terça-feira, 11 de junho de 2024

É preciso reformar o mercado único europeu

 

Decorrido o ato eleitoral para o Parlamento Europeu (PE) da União Europeia (UE), os agentes da instalação do areópago com a nova composição já estão a trabalhar para dotar as instituições europeias dos titulares cujo mandato é definido no tempo, por força das eleições.

Assim, a seu tempo, os eurodeputados reunirão para a verificação de poderes, com a definição ou redefinição dos diversos grupos parlamentares, bem como as diversas comissões e grupos de trabalho. Ao mesmo tempo, perfilam-se as candidaturas para a presidência da Comissão Europeia, tendo-se candidatado, para o efeito, alguns dos cabeças de lista dos principais grupos que têm assento no PE. Parece que a presidente em exercício terá dificuldades na eventual recondução. Não obstante, é-lhe reconhecida grande capacidade de negociação. Veremos se vai ser nomeada e se o plenário da grande assembleia europeia a confirmará.

Entretanto, os governos dos 27 estados-membros indigitarão os comissários, que terão de passar pelo crivo do PE, em que sobressai o Alto Representante da UE para os Assuntos Externos e Política de Segurança (chefe da diplomacia da UE); e o Conselho Europeu (chefes de Estado e de Governo dos países da UE) escolherá o seu presidente permanente.

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Estas diligências, de si morosas, não podem ofuscar a premência de alguns temas importantes para o bloco europeu. E um deles é o atinente ao mercado único.

A este respeito, o ex-primeiro-ministro italiano Enrico Letta, autor de um relatório sobre o mercado único encomendado pelo Conselho Europeu, sustenta que “o mercado único, tal como funciona hoje, não é suficiente, porque foi concebido para um Mundo que já não existe”.

“Quando Jacques Delors lançou o mercado único, a União Soviética ainda existia, a Alemanha não estava unida, a China e a Índia juntas representavam 4% do PIB [produto interno bruto] mundial. A nossa noção de ‘grande’ tem de ser maior, porque as dimensões da China, dos EUA [Estados Unidos da América] e dos BRIC [Brasil, Rússia, Índia e China] mudaram completamente”, observou Enrico Letta.

Efetivamente, a 14 de abril de 2011, com a admissão da África do Sul, o grupo passou a designar-se por BRICS; e, a 1 de janeiro deste ano de 2024, aderiram o Egito, a Etiópia, o Irão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos (EAU), ficando o bloco a ser designado por BRICS+   

O mercado único europeu foi criado em 1993, há 31 anos, mas, desde então, o Mundo mudou.

Nessa altura, a União Soviética ou União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS) já não existia formalmente, pois, com a queda do muro de Berlim, em 1989, os acontecimentos evoluíram para o que sucedeu em 1991. A dissolução da URSS ocorreu a 26 de dezembro de 1991, em resultado da declaração n.º 142-Н do Soviete Supremo, que reconheceu a independência das antigas repúblicas soviéticas e criou a Comunidade de Estados Independentes (CEI). No dia anterior, o presidente soviético Mikhail Gorbatchev, o oitavo e último líder da URSS, renunciou, declarou o seu cargo extinto e entregou seus poderes – incluindo o controlo dos códigos do arsenal nuclear soviético – ao presidente russo, Boris Ieltsin. Às 19h32, foi arriada do Kremlin, em Moscovo, a bandeira soviética e içada a bandeira russa da era pré-revolucionária.

De agosto a dezembro, as repúblicas individualmente, incluindo a Rússia, separaram-se da URSS. Na semana anterior da dissolução formal da URSS, já 15 repúblicas – todas, exceto os estados bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e a Geórgia – tinham assinado o Protocolo de Alma-Ata, a estabelecer, formalmente, a Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e declarando que a URSS tinha deixado de existir. Estes acontecimentos assinalaram o fim da Guerra Fria.

Várias das ex-repúblicas soviéticas têm mantido laços estreitos com a Federação Russa e, para reforçarem a cooperação económica e militar, formaram organizações multilaterais, como a Comunidade Económica Eurasiática, a União da Rússia e Bielorrússia e a União Aduaneira da Eurásia. Porém, algumas, já se distanciaram da Rússia e juntaram-se à Organização do Atlântico Norte (NATO/OTAN) e à UE; e outras estão em vias de o fazerem.

O relatório de Enrico Letta conclui que a fragmentação dos setores da energia, dos serviços financeiros e das telecomunicações prejudica a competitividade da UE. “Temos 100 operadores de telecomunicações na Europa, fragmentados em três, quatro, cinco operadores em cada país. Nos EUA, existem três [e], na China, cada operador tem mais de 467 milhões de clientes. Os nossos 27 mercados financeiros não estão suficientemente integrados, não são suficientemente atrativos, são demasiado pequenos e o mercado norte-americano está a ter este efeito de atração”, observou Enrico Letta.

O relatório sugere a criação de uma união de poupança e de investimento que, combinada com fundos públicos, levaria à política europeia de zero emissões de carbono. “Se continuarmos a não responder à questão de como financiar a transição ecológica, os agricultores serão os primeiros de uma longa sequência de pessoas a protestar; a seguir, serão os trabalhadores da indústria automóvel; [e], a seguir, serão outros trabalhadores, outros empresários, outros cidadãos”, considerou o antigo primeiro-ministro italiano.

De acordo com o documento, as grandes empresas têm dinheiro e pessoal necessários para operar em países com regimes jurídicos diferentes, mas as empresas mais pequenas não têm esse apoio. E Enrico Letta propõe uma simplificação do sistema. “A ideia seria criar um 28.º sistema jurídico que é uma espécie de outro país europeu, um país virtual, com o seu próprio sistema jurídico”, explanou o antigo chefe de governo italiano.

É uma ideia que agrada ao lóbi das pequenas e médias empresas (PME) de tecnologia. “Acho que é uma ideia brilhante. Se tiver de criar uma empresa, terei de a criar no meu país, sou italiano, vou criá-la em Itália, mas, se quiser fazer negócios, por exemplo, em França ou na Polónia, tenho de criar outra empresa nesses países. É algo muito complicado”, afirmou Sebastiano Toffaletti, secretário-geral da DigitalSME, Aliança Europeia para as PME Digitais.

Os quatro pilares do mercado único europeu são a liberdade de circulação de bens, serviços, capitais e pessoas. Porém, Enrico Letta propõe a criação de uma 5.ª liberdade para a inovação, investigação e educação. “Nas reuniões em que participei por toda a Europa, muitos jovens, diretores de startups, disseram-me que queriam ir para os EUA e que a Europa não era o sítio onde podiam desenvolver as suas ideias”, contou Enrico Letta.

Na área da investigação médica, o livre acesso aos artigos e aos respetivos dados já está a contribuir para acelerar as descobertas europeias no domínio da saúde. “Vemos, regularmente, publicações de artigos baseados na utilização de um conjunto de dados gerado por outro laboratório, possivelmente noutro país. Acho que isso é fantástico. Significa que talvez dez laboratórios não estejam todos a fazer a mesma coisa, o que custa muito dinheiro”, frisou Isabelle Chemin, diretora de investigação do INSERM, em França.

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A UE pretende garantir que os seus cidadãos possam estudar, viver, fazer compras, trabalhar ou reformar-se em qualquer estado-membro, bem como beneficiar de produtos de toda a Europa. Para tanto, assegura a livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas no mercado único europeu. E, ao suprimir entraves técnicos, jurídicos e burocráticos, permite ainda aos cidadãos desenvolver atividades comerciais e empresarias livremente.

Desde a sua criação, o mercado único tornou-se mais aberto à concorrência, criou novos empregos e reduziu obstáculos ao comércio. O Ato para o Marcado Único foi proposto em duas partes, em 2011 e em 2012, ambas com propostas para explorar mais as oportunidades do mercado único, a fim de impulsionar o emprego e de melhorar a confiança nas empresas europeias.

A UE está também a criar a união dos mercados de capitais, para facilitar a angariação de fundos pelas PME e para tornar a Europa mais atrativa para investir. Além disso, o mercado único digital contribuirá para a digitalização das liberdades do mercado único europeu, com regras à escala da UE, para os serviços de telecomunicações, para os direitos de autor e para a proteção de dados.

A união dos mercados de capitais (UMC) é um plano para criar um mercado único de capitais. O objetivo é fazer com que o dinheiro – investimentos e poupanças – flua por toda a UE, para poder beneficiar consumidores, investidores e empresas, independentemente da sua localização.

A UMC visa: proporcionar às empresas maior escolha de financiamento a custos mais baixos e, em particular às PME, o financiamento de que necessitam; apoiar a recuperação económica pós-covid-19 e criar empregos; oferecer novas oportunidades a poupadores e a investidores; criar uma economia mais inclusiva e resiliente; ajudar a Europa a concretizar o seu acordo verde e a sua agenda digital; reforçar a competitividade e a autonomia globais da UE; e tornar o sistema financeiro mais resiliente para se adaptar melhor à saída do Reino Unido da UE.

A 21 de fevereiro deste ano, a Comissão Europeia apresentou um conjunto de ações para promover a inovação, a segurança e a resiliência das infraestruturas digitais. Este pacote sobre conetividade digital tem por objetivo iniciar um debate, com vista a um consenso, sobre propostas concretas com as partes interessadas, os estados-membros e os parceiros que partilham as mesmas ideias sobre a forma de definir a política da UE. A competitividade da economia europeia depende das infraestruturas e serviços de rede digitais avançados, visto que uma conetividade rápida, segura e generalizada é essencial para a implantação das tecnologias que nos levarão ao Mundo de amanhã: a telemedicina, a condução automatizada, a manutenção preditiva dos edifícios ou a agricultura de precisão.

Assim, o livro branco intitulado “Como suprir as necessidades da Europa no domínio das infraestruturas digitais?” analisa os desafios que a Europa enfrenta na implantação de redes de conectividade e apresenta possíveis cenários para atrair investimentos, para promover a inovação, para aumentar a segurança e para obter um verdadeiro mercado único digital. E a Recomendação relativa à segurança e resiliência das infraestruturas de cabos submarinos apresenta um conjunto de ações, a nível nacional e da UE, para melhorar a segurança e a resiliência dos cabos submarinos, através de uma melhor coordenação em toda a UE, tanto em termos de governação como de financiamento.

Enfim, a UE deve promover uma comunidade dinâmica de inovadores europeus, fomentando o desenvolvimento de uma conectividade integrada e de infraestruturas informáticas colaborativas.

Para alcançar este objetivo, o livro branco prevê a “rede de computação colaborativa conectada” (“rede 3C”), para criar infraestruturas e plataformas integradas de extremo a extremo para a computação, em nuvem e periférica, de operadores de telecomunicações, que poderia servir para coordenar o desenvolvimento de tecnologias inovadoras e de aplicações de inteligência artificial (IA) para vários casos de utilização. Além disso, a UE deve explorar, plenamente, o potencial do mercado único digital das telecomunicações, ponderando medidas que assegurem condições de concorrência equitativas, e repensar o âmbito de aplicação e os objetivos do seu atual quadro regulamentar. E, a fim de proteger as infraestruturas de rede e computação da Europa, um elemento essencial da nossa segurança económica, a UE deve incentivar a implantação e reforçar a segurança e a resiliência das infraestruturas estratégicas de cabos submarinos.

No entanto, subsistem entraves no mercado único, pelo que a UE está empenhada em garantir uma maior harmonização dos sistemas fiscais nacionais fragmentados; dos diferentes mercados nacionais dos setores dos serviços financeiros, da energia e dos transportes; das diferentes regras, normas técnicas e práticas nacionais no domínio do comércio eletrónico; e de regras complexas em matéria de reconhecimento de qualificações profissionais.

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Há muito que fazer. A UE, um gigante burocrático (no dizer de Georgia Meloni, primeira-ministra italiana) é demasiado lenta na produção legislativa e os estados-membros demora, uma eternidade em transpor para os ordenamento jurídicos nacionais as diretivas da UE. Assim, é difícil a UE não se deixar ultrapassar pelos acontecimentos e pelas outras potências políticas, militares e económicas do resto do Mundo. É preciso estudar e trabalhar, discutir, decidir, executar e avaliar.

2024.06.11 – Louro de Carvalho

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