Noticiou o Diário de notícias (Dn) online,
a 25 de junho, que o
Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) criou um grupo de
trabalho para avançar com propostas de alterações legislativas que travem a violação
do segredo de justiça, “uma entropia” no sistema cujos autores “devem ser
devidamente penalizados”.
Em
comunicado, o SMMP manifesta-se “preocupado com as fugas de informação em
processos judiciais” e, “no âmbito dos seus deveres estatutários, para a
dignificação e credibilização do sistema judiciário”, anunciou a criação de “grupo
de trabalho específico”, para “refletir e avançar, junto do poder legislativo,
com propostas que travem a violação do segredo de justiça e as subsequentes
divulgações na praça pública”, já que “as mesmas são uma entropia no panorama
judicial e que os seus autores devem ser devidamente penalizados”.
Vincando que,
apesar de os casos conhecidos de violação do segredo de justiça representarem
cerca de 1% dos casos e que são de difícil investigação, o SMMP não duvida de
que “este é um fenómeno que atinge o âmago da justiça e a perceção que os
cidadãos têm dela”. Por isso, focado nas medidas necessárias à melhoria do
sistema judiciário, promete divulgar, “oportunamente”, o resultado final do
grupo de trabalho, para “contribuir, com rigor e [com] profundidade, na prevenção,
combate e [na] penalização da violação do segredo de justiça, que é crime”.
A pedra de
toque para a quebra do marasmo nos magistrados do Ministério Público (MP) que
não se reveem nos atropelos à lei e na violação dos direitos das pessoas, foi a
recente divulgação, pela CNN Portugal,
do teor de escutas que envolvem António Costa, no âmbito da Operação
Influencer, mas não conexas com esse processo, revelando conversas com o então
ministro das Infraestruturas, em que se ouve o ex-primeiro-ministro (ex-PM) a
ordenar a João Galamba a demissão da ex-CEO da TAP, por motivos políticos. Na
sequência da divulgação destas escutas, o MP ordenou a abertura de um inquérito
à fuga de informação.
Em reação às
escutas divulgadas, os subscritores do manifesto pela reforma da Justiça,
criticando a atuação do MP, nomeadamente na Operação Influencer, que levou à
queda do governo de António Costa, pediram explicações do MP e da sua
hierarquia, designadamente da procuradora-geral da República, pois sustentam
que a divulgação das escutas é mais um ato de violação das regras básicas do
Estado de Direito Democrático, com envolvimento e participação de responsáveis
dos setores da Justiça e da comunicação social, “que deviam estar na primeira
linha da sua defesa”. E criticam a divulgação das escutas, a sua transcrição e
o facto de terem sido consideradas com “relevância criminal para um
processo-crime em curso”.
O secretário-geral
do Partido Socialista (PS) defendeu que a procuradora-geral da República deve prestar
esclarecimentos sobre a violação da lei nas escutas, considerando insuficiente
a abertura do inquérito; o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) pediu a
audição de Lucília Gago no Parlamento, para “prestar contas” sobre o
cumprimento das garantias constitucionais e legais de proteção do segredo de
justiça; e o Presidente da República (PR) defendeu que as fugas ao segredo da
justiça são “um dos pontos importantes” a ponderar numa reforma do setor, visto
que há um acordo em Portugal quanto à necessidade de repensar a justiça.
***
É óbvio
que o SMMP e os críticos do MP têm razão nas preocupações, nos lamentos e nas críticas.
Porém, não cabe ao SMMP proceder à reforma da Justiça, mas à Assembleia da
República (AR) e ao governo. Em tempos, o PR incentivou os operadores da
Justiça a proporem a reforma da Justiça, porque os partidos não a queriam
fazer. As propostas eram interessantes, embora algumas implicassem uma revisão constitucional.
E tudo ficou no papel. Recentemente, o chefe de Estado disse que a reforma
compete aos partidos. Não obstante, o atual presidente do Supremo Tribunal de
Justiça (STJ) veio a terreiro esclarecer que não há necessidade de uma reforma
estrutural da Justiça, mas de reformas pontuais (eu diria “cirúrgicas”).
O segredo de justiça, um imperativo constitucional (ver artigo
20.º, n.º 3 da Constituição), é um regime de reserva jurídica sobre o conteúdo
dos atos processuais, que se estende à proibição de divulgação da ocorrência de
atos processuais e de informações acerca da sua tramitação.
Assim, implica as seguintes limitações: proibição de
assistir, proibição de tomar conhecimento e proibição de divulgação. Visa
garantir o sucesso da investigação (obtenção de prova) e proteger as partes
envolvidas no processo, como o arguido (que, presumido inocente, pode ver a sua
honra e a sua privacidade injustificadamente atingidas) e a vítima. Embora a
regra geral, no processo penal, seja a da publicidade, nos termos do artigo
86.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), o juiz de instrução, na fase de
inquérito, pode sujeitar o processo a segredo de justiça. De modo análogo, o MP
pode determinar a sujeição do processo a segredo de justiça. Estando o processo
– criminal, disciplinar ou contraordenacional – sujeito a segredo de justiça, a
sua violação corresponde à prática de crime, nos termos do artigo 371.º do
Código Penal (CP), no âmbito dos crimes
contra a realização da justiça.
O artigo 371.º do CP estabelece que “quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo,
ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de ato de
processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo
decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena
de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena
for cominada para o caso pela lei de processo” (n.º1). E “o agente é punido com
pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias”, se o facto descrito respeitar a processo
por contraordenação, até à decisão da autoridade administrativa, ou a processo
disciplinar, enquanto se mantiver legalmente o segredo” (ver n.º 2).
Vem a
propósito recordar que um candidato a juiz do Tribunal Constitucional (TC), que
os juízes eleitos não cooptaram, devido à pressão pública, porque, entre outras
asserções, referiu que o segredo de justiça era violado a troco de dinheiro (embora
noutras referências não tivesse razão, nesta é provável que a tivesse). Ora, o artigo 372.º do CP, no quadro dos “crimes
cometidos no exercício de funções
públicas”, estipula, sobre o recebimento ou oferta indevidos de vantagem:
“O funcionário que, no exercício das
suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu
consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro,
vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com
pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias” (n.º 1). Quem,
nas mesmas condições, der ou prometer a funcionário ou a terceiro por indicação
ou conhecimento dele, “vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe
seja devida, no exercício das suas funções ou por causa delas, é punido com
pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias” (n.º 2).
Excluem-se “as
condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes” (n.º 3).
O mencionado
artigo 86.º do CCP, que estabelece a publicidade
do processo penal, “sob pena de nulidade”, ressalvadas as exceções
previstas na lei (n.º 1), estabelece que o juiz de instrução pode, a
requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o MP, “determinar,
por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito,
a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos
daqueles sujeitos ou participantes processuais” (n.º 2).
Se o MP
entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos
processuais o justificam, “pode determinar a aplicação ao processo, durante a
fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a
validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de 72 horas” (n.º 3). Neste
caso, o MP, oficiosamente ou a requerimento do arguido, do assistente ou do
ofendido, “pode determinar o seu levantamento em qualquer momento do inquérito”
(n.º 4). E, se o arguido, o assistente ou o ofendido requererem o levantamento
do segredo de justiça, mas o MP não o determinar, os autos são remetidos ao
juiz de instrução para decisão, por despacho irrecorrível” (n.º 5).
O segredo de
justiça “vincula todos os sujeitos e participantes processuais” e “as pessoas
que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou
conhecimento de elementos a ele pertencentes”, e implica as proibições de “assistência
à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de ato processual a que não
tenham o direito ou o dever de assistir” e “a divulgação da ocorrência de ato
processual ou dos seus termos”, seja qual for o motivo da divulgação (n.º 8).
Já a
publicidade implica os direitos de “assistência, pelo público em geral, à
realização do debate instrutório e dos atos processuais na fase de julgamento;
narração dos atos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de
comunicação social; e consulta do auto e obtenção de cópias, extratos e
certidões de quaisquer partes dele” (n.º 6). Porém, não abrange os dados
relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova. E
autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento,
os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando,
se for o caso, a sua destruição ou a entrega à pessoa a que digam respeito (n.º
7).
Também a
autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar, ordenar ou permitir que
seja dado conhecimento a determinadas pessoas (identificadas no processo) do
conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa
a investigação e se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade, ou indispensável
ao exercício de direitos pelos interessados (n.os 9 e 10). E pode
autorizar a passagem de certidão, dando conhecimento do conteúdo de ato ou de
documento em segredo de justiça, se necessária a processo de natureza criminal,
à instrução de processo disciplinar de natureza pública ou à dedução do pedido
de indemnização civil (n.º 11).
O segredo de
justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade
judiciária, quando necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem
a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa, ou para
garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública (n.º 13). E,
pelos referidos esclarecimentos públicos, for confirmado que a pessoa
publicamente posta em causa assume a qualidade de suspeito, tem o direito de
ser ouvida no processo, a seu pedido, num prazo razoável, que não deverá
ultrapassar os três meses, com salvaguarda dos interesses da investigação (n.º
14).
Omiti a referência
aos acidentes de viação (n.º 12), por não relevar para o caso.
***
Como se vê
pelos normativos, o MP tem cometido erros de violação do segredo de justiça, de
publicação de conteúdos, de sonegação de acesso aos processos e de não audição dos
suspeitos, de uso de matéria sem relevância penal. E o erro não está na
ausência ou de atualização da lei. O novo CP foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º
48/95, de 15 de março e já vai na 63.ª versão, a da Lei n.º 15/2024, de 19 de
janeiro; e o novo CPP foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro
e já vai na 49.ª versão, a da Lei n.º 52/2023, de 28 de agosto.
Portanto,
embora possa proceder-se a alterações cirúrgicas, como, por exemplo, o aumento
das molduras penais, a solução passa pela investigação e punição dos criminosos.
***
José
Sócrates denunciou, recentemente, os dois pesos e duas medidas dos partidos e
da opinião pública, dantes silenciosos e agora em generalizado clamor. Tem razão, mas olvida que, enquanto PM, o MP e o STJ o trataram bem: o
primeiro encerrou-lhe um processo, sem haver resposta a dezenas de questões; o
segundo mandou destruir as escutas, por, supostamente, não terem, relevância
penal. Mais razão tem Fernanda Câncio, ao denunciar, em artigo de opinião no DN, os dois pesos dos partidos e a
reiterada violação da lei e dos direitos dos cidadãos pelo MP, ao menos,
desde o processo Casa Pia, e ao desmistificar o aforismo costista: “à Justiça o
que é da Justiça, à Política o que é da Política”. Os políticos têm medo reverencial
do MP, o qual, intervindo na política stricto
sensu, gera ou acentua crises. Até parece um Estado policial!
2024.06.25 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário