quarta-feira, 12 de junho de 2024

Camões lamenta que os homens tornem a vida injusta

 

Arrancaram, oficialmente, a 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, as comemorações do V Centenário do Nacimento de Luís de Camões, de acordo com o vasto programa apresentado (a desenvolver de 10 de junho de 2024 a 10 de junho de 2026), no dia 5, no Mosteiro dos Jerónimos, pela Comissão para as Comemorações do V Centenário de Luís de Camões, nomeada pela ministra da Cultura, Dalila Rodrigues.

Apesar de o poeta não ter sido, em vida, objeto do devido reconhecimento por parte dos poderes e da sociedade (a magra tença que lhe foi atribuída deve-se, não à obra poética, mas ao serviço militar prestado), os homens da literatura e da cultura, aquando do III Centenário da publicação de Os Lusíadas e da morte do eminente poeta lírico e épico, deram-lhe o devido destaque, de modo que, após publicação de “Camões”, poema lírico-narrativo de Almeida Garrett, nunca mais o poeta quinhentista deixou de ser considerado o suprassumo da nossa literatura épica e lírica e o inspirador de tanta obra poética produzida – em seguimento ou em contraste – desde a era de Quinhentos até aos nossos dias. Camões é o homem fustigado pelas agruras da vida e atormentado pelos erros, mas é, sobretudo, o fiel depositário de um enorme acervo de erudição e de cultura, caldeado por um fino sentido de observação, na dialética entre o apelo do espírito e a atração carnal; e, sobretudo, é o burilador da palavra, o cultor das ideias, o arauto dos sentimentos, o crítico da mediocridade e o cultor dos valores pátrios e humanísticos.

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O poema Os Lusíadas vale pelo grandíloquo tom épico com que enaltece os feitos de Portugal na sua História, marcada pela expansão marítima, mostrando ao Mundo conhecido novos Mundos. Todavia, ganha relevo, na obra épica, o comentário do homem que percorreu o Mundo sobre a condição humana e as surpresas que a vida apresenta, em tons negros, “a um bicho da terra tão pequeno”. Com efeito, o poderio de Portugal estava em decadência e a sociedade estava imersa na mediocridade, na cobiça, na inveja e na tristeza. Camões, se vivesse neste século XXI teria tantas razões (ou mais) para lamento, como no século XVI. O poeta, que alia ao saber livresco o da experiência, sente, canta, lamenta e critica.       

Assim, no fim do Canto I, estrofes 105 e 106 (C. I, 105-106), a partir da traição em Mombaça, surge o lamento sobre os enganos urdidos pelos inimigos, aliados aos perigos que a Natureza proporciona. Apesar da esperança que depositamos na vida e da confiança que pomos nas pessoas, ficamos perplexos e inseguros. O mar tão perigoso e tão tormentoso ameaça com a morte; e a terra, com tantas guerras e tantas intrigas, causa tédio, cansaço e nojo. É caso para nos interrogamos: “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida,/ Que não se arme e se indigne o céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno?” (C. I, 106)

O episódio do “Velho do Restelo” (C. IV, 94-104) constitui uma crítica ao que ele chama “estanha condição” do homem. Segundo esta voz contestatária, a viagem à Índia é motivada pela vontade de obter a “glória de mandar” e é fruto da “vã cobiça” e desta vaidade “a que chamamos Fama”. Tal fama e tal glória apenas servem para enganar “o povo néscio”, que não conhece a diferença entre o ser e o parecer. São impulsos que só acarretarão desgraças: desamparos, adultérios, ruína económica, perigos e mortes. Porém, isto é próprio da condição humana, que é a do ser inquieto e insatisfeito: “dura inquietação da alma e da vida”.

Perto do final do Canto V (C. V, 92-98), o poeta tece um longo comentário aos Portugueses, nomeadamente aos que lideram os acontecimentos e se julgam importantes. Todos gostam de ouvir louvar os seus feitos e as pessoas ilustres de cada tempo gostam de superar os seus antepassados. Na verdade, o elogio e o louvor estimulam a ação e a superação.

Também Alexandre Magno, rei da Macedónia, e Temístocles, general ateniense, embora apreciassem os feitos dos seus heróis, gostavam ainda mais de ouvir os versos em que eles próprios eram elogiados.

Vasco da Gama, ao contar ao Rei de Melinde, os feitos dos Portugueses, tenta mostrar que as suas navegações são muito mais gloriosas do que as dos antigos, mormente os que foram heróis protegidos pelo imperador Augusto.

Em Portugal, há excelentes e célebres guerreiros, mas, pela sua rudeza, não possuem, como os outros, os dons necessários para apreciarem a poesia ou para fazem versos. 

César, Cipião e Alexandre, grandes homens de armas, liam e apreciavam os grandes escritores. Este último apreciava tanto os versos de Homero que os tinha sempre à cabeceira. E César, “… numa mão a pena e noutra a lança”,/ igualava de Cícero a eloquência”. Em toda a parte, exceto entre os Portugueses, os capitães ilustres nunca deixaram de apreciar a cultura. Os Portugueses não o fazem, porque não a conhecem e não se interessam por ela. Ainda hoje é apontada como o parente pobre dos poderes instalados, que a consideram excessivamente cara. Porém, gerações sem cultura ficam muito mais caras.

E, tal como não há capitães célebres, também não há, no país, grandes poetas ou heróis célebres. E o mais grave é que isso a muitos pouco interessa.  

No final do Canto VI (C. VI, 95-99), o poeta censura aqueles que ascendem a altos cargos, graças às condições de nascimento ou através de influências indevidas. Com efeito, é através da coragem demonstrada em ocasiões de perigo que se alcança a fama e a glória. A glória, que não é herdada dos antepassados, nem se atinge sem esforço, implica a renúncia aos banquetes de excessos, aos vãos passeios, ao hedonismo e à confiança na sorte. Ao invés, exige coragem, preparação e esforço para enfrentar, sem desistência, todo o tipo de contrariedades e de perigos, na terra e no mar. O herói não ambiciona honras, ventura e dinheiro, mas cultiva a “virtude justa e dura”. Aceita, em todo o caso, a ascensão na vida (ou o prémio pelos seus feitos) por direito, não por afetos; contra a sua vontade, “não rogando”.     

Junto ao final do Canto VII (C. VII, 78-82), Camões enfatiza que percorreu o Mundo, enfrentou guerras e esteve envolvido em perigos na terra e no mar, cultivou a arte poética, cantou os heróis portugueses, enfim, aliou à coragem do soldado a veia e o trabalho do artista. Porém, não é apreciado pelos seus contemporâneos. Em troca de tudo o que tem feito, só recebe mais trabalhos e privações. Ora, não é tratando os poetas da forma como ele vem sendo tratado pelos Portugueses, incultos e desinteressados da poesia, que poderia torná-los célebres, que se dá exemplo às futuras gerações e se incentiva o surgimento de novos poetas.

O final do Canto VIII (C. VIII, 96-99) constitui uma sátira ao poder do dinheiro e àqueles que se deixam corromper por ele, fenómeno que atinge todos os escalões da sociedade, a ponto de se dizer que “todo o homem tem o seu preço” ou que “o dinheiro abre todas as portas”.

Vasco da Gama não desembarca, porque não confia no ambicioso Catual, mas espera que a verdade venha à tona (virá sempre).

Os interesses materiais têm tanto poder sobre os ricos como sobre os pobres: “Quanto no rico, assim no pobre,/ Pode o vil interesse e sede immiga/ Do dinheiro, que a tudo nos obriga.” Pelo ouro, renderam-se soldados, quando a suas fortalezas se encontravam abastecidas. Alguns, a troco de dinheiro, atraiçoam os amigos. E a ambição material pode obrigar nobres, capitães e donzelas a renderem-se ao seu poder, mesmo sabendo que a sua honra ficará manchada.

O ouro leva alguns a agir contra os seus princípios éticos e culturais (“Este deprava, às vezes, as ciências/ Os juízos cegando e as consciências”), força a perversão da interpretação dos textos bíblicos e legislativos, capacita para o cometimento do perjúrio, faz com que o legislador produza leis arbitrárias e induz os juízes à prática de injustiças.

Por fim, o ouro corrompe até os membros do clero, embora sob a capa da virtude: “Até os que só a Deus omnipotente/ Se dedicam, mil vezes ouvireis/ Que corrompe este encantador, e ilude;/ Mas não sem cor, contudo, de virtude.”  

Por seu turno, o final do Canto IX (C. IX, 92-95) compagina um minicódigo de valores para alcançar a verdadeira fama: despertar do “ócio ignaro”,/ Que o ânimo, de livre, faz escravo”; refrear a língua e a ambição, que levam ao torpe vício da tirania; observar o princípio de que, no atinente às honras e ao ouro, “Milhor é merecê-los sem os ter, / que possuí-los sem os merecer”; dar, em tempo de paz, leis iguais e constantes, “Que aos grandes não deem o dos pequenos”; enfrentar a guerra e todos os perigos; e ser bom conselheiro. Assim se fazem os heróis.

No final do poema e do Canto X (C. X, 145-156), sobressai o desencanto do épico, em resultado da consciência de que canta para “gente surda e endurecida”, que não valoriza ao seu canto. Por outro lado, o poeta deixa um retrato negativo do Portugal do seu tempo, uma pátria “metida/ No gosto da cobiça e na rudeza/ Duma austera, apagada e vil tristeza”. Porém, cantando o heroísmo dos antepassados, incita os contemporâneos à ação.

Camões, que se assume como “humilde, baixo e rudo”, logo se afirma como homem a quem não falta “honesto estudo, / Com longa experiência misturado/ Nem engenho. Isto, aliado ao serviço das armas, dá-nos o retrato do homem ideal da Renascença: o saber feito de estudo e de experiência, o talento e a inspiração artísticos e a coragem e o desapego do bom soldado.

Todo este conjunto de instâncias finais do Canto X constituem uma plataforma discursiva de invectivação ao rei, enquanto esperança última de uma liderança capaz de ação épica, já que é senhor “só de vassalos excelentes”. Na verdade, o poeta manifesta a esperança de que o rei saberá incentivar os seus “vassalos excelentes”, que esperam a sua liderança para agirem. Espera que o soberano exerça o poder com humanidade e com a humildade de quem procura os conselhos mais sábios, que saiba estimular as energias latentes para dar continuidade à glorificação do “peito ilustre lusitano”, propiciando matéria a novo canto.

O poema encerra com uma mensagem que evoca o passado heroico, contempla o presente de mediocridade e de esperança e augura um futuro de nova glória. Efetivamente, a glória do passado deve ser encarada como exemplo presente para construir um futuro de grandeza e de glória.

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Em suma, os lamentos, as críticas e os conselhos do poeta encontram-se em plena atualidade, devendo ser assumidos por todos os estratos sociais, nomeadamente os legisladores, os governantes, os magistrados, os militares, os clérigos, os operadores económicos e os agentes culturais. A corrupção é um cancro social, a ética faz o homem e a cultura cria e robustece o povo.

Como Camões, é urgente alimentar a esperança, contra tudo e contra todos.

2024.06.12 – Louro de Carvalho

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