sexta-feira, 28 de junho de 2024

Antigo presbítero anglicano foi ordenado bispo católico

 

Alguma comunicação social noticiou, a 27 de junho, que, pela primeira vez, um ex-padre anglicano foi consagrado bispo no Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham, na Grã-Bretanha, um ordinariato criado para dar aos anglicanos um caminho para entrarem em plena comunhão com a Igreja Católica.
Quando se noticia um facto que surgiu pela primeira vez, fico de pé atrás, porque já deparei, na vida, com factos havidos como o primeiro do género, como vi eventos com X edições, quando eram, de facto, mais ou instituições havidas como criadas e com início de atividade mais tarde do que realmente aconteceu. No caso vertente, é a primeira vez que um presbítero anglicano (não há ex-padres, nem ex-presbíteros: o que há é sacerdotes que deixaram o exercício das ordens; e, embora se duvide da sucessão apostólica no anglicanismo, é insultuoso chamar ex-padres a tais criaturas). Porém, não é a primeira vez que um padre anglicano é ordenado sacerdote católico e até criado cardeal.
Efetivamente, muitos padres anglicanos convertidos ao catolicismo, mesmo casados, puderam e podem ser ordenados de presbíteros católicos (mantendo o estado de casados), obviamente depois de receberem a ordenação diaconal. E já, pelo menos, 12 bispos anglicanos que se converteram ao catolicismo foram ordenados de presbíteros católicos. Porém, não ascenderam ao episcopado por serem casados. Assim, é inédito que um presbítero anglicano, convertido ao catolicismo e que recebeu a ordenação presbiteral católica foi ordenado bispo no Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham, no Reino Unido.
Este ordinariato equivale a uma diocese, congrega os anglicanos que entraram em plena comunhão com a Igreja Católica e possui paróquias em toda a Inglaterra, na Escócia e no País de Gales. E David Waller, 63 anos, é o seu primeiro bispo e a ordenação episcopal foi presidida pelo cardeal Victor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), da Santa Sé, coadjuvado pelo cardeal Vincent Nichols, arcebispo de Westminster, e pelos bispos Stephen Lopes e Anthony Randazzo, chefes dos ordinariatos anglicano-católicos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália. A celebração aconteceu na catedral de Westminster, a 22 de junho, dia da festa dos santos ingleses John Fisher e Thomas More, e foi vista como “um sinal de apoio e confiança de Roma”, depois de terem corrido rumores de que a Santa Sé iria acabar com este ordinariato, como assinala a Catholic News Agency (CNA).
Juntamente com os ordinariatos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália, o ordinariato de Walsingham foi estabelecido, em 2011, pelo Papa Bento XVI, e foi, até agora, liderado por Keith Newton, ex-anglicano que foi ordenado padre na Igreja Católica, mas não foi ordenado bispo por ser casado. Newton, atualmente de 72 anos, vai reformar-se.
Na homilia, o cardeal Fernández referiu-se à “rica herança inglesa” (começando com São Pedro e os outros apóstolos e continuando até hoje) dos anglicanos convertidos ao catolicismo e disse que “o ordinariato é convidado a ver os aspetos positivos da tradição anglicana preservados nele como ‘um dom precioso […] e um tesouro a ser partilhado”. E vincou: “O que recebi da Igreja, agora passo para vós.”
Após a ordenação, o Ordinariato de Walsingham declarou, em comunicado, que “é uma grande honra que o Papa Francisco tenha nomeado um dos nossos próprios sacerdotes para ser o segundo ordinário e mostre o seu compromisso com os ordinariatos estabelecidos sob [a constituição apostólica] Anglicanorum Coetibus pelo seu antecessor”.
Waller ingressou no sacerdócio anglicano em 1992, converteu-se à Igreja Católica em 2011 e tornou-se padre católico (presbítero ou sacerdote) no mesmo ano. Antes de ser nomeado para liderar o Ordinariato de Walsingham, tinha o cargo de vigário-geral. Depois de receber três recomendações do conselho governante do ordinariato, o Papa Francisco anunciou que nomearia Waller como o novo chefe do ordinariato em 29 de abril.
O Ordinariato de Walsingham foi o primeiro dos três, no Mundo, a ter influência na escolha do seu líder. Em abril, Newton havia dito ao National Catholic Register, parceiro de notícias irmão da CNA, que acreditava que permitir esta intervenção ao conselho, que, geralmente, é exclusiva do núncio apostólico, “demonstra a confiança da Santa Sé no Ordinariato no Reino Unido”.
Os membros do Ordinariato celebram as liturgias segundo uma tradição litúrgica enraizada no património anglicano, embora ainda esteja em total união com o papa e a Igreja Católica.
Juntamente com os seus ordinariatos irmãos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália, o Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham foi estabelecido pelo Papa Bento XVI em 2011, pela constituição apostólica Anglicanorum Coetibus. Embora aberto a católicos de todas as origens, o ordinariado existe, principalmente, como forma de os ex-anglicanos serem recebidos na Igreja Católica, mantendo muitas das tradições e práticas inglesas.
Embora os ordinariados nos EUA e na Austrália tenham os seus próprios bispos, nenhum dos quais era ex-anglicano, Waller é o primeiro bispo a liderar o ordinariato no Reino Unido.
A decisão do Vaticano de tornar bispo o chefe do ordinariato na Grã-Bretanha tem sido amplamente vista como um sinal de apoio e confiança de Roma. Numa entrevista à OSV News, Waller disse que, embora houvesse rumores de que “Roma iria pôr fim ao nosso ordinariato”, “esta nunca foi a atitude da Santa Sé, que sempre foi solidária e atenciosa.”
O Padre Mark Elliott Smith, reitor da igreja central do ordinariato, Nossa Senhora da Assunção e São Gregório, em Warwick Street, em Londres, declarou à CNA que acredita que a ordenação do novo bispo é “uma notícia imensamente boa para o ordinariato aqui no Reino Unido”.
“Dom David não é apenas o nosso primeiro bispo ordinário, mas também um sacerdote originalmente incardinado no ordinariato, ordenado em 2011 ao lado de todos aqueles que primeiro aceitaram com gratidão o convite da Anglicanorum Coetibus”, explicou. “Na minha opinião, demonstra que Roma tem confiança na forma como o Ordinariato progrediu, nos 13 anos, desde que foi estabelecido e confia na sua capacidade de discernir como deve ser liderado e de identificar as qualidades necessárias no seu líder”.
Smith disse que a elevação de Waller “é também um sinal claro de que [o Vaticano] acredita que a herança litúrgica distintiva do ordinariato tem o poder e a beleza para atrair pessoas a Cristo e à Igreja” dando energia renovada e propósito para o Ordinariato, ao iniciar a nova fase da sua vida.
Num comunicado, logo após o seu anúncio, Waller disse que foi “tanto uma humildade como uma grande honra” ter sido nomeado e acrescentou que “os últimos 13 anos foram um tempo de graça e bênção, na medida que comunidades pequenas e vulneráveis ​​cresceram em confiança, regozijando-se por ser uma parte plena, mas distinta, da Igreja Católica”
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Antes de David Waller, houve, pelo menos, um sacerdote anglicano convertido ao catolicismo que foi criado cardeal, mas que declinou a ordenação episcopal, contrariando o costume.
John Henry Newman nasceu em Londres, a 21 de fevereiro de 1801, e faleceu em Edgbaston, a 11 de agosto de 1890. Foi sacerdote católico inglês convertido do anglicanismo ao catolicismo, posteriormente nomeado cardeal pelo Papa Leão XIII, em 1879. Foi declarado venerável, em 1991, pelo Papa S. João Paulo II, beatificado, em Birmingham, no Reino Unido, a 19 de setembro de 2010, pelo Papa Bento XVI, e canonizado pelo Papa Francisco, em Roma, a 13 de outubro de 2019. Na cerimónia da canonização, o escultor Tim Tolkien (bisneto de John Ronald Reuel Tolkien, conhecido por J.R.R. Tolkien, também convertido catolicismo) apresentou uma estátua de Newman, que foi benzida pelo Papa.
Newman estudou no Trinity College de Oxford (1816) e no Oriel College (1822) e foi ordenado presbítero da Igreja Anglicana. Tornou-se, mais tarde, um dos líderes do “Movimento de Oxford”, pois considerava o anglicanismo do seu tempo excessivamente protestante e laicizado e o catolicismo corrompido, em relação às origens do cristianismo. Buscou uma “via média” entre os dois; e, pesquisando sobre os primórdios da Igreja Católica e do cristianismo em geral, acabou por se converter ao catolicismo. Depois da conversão ao catolicismo (1845), foi ordenado sacerdote da Igreja Católica em Roma (1847), abriu e dirigiu, em Birmingham, um oratório de S. Filipe de Néri e foi, ainda, reitor da Universidade Católica da Irlanda (1854-1858).
Nas duas décadas seguintes, viu-se envolto em controvérsias e desconfianças por parte da própria Igreja, a que respondeu com uma demonstração magna de sinceridade e entrega: escreveu a “Apologia pro vita sua” (1865), que anulou as críticas e restabeleceu a sua reputação, tanto entre católicos como entre anglicanos. Foi convidado a participar no Concílio Vaticano I como consultor teológico, mas declinou o convite, em virtude de ter de publicar, na mesma época, o seu “Essay in Aid of a Grammar of assent”, uma profunda investigação sobre como a pessoa humana atinge as suas convicções.
O seu pensamento é representativo da filosofia da ação e da filosofia da vida e o seu apostolado no campo da inteligência foi intenso. As suas obras completas atingem 37 tomos, sobre os mais variados assuntos – Teologia, Filosofia, Literatura, História, Espiritualidade – e os arquivos do Oratório conservam as 70 mil cartas que escreveu. As obras que publicou sobre a Universidade de Dublin tornaram-se clássicas para a Literatura Católica. Os Sermões espelham sólida piedade e grande amor pelas almas.
Uma contribuição muito importante do seu pensamento teológico foi o desenvolvimento da Doutrina Católica, que foi considerado por Bento XVI como “contributo decisivo para a renovação da Teologia”, introduzido no livro Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, de 1845, onde expôs a ideia do desenvolvimento da doutrina para defender a doutrina católica de ataques e de críticas de alguns anglicanos e protestantes, que achavam que alguns elementos do catolicismo eram corrupções ou inovações contrárias aos ensinamentos de Jesus Cristo. Também argumentou que várias doutrinas católicas rejeitadas pelos protestantes (como a hiperdulia ou o purgatório) tinham um histórico de desenvolvimento análogo às doutrinas que foram aceites pelos protestantes (como a Trindade ou a união hipostática de Cristo). Este desenvolvimento foi consequência natural e benéfica do estudo e reflexão da razão humana sobre a Revelação divina, que é imutável. Porém, este estudo teológico levaria a Igreja Católica a perceber, progressivamente, certas realidades reveladas que, antes, não tinha compreendido explícita e totalmente.
O cardeal Newman defendeu que “a infalibilidade da Igreja é como uma medida adotada pela misericórdia do Criador para preservar a [verdadeira] religião no Mundo e para refrear a liberdade de pensamento que, evidentemente, em si mesma, é um dos nossos maiores dons naturais, mas que urge salvar dos seus próprios excessos suicidas”. E defendeu que a primazia papal, cuja força provém da Revelação divina, “completa a consciência natural iluminada de maneira apenas incompleta”, e “a sua razão de ser é o facto de ser o campeão da lei moral e da consciência”. Logo, para Newman, a liberdade de consciência, que implica o cumprimento obrigatório dos deveres divinos ditados pela própria consciência, é compatível com a primazia e com a infalibilidade papais.
A sabedoria e a ortodoxia doutrinária de Newman foram louvadas por Leão XIII, Pio X, e Pio XII. No século XX, já depois da morte do cardeal Newman, o Papa Pio XII chegou mesmo a afirmar que Newman é a “Glória da Inglaterra e de toda a Igreja”. A canonização de John Henry Newman, um grande defensor da consciência (que não dispensa da observância dos princípios éticos e do cumprimento da lei moral), ofereceu o ensejo para considerar, novamente, as profundezas teológicas do retorno do Papa Francisco à tradição católica negligenciada.

2024.06.27 – Louro de Carvalho

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