Alguma
comunicação social noticiou, a 27 de junho, que, pela primeira vez, um ex-padre
anglicano foi consagrado bispo no Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham,
na Grã-Bretanha, um ordinariato criado para dar aos anglicanos um caminho para
entrarem em plena comunhão com a Igreja Católica.
Quando se
noticia um facto que surgiu pela primeira vez, fico de pé atrás, porque já
deparei, na vida, com factos havidos como o primeiro do género, como vi eventos
com X edições, quando eram, de facto, mais ou instituições havidas como criadas
e com início de atividade mais tarde do que realmente aconteceu. No caso
vertente, é a primeira vez que um presbítero anglicano (não há ex-padres, nem
ex-presbíteros: o que há é sacerdotes que deixaram o exercício das ordens; e,
embora se duvide da sucessão apostólica no anglicanismo, é insultuoso chamar
ex-padres a tais criaturas). Porém, não é a primeira vez que um padre anglicano
é ordenado sacerdote católico e até criado cardeal.
Efetivamente,
muitos padres anglicanos convertidos ao catolicismo, mesmo casados, puderam e
podem ser ordenados de presbíteros católicos (mantendo o estado de casados),
obviamente depois de receberem a ordenação diaconal. E já, pelo menos, 12
bispos anglicanos que se converteram ao catolicismo foram ordenados de
presbíteros católicos. Porém, não ascenderam ao episcopado por serem casados. Assim,
é inédito que um presbítero anglicano, convertido ao catolicismo e que recebeu
a ordenação presbiteral católica foi ordenado bispo no Ordinariato de Nossa
Senhora de Walsingham, no Reino Unido.
Este ordinariato equivale a uma diocese, congrega os
anglicanos que entraram em plena comunhão com a Igreja Católica e possui
paróquias em toda a Inglaterra, na Escócia e no País de Gales. E David Waller, 63 anos, é o seu primeiro bispo e a
ordenação episcopal foi presidida pelo cardeal Victor Manuel Fernández,
prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), da Santa Sé, coadjuvado
pelo cardeal Vincent Nichols, arcebispo de Westminster, e pelos bispos Stephen
Lopes e Anthony Randazzo, chefes dos ordinariatos anglicano-católicos nos
EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália. A celebração aconteceu na catedral de
Westminster, a 22 de junho, dia da festa dos santos ingleses John Fisher e
Thomas More, e foi vista como “um sinal de apoio e confiança de Roma”, depois
de terem corrido rumores de que a Santa Sé iria acabar com este
ordinariato, como assinala a Catholic
News Agency (CNA).
Juntamente com os ordinariatos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália,
o ordinariato de Walsingham foi estabelecido, em 2011, pelo Papa Bento XVI, e
foi, até agora, liderado por Keith Newton, ex-anglicano que foi ordenado padre
na Igreja Católica, mas não foi ordenado bispo por ser casado. Newton,
atualmente de 72 anos, vai reformar-se.
Na homilia,
o cardeal Fernández referiu-se à “rica herança inglesa” (começando com São
Pedro e os outros apóstolos e continuando até hoje) dos anglicanos convertidos
ao catolicismo e disse que “o ordinariato é convidado a ver os aspetos
positivos da tradição anglicana preservados nele como ‘um dom precioso […] e um
tesouro a ser partilhado”. E vincou: “O que recebi da Igreja, agora passo para
vós.”
Após a ordenação, o Ordinariato de Walsingham
declarou, em comunicado, que “é uma grande honra que o Papa Francisco tenha
nomeado um dos nossos próprios sacerdotes para ser o segundo ordinário e mostre
o seu compromisso com os ordinariatos estabelecidos sob [a constituição
apostólica] Anglicanorum Coetibus pelo seu antecessor”.
Waller ingressou no sacerdócio anglicano em 1992,
converteu-se à Igreja Católica em 2011 e tornou-se padre católico (presbítero
ou sacerdote) no mesmo ano. Antes de ser nomeado para liderar o Ordinariato de
Walsingham, tinha o cargo de vigário-geral. Depois de receber três
recomendações do conselho governante do ordinariato, o Papa Francisco anunciou
que nomearia Waller como o novo chefe do ordinariato em 29 de abril.
O Ordinariato de Walsingham foi o primeiro dos três,
no Mundo, a ter influência na escolha do seu líder. Em abril, Newton havia dito
ao National Catholic Register, parceiro de
notícias irmão da CNA, que acreditava que permitir esta intervenção ao
conselho, que, geralmente, é exclusiva do núncio apostólico, “demonstra a
confiança da Santa Sé no Ordinariato no Reino Unido”.
Os
membros do Ordinariato celebram as liturgias segundo uma tradição litúrgica
enraizada no património anglicano, embora ainda esteja em total união com o
papa e a Igreja Católica.
Juntamente
com os seus ordinariatos irmãos nos EUA-Canadá e no Pacífico-Austrália, o
Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham foi estabelecido pelo Papa Bento XVI
em 2011, pela constituição apostólica Anglicanorum
Coetibus. Embora aberto a católicos de todas as origens, o ordinariado
existe, principalmente, como forma de os ex-anglicanos serem recebidos na
Igreja Católica, mantendo muitas das tradições e práticas inglesas.
Embora
os ordinariados nos EUA e na Austrália tenham os seus próprios bispos, nenhum
dos quais era ex-anglicano, Waller é o primeiro bispo a liderar o ordinariato
no Reino Unido.
A
decisão do Vaticano de tornar bispo o chefe do ordinariato na Grã-Bretanha tem
sido amplamente vista como um sinal de apoio e confiança de Roma. Numa
entrevista à OSV News, Waller disse
que, embora houvesse rumores de que “Roma iria pôr fim ao nosso ordinariato”,
“esta nunca foi a atitude da Santa Sé, que sempre foi solidária e atenciosa.”
O
Padre Mark Elliott Smith, reitor da igreja central do ordinariato, Nossa
Senhora da Assunção e São Gregório, em Warwick Street, em Londres, declarou à CNA que acredita que a ordenação do novo
bispo é “uma notícia imensamente boa para o ordinariato aqui no Reino Unido”.
“Dom
David não é apenas o nosso primeiro bispo ordinário, mas também um sacerdote
originalmente incardinado no ordinariato, ordenado em 2011 ao lado de todos
aqueles que primeiro aceitaram com gratidão o convite da Anglicanorum Coetibus”, explicou. “Na minha opinião, demonstra que
Roma tem confiança na forma como o Ordinariato progrediu, nos 13 anos, desde
que foi estabelecido e confia na sua capacidade de discernir como deve ser
liderado e de identificar as qualidades necessárias no seu líder”.
Smith
disse que a elevação de Waller “é também um sinal claro de que [o Vaticano]
acredita que a herança litúrgica distintiva do ordinariato tem o poder e a
beleza para atrair pessoas a Cristo e à Igreja” dando energia renovada e
propósito para o Ordinariato, ao iniciar a nova fase da sua vida.
Num
comunicado, logo após o seu anúncio, Waller disse que foi “tanto uma humildade
como uma grande honra” ter sido nomeado e acrescentou que “os últimos 13 anos
foram um tempo de graça e bênção, na medida que comunidades pequenas e
vulneráveis cresceram em confiança, regozijando-se por ser uma parte plena,
mas distinta, da Igreja Católica”
***
Antes de
David Waller, houve, pelo menos, um
sacerdote anglicano convertido ao catolicismo que foi criado cardeal, mas que
declinou a ordenação episcopal, contrariando o costume.
John Henry Newman nasceu em Londres, a 21 de fevereiro de 1801, e
faleceu em Edgbaston, a 11 de agosto de 1890. Foi sacerdote católico
inglês convertido do anglicanismo ao catolicismo,
posteriormente nomeado cardeal pelo Papa Leão XIII, em 1879.
Foi declarado venerável, em 1991, pelo Papa S. João Paulo II, beatificado,
em Birmingham, no Reino Unido, a 19 de setembro de 2010, pelo Papa Bento
XVI, e canonizado pelo Papa Francisco, em Roma, a 13 de
outubro de 2019. Na cerimónia da canonização, o escultor Tim
Tolkien (bisneto de John Ronald Reuel Tolkien, conhecido por J.R.R. Tolkien,
também convertido catolicismo) apresentou uma estátua de Newman, que foi
benzida pelo Papa.
Newman estudou no Trinity College de Oxford (1816) e no Oriel College
(1822) e foi ordenado presbítero da Igreja Anglicana. Tornou-se, mais tarde, um
dos líderes do “Movimento de Oxford”, pois considerava o anglicanismo
do seu tempo excessivamente protestante e laicizado e o catolicismo
corrompido, em relação às origens do cristianismo. Buscou uma “via média”
entre os dois; e, pesquisando sobre os primórdios da Igreja Católica e
do cristianismo em geral, acabou por se converter ao catolicismo. Depois da conversão
ao catolicismo (1845), foi ordenado sacerdote da Igreja Católica em Roma (1847),
abriu e dirigiu, em Birmingham, um oratório de S. Filipe de Néri e
foi, ainda, reitor da Universidade Católica da Irlanda (1854-1858).
Nas duas décadas seguintes, viu-se envolto em controvérsias e desconfianças
por parte da própria Igreja, a que respondeu com uma demonstração magna de
sinceridade e entrega: escreveu a “Apologia pro vita sua” (1865), que anulou as
críticas e restabeleceu a sua reputação, tanto entre católicos como entre
anglicanos. Foi convidado a participar no Concílio Vaticano I como consultor
teológico, mas declinou o convite, em virtude de ter de publicar, na mesma época,
o seu “Essay in Aid of a Grammar of assent”, uma profunda
investigação sobre como a pessoa humana atinge as suas convicções.
O seu pensamento é representativo da filosofia
da ação e da filosofia da vida e o seu apostolado no campo da inteligência
foi intenso. As suas obras completas
atingem 37 tomos, sobre os mais variados assuntos – Teologia, Filosofia,
Literatura, História, Espiritualidade – e os arquivos do Oratório conservam
as 70 mil cartas que escreveu. As obras que publicou sobre a Universidade
de Dublin tornaram-se clássicas para a Literatura Católica. Os Sermões
espelham sólida piedade e grande amor pelas almas.
Uma contribuição muito importante do seu pensamento teológico foi o desenvolvimento
da Doutrina Católica, que foi considerado por Bento XVI como “contributo decisivo para a renovação
da Teologia”, introduzido no livro Ensaio sobre o
Desenvolvimento da Doutrina Cristã, de 1845, onde expôs a ideia do
desenvolvimento da doutrina para defender a doutrina católica de ataques e de
críticas de alguns anglicanos e protestantes, que achavam que alguns
elementos do catolicismo eram corrupções ou inovações contrárias aos
ensinamentos de Jesus Cristo. Também argumentou que várias doutrinas
católicas rejeitadas pelos protestantes (como a hiperdulia ou o purgatório)
tinham um histórico de desenvolvimento análogo às doutrinas que foram aceites
pelos protestantes (como a Trindade ou a união hipostática de
Cristo). Este desenvolvimento foi consequência natural e benéfica do estudo e
reflexão da razão humana sobre a Revelação divina, que é
imutável. Porém, este estudo teológico levaria a Igreja Católica a perceber,
progressivamente, certas realidades reveladas que, antes, não tinha
compreendido explícita e totalmente.
O cardeal Newman defendeu que “a infalibilidade
da Igreja é como uma medida adotada pela misericórdia do Criador para
preservar a [verdadeira] religião no Mundo e para refrear a liberdade de
pensamento que, evidentemente, em si mesma, é um dos nossos maiores dons
naturais, mas que urge salvar dos seus próprios excessos suicidas”. E defendeu
que a primazia papal, cuja força provém da Revelação divina, “completa a consciência natural
iluminada de maneira apenas incompleta”, e “a sua razão de ser é o facto de ser
o campeão da lei moral e da consciência”. Logo, para Newman, a
liberdade de consciência, que implica o cumprimento obrigatório dos deveres
divinos ditados pela própria consciência, é compatível com a primazia e com a infalibilidade
papais.
A sabedoria e a ortodoxia doutrinária de Newman foram louvadas
por Leão XIII, Pio X, e Pio XII. No século XX, já depois da morte do cardeal
Newman, o Papa Pio XII chegou mesmo a afirmar que Newman é a “Glória da Inglaterra e de toda a Igreja”.
A
canonização de John Henry Newman, um grande defensor da consciência (que não
dispensa da observância dos princípios éticos e do cumprimento da lei moral),
ofereceu o ensejo para considerar, novamente, as profundezas teológicas do
retorno do Papa Francisco à tradição católica negligenciada.
2024.06.27 – Louro de Carvalho
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