terça-feira, 4 de junho de 2024

No 20.º aniversário da Concordata de 2004 entre Portugal e a Santa Sé

 

A 15 de maio, na Universidade Católica Portuguesa (UCP), foi recordada a importância, para a sociedade portuguesa, da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, 20 anos após a sua assinatura.
D. Rui Valério, patriarca de Lisboa, na Conferência ‘Uma Concordata para o século XXI’, que assinalou a efeméride, defendeu que o tratado interestados tem de ser visto como referência de futuro, nas relações entre a Igreja e o Estado. “A concordata configura-se não só como um instrumento do respeito mútuo, mas também como o alicerce” da “promoção da dignidade do ser humano”, referiu. O magno chanceler da UCP considerou que o tratado internacional vem na linha de uma “harmoniosa cooperação”, ao longo da História de Portugal.
“A Concordata afigura-se como instrumento favorável para veicular e potenciar os valores civilizacionais de evangélica inspiração”, que configuram “civilizações inteiras”, observou.
Rui Valério, sustentando que ser português é “percorrer esse caminho, profundamente pela fé cristã”, apresentou a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Lisboa 2023 como um “extraordinário exemplo” desse dinamismo.
O núncio apostólico, D. Ivo Scapolo, enviou mensagem aos participantes, assinalando a importância que o Estado português atribui à Concordata e às boas relações com a Igreja Católica.
Os trabalhos começaram com intervenções de D. José Alves, arcebispo emérito de Évora, e da embaixadora Maria José Pires, copresidentes da Comissão Paritária (da Igreja Católica e da República Portuguesa, respetivamente), e de Isabel Capeloa Gil, reitora da UCP.
D. José Alves afirmou que o acordo internacional, assinado a 18 de maio de 2004, consagrou o princípio da “cooperação”, nas relações com o Estado: “A Concordata nasceu e desenvolveu-se sobre o sólido alicerce da cooperação, ideia que permeia todo o texto, do início ao fim.”
O arcebispo emérito deixou votos de que a mesma seja “mais conhecida e apreciada”, no âmbito jurídico e sublinhou que o texto assume o “respeito pela autonomia e independência” de cada uma das partes, na revisão da Concordata de 1940, face às mudanças eclesiais, políticas e sociais.
“Desde o início do processo, estabeleceu-se um bom clima de cooperação”, por “vontade expressa” das partes, recordou o hierarca, segundo o qual, nas últimas duas décadas “tem-se mantido sempre um clima pacífico” e, apesar de permanecerem questões em aberto, nunca houve necessidade de recorrer ao tribunal para resolver temáticas do foro concordatário.
“O alicerce da cooperação mantém-se sólido”, assumiu, deixando votos de que se possa alcançar, “a breve prazo, o que ainda falta, que é pouco”.
Já a embaixadora Maria José Pires, falando da Concordata de 2004 como “um documento moderno, com grande significado cultural”, sustentou que dá resposta às “novas exigências”, nomeadamente a pertença de Portugal à União Europeia (UE), e implica um “trabalho contínuo, que permanece na agenda”. O “espírito de excelente colaboração”, acrescentou, permitiu que, nestes 20 anos, tenha sido regulamentada a lecionação da disciplina de EMRC [Educação Moral Religiosa Católica] e a assistência religiosa em diversos âmbitos.
Maria José Pires realçou que a consagração do espírito de “cooperação”, no texto da Concordata, levou a “inovações dignas de mérito e de relevância”, com a criação de dois organismos de “diálogo permanente”, a comissão paritária e a comissão bilateral, para a cooperação no atinente aos bens da Igreja que integram o património cultural português.
Isabel Capeloa Gil saudou os participantes, frisando que assinalar o 20.º aniversário da Concordata é “mais do que um olhar sobre o passado”. Lembrou que a “especificidade institucional” da UCP está consagrada num “documento estruturante” para a sociedade, no qual se promove um “relacionamento livre e plenamente respeitador” da autonomia da Igreja Católica e do Estado. E desejou um futuro de relações institucionais “robusto e coeso”.
O programa incluiu conferências de D. Manuel Clemente, patriarca emérito de Lisboa, sobre as implicações da JMJ 2023; de Maria da Glória Garcia, ex-reitora da UCP, sobre o estatuto jurídico da instituição académica; e de Mons. Saturino Gomes, membro da Comissão Paritária da Concordata, sobre o trabalho deste organismo.
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A Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé, que reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica, foi assinada a 18 de maio de 2004, pelo primeiro-ministro, José Manuel Durão Barroso, pela República Portuguesa, e pelo cardeal Angelo Sodano, pela santa Sé, de que era secretário de Estado; foi aprovada, a 30 de setembro para ratificação, pela Resolução n.º 74/2004 (publicada a 16 de novembro), da Assembleia da República (AR) com os votos favoráveis do Partido Social Democrata (PSD), do Partido do Centro Democrático Social/Partido Popular (CDS-PP) e do Partido Socialista (PS); e foi ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 80/2004, de 16 de novembro.
Vários fatores e circunstâncias levaram à nova Concordata, nomeadamente as transformações a nível social, cultural, político, económico que marcaram a sociedade portuguesa; o Concílio Ecuménico Vaticano II; as alterações políticas, decorrentes do 25 de Abril, como a transição para um regime democrático, a adesão à UE, de que Portugal é membro de pleno direito, a grande reforma fiscal da década de 1980; e a promulgação da nova Lei da Liberdade Religiosa (LLR), a 26 de abril 2001, que veio pôr em realce o princípio de igualdade de direitos entre todas as confissões religiosas e da liberdade religiosa para todos os cidadãos.
O Papa São João Paulo II, ao receber o primeiro-ministro, após a assinatura da Concordata, referiu “os sentimentos de consideração recíproca que animam as relações entre a Santa Sé e Portugal”: “Exprimo o meu profundo apreço pela atenção que o governo e a Assembleia da República portuguesa demonstram em relação à missão da Igreja, culminada na hodierna assinatura.”
Pela primeira vez, se reconhece a personalidade jurídica da CEP, respeitando a sua identidade estatutária. Pode celebrar acordos e protocolos com o governo, no âmbito das suas competências. Segundo o Código de Direito Canónico, “a Conferência episcopal, instituição permanente, é o agrupamento dos Bispos de uma nação ou determinado território, que exercem em conjunto certas funções pastorais a favor dos fiéis do seu território, a fim de promoverem o maior bem que a Igreja oferece aos homens, sobretudo por formas e métodos de apostolado convenientemente ajustados às circunstâncias do tempo e do lugar, nos termos do direito” (cân. 447). A Carta Apostólica “Apostolos Suos” (21 de maio de 1998) define o estatuto teológico e jurídico das Conferências, enquanto instituições de direito eclesiástico, não supranacionais.
O acordo aborda questões ligadas à fiscalidade, com o pagamento de impostos – imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) – por parte dos eclesiásticos e das instituições religiosas detentoras de atividades como a solidariedade social, educação, cultura, de comércio ou lucrativas.
Criou-se uma comissão bilateral para o desenvolvimento da cooperação, quanto aos bens da Igreja que integre o património cultural português, numa dinâmica de “cooperação” entre as partes. Consagra-se a existência da disciplina de EMRC, continuando os professores a ser propostos pelos bispos, nomeados pelo Estado e pagos pela tutela. E reconhece a especificidade da UCP e a possibilidade de as escolas superiores católicas (seminários e outros estabelecimentos de formação e de cultura eclesiástica) conferirem graus e títulos nos termos do direito português.
Este tratado bilateral veio substituir a Concordata de 1940, com o objetivo de renovar as relações entre a Igreja Católica e Portugal e de redefinir o estatuto da Religião Católica nas relações dos cidadãos e das instituições católicas com o Estado Português.
Consta de 33 artigos, cujo teor pode ser sintetizado nos termos seguintes:
Evoca os laços históricos entre a Igreja Católica e Portugal, referindo o papel importante da Concordata de 1940, e reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica, pelo que estabelece relações diplomáticas entre as partes.
Faculta a liberdade religiosa à Igreja Católica, aos seus fiéis e às suas pessoas jurídicas, tal como reconhece o domingo e outros dias festivos católicos. Nestes termos, são reconhecidos como feriados nacionais religiosos: Ano Novo e Nossa Senhora Mãe de Deus (1 de janeiro), Corpo de Deus (móvel, conforme a Páscoa), Dia de Todos os Santos (1 de novembro), Imaculada Conceição de Maria (8 de dezembro) e Natal (25 de dezembro).
Possibilita a cooperação, a nível internacional, entre a Igreja Católica e Portugal, nomeadamente em questões de paz, de justiça e humanitárias.
Estabelece a confidencialidade eclesiástica e isenta o clero dos deveres judiciais, assegurando o Estado proteção aos locais, aos sacerdotes e às práticas católicas.
Reconhece a personalidade jurídica da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), uma novidade.
Permite à Igreja Católica organizar-se territorialmente e nomear bispos, bastando informar o governo, não sendo mais preciso obter o seu acordo, como na Concordata anterior (em que o governo podia vetar a escolha de um bispo feita pelo Papa).
O Estado reconhece personalidade jurídica civil a todas as entidades criadas pela Igreja Católica, equiparando-as às pessoas coletivas de idêntica natureza, o que também se aplica a entidades com fins de assistência e de solidariedade.
Confere efeitos civis ao casamento religioso, não sendo necessária a celebração prévia de um casamento civil, sendo data do casamento religioso considerada a data do casamento para fins oficiais. Adverte gravemente os fiéis Católicos a não se divorciarem. E o Estado reconhece a nulidade do casamento religioso, com efeitos civis, examinando apenas a forma, e não o conteúdo da decisão eclesiástica.
Estabelece a assistência religiosa e espiritual aos militares e aos agentes das forças de segurança. E estabelece a capelania hospitalar e prisional.
Define as condições da EMRC nas escolas públicas, como serviço de apoio às famílias. Reconhece os seminários como instituições superiores, bem como os títulos, graus ou estudos ali facultados. E permite à Igreja Católica estabelecer escolas em qualquer nível de ensino.
Mantém afetos ao culto católico os imóveis religiosos classificados como monumentos nacionais ou de interesse público, sejam ou não propriedade do Estado. Regula todo o uso dos imóveis, cabendo ao Estado a manutenção dos edifícios classificados que sejam propriedade do Estado. E o Estado empenha-se na guarda dos bens eclesiásticos móveis e imóveis, estabelecendo-se uma comissão bilateral para cooperar quanto ao seu uso.
Limita-se a expropriação de bens imóveis afetos ao culto. E o Estado empenha-se em afetar espaços a fins religiosos, dando à Igreja Católica direito de audiência prévia.
Determina a total isenção fiscal sobre rendimentos e bens da Igreja Católica destinados à sua missão espiritual, cultural e caritativa, e a dedução fiscal nos rendimentos dos ofertantes. E inclui a Igreja Católica no sistema de perceção de receitas fiscais.
Estabelece-se a possibilidade de desenvolvimento de outros acordos entre a Igreja Católica e o Estado e cria-se uma comissão paritária para levar a cabo a Concordata.
Ficam ressalvadas as situações jurídicas anteriores. E prevê-se a possibilidade de elaboração, revisão e publicação da legislação complementar eventualmente necessária, devendo, para o efeito, efetuar-se consultas recíprocas.
A Concordata entrou em vigor com a troca dos instrumentos de ratificação, substituindo a Concordata de 7 de maio de 1940.
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É bom exemplo de cooperação pela justiça, pela paz, pelas questões humanitárias e pela cultura. É de questionar por que motivo não serve de exemplo para outras religiões, à luz da LLR.   

2024.06.04 – Louro de Carvalho

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