteger as partes envolvidas no processo, como o arguido (que, presumido inocente, pode ver a sua honra e a sua privacidade injustificadamente atingidas) e a vítima. Embora a regra geral, no processo penal, seja a da publicidade, nos termos do artigo 86.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), o juiz de instrução, na fase de inquérito, pode sujeitar o processo a segredo de justiça. De modo análogo, o MP pode determinar a sujeição do processo a segredo de justiça. Estando o processo – criminal, disciplinar ou contraordenacional – sujeito a segredo de justiça, a sua violação corresponde à prática de crime, nos termos do artigo 371.º do Código Penal (CP), no âmbito dos crimes contra a realização da justiça.

O artigo 371.º do CP estabelece que “quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de ato de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo” (n.º1). E “o agente é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias”, se o facto descrito respeitar a processo por contraordenação, até à decisão da autoridade administrativa, ou a processo disciplinar, enquanto se mantiver legalmente o segredo” (ver n.º 2).

Vem a propósito recordar que um candidato a juiz do Tribunal Constitucional (TC), que os juízes eleitos não cooptaram, devido à pressão pública, porque, entre outras asserções, referiu que o segredo de justiça era violado a troco de dinheiro (embora noutras referências não tivesse razão, nesta é provável que a tivesse). Ora, o artigo 372.º do CP, no quadro dos “crimes cometidos no exercício de funções públicas”, estipula, sobre o recebimento ou oferta indevidos de vantagem:

“O funcionário que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias” (n.º 1). Quem, nas mesmas condições, der ou prometer a funcionário ou a terceiro por indicação ou conhecimento dele, “vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, no exercício das suas funções ou por causa delas, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias” (n.º 2).

Excluem-se “as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes” (n.º 3).

O mencionado artigo 86.º do CCP, que estabelece a publicidade do processo penal, “sob pena de nulidade”, ressalvadas as exceções previstas na lei (n.º 1), estabelece que o juiz de instrução pode, a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o MP, “determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais” (n.º 2).

Se o MP entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justificam, “pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de 72 horas” (n.º 3). Neste caso, o MP, oficiosamente ou a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, “pode determinar o seu levantamento em qualquer momento do inquérito” (n.º 4). E, se o arguido, o assistente ou o ofendido requererem o levantamento do segredo de justiça, mas o MP não o determinar, os autos são remetidos ao juiz de instrução para decisão, por despacho irrecorrível” (n.º 5).

O segredo de justiça “vincula todos os sujeitos e participantes processuais” e “as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes”, e implica as proibições de “assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de ato processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir” e “a divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos”, seja qual for o motivo da divulgação (n.º 8).

Já a publicidade implica os direitos de “assistência, pelo público em geral, à realização do debate instrutório e dos atos processuais na fase de julgamento; narração dos atos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social; e consulta do auto e obtenção de cópias, extratos e certidões de quaisquer partes dele” (n.º 6). Porém, não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova. E autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for o caso, a sua destruição ou a entrega à pessoa a que digam respeito (n.º 7).

Também a autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar, ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas (identificadas no processo) do conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa a investigação e se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade, ou indispensável ao exercício de direitos pelos interessados (n.os 9 e 10). E pode autorizar a passagem de certidão, dando conhecimento do conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, se necessária a processo de natureza criminal, à instrução de processo disciplinar de natureza pública ou à dedução do pedido de indemnização civil (n.º 11).

O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa, ou para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública (n.º 13). E, pelos referidos esclarecimentos públicos, for confirmado que a pessoa publicamente posta em causa assume a qualidade de suspeito, tem o direito de ser ouvida no processo, a seu pedido, num prazo razoável, que não deverá ultrapassar os três meses, com salvaguarda dos interesses da investigação (n.º 14).

Omiti a referência aos acidentes de viação (n.º 12), por não relevar para o caso.

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Como se vê pelos normativos, o MP tem cometido erros de violação do segredo de justiça, de publicação de conteúdos, de sonegação de acesso aos processos e de não audição dos suspeitos, de uso de matéria sem relevância penal. E o erro não está na ausência ou de atualização da lei. O novo CP foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março e já vai na 63.ª versão, a da Lei n.º 15/2024, de 19 de janeiro; e o novo CPP foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro e já vai na 49.ª versão, a da Lei n.º 52/2023, de 28 de agosto.

Portanto, embora possa proceder-se a alterações cirúrgicas, como, por exemplo, o aumento das molduras penais, a solução passa pela investigação e punição dos criminosos.

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José Sócrates denunciou, recentemente, os dois pesos e duas medidas dos partidos e da opinião pública, dantes silenciosos e agora em generalizado clamor. Tem razão, mas olvida que, enquanto PM, o MP e o STJ o trataram bem: o primeiro encerrou-lhe um processo, sem haver resposta a dezenas de questões; o segundo mandou destruir as escutas, por, supostamente, não terem, relevância penal. Mais razão tem Fernanda Câncio, ao denunciar, em artigo de opinião no DN, os dois pesos dos partidos e a reiterada violação da lei e dos direitos dos cidadãos pelo MP, ao menos, desde o processo Casa Pia, e ao desmistificar o aforismo costista: “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política”. Os políticos têm medo reverencial do MP, o qual, intervindo na política stricto sensu, gera ou acentua crises. Até parece um Estado policial!

2024.06.25 – Louro de Carvalho

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