A leitura do trecho evangélico do 13.º domingo do
Tempo comum no Ano B (Mc 5,21-43), em que Jesus, depois de
ressuscitar uma menina de 12 anos, perante a estupefação e alegria dos circunstantes,
mandou dar-lhe de comer, trouxe-me à memória um episódio ocorrido no meu tempo
de exercício de funções paroquiais.
Fui chamado a casa de uma
senhora nova que, alegadamente, estava possuída do diabo. Após ligeira
conversa, pedi que lhe dessem um prato de sopa. Perante a sua recusa, insisti, não
pedindo, mas ordenando. E, quando alguém lhe ia a dar a comida à boca, impus
que fosse a suposta doente a comer pela sua própria mão. O caso foi comentado
na sede da diocese, mas eu demonstrei que tinha razão. Com efeito, perante situação
de fragilidade, o primeiro remédio, se não houver inconveniente, é o reforço alimentar
e o revigoramento físico.
***
O Evangelho, que trata da cura/ressurreição da Filha
de Jairo, tem ensanduichado o relato de outra cura. Com efeito, entre o
primeiro pedido de socorro da parte do chefe da sinagoga, o evangelista
apresenta o encontro de Jesus com a mulher que sofria de uma hemorragia
incurável. A narração começa por vincar a gravidade do problema: havia 12 anos
que a mulher tinha um fluxo de sangue; recorrera a diversos médicos e gastara
todos os seus bens em consultas e tratamentos. Porém, ao invés de melhorar,
piorava sempre mais. Segundo a Lei, enquanto durasse a hemorragia, a mulher
estava em estado de impureza, que atingiria qualquer pessoa que lhe tocasse ou
em quem ela tocasse e quem tocasse no leito onde ela se deitasse ou na cadeira
onde se tivesse sentado. Além do incómodo físico, a mulher estava na condição de
marginalização e de isolamento, impedida de ter vida familiar normal, de ir à
sinagoga ou de participar em qualquer assembleia religiosa.
Cansada dessa vida, decidiu ir ao encontro de Jesus. É
ela que toma a iniciativa. Confia em Jesus e acha que Ele pode libertá-la: “Se
eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada”. Contudo, não era fácil
levar avante esse desejo. Jesus estava sempre rodeado de pessoas e era difícil
chegar junto d’Ele e falar com Ele; uma mulher impura não podia tocar fosse em
quem fosse. Porém, a mulher, com a ousadia da fé, estava determinada a vencer
todos os óbices para tocar em Jesus. Chegada diante de Jesus, não O olhou nos
olhos. Sentia-se indigna e impura. Assim, aproximou-se por detrás de Jesus e,
sem ninguém notar, tocou-lhe no manto. No mesmo instante, sentiu-se curada. A
sua confiança em Jesus não foi defraudada.
Jesus achou que a grandeza da fé da mulher devia ser
conhecida de todos os que ali estavam. Perguntou quem Lhe tinha tocado. Quando
a mulher, a tremer, confessou a verdade, Jesus não a recriminou, mas confirmou
que a fé é fonte de Vida: “Minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz e sê
curada do teu mal”. Chamar-lhe “filha” significava que passara a integrar a
família do Reino, a dos que acreditam em Jesus Salvador. Aquela mulher, que
estava disposta a procurar e a acolher a salvação que Jesus oferecia, é um
extraordinário modelo para os discípulos de Jesus. Com ela, eles podem aprender
a procurar Jesus com fé, a “tocar-Lhe” para receberem d’Ele Vida, a começar a
partir d’Ele uma vida nova.
Jairo, o chefe da sinagoga, tinha vindo ao encontro de
Jesus para lhe implorar (“caiu a seus pés e suplicou-Lhe com insistência”) que
fosse a sua casa impor as mãos sobre a sua filha doente, para a abençoar e
curar. Jairo afirmava a certeza absoluta de que Jesus era capaz de dar Vida. E Jesus,
reconhecendo a fé que animava o homem, dispôs-se a acompanhá-lo a casa. Porém,
enquanto caminhavam, chegou a notícia da morte da menina, o mais rude dos
golpes para o pai que tinha esperado de Jesus a cura da filha. Parecia não
haver mais nada a esperar (“A tua filha morreu. Porque estás a importunar o
Mestre?”). Ao invés, Jesus pediu ao pai desolado que mantivesse a confiança
como antes (“Não temas; basta que tenhas fé”).
Chegaram a casa de Jairo. Os familiares e vizinhos abandonavam-se
ao choro e às lamentações. A morte chegara primeiro do que Jesus. Todavia,
Jesus garantiu aos presentes que a morte não teria a última palavra (“Porquê
todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu; está a dormir”). A
última palavra será de Jesus; e a sua palavra é palavra de salvação e de Vida.
Alguns dos presentes não acreditavam e riam-se. E
Jesus entrou na casa, dirigiu-se à menina, pegou-lhe na mão e disse-lhe, em
aramaico: “Talitha, kûm” (“Menina, filha, irmã, levanta-te!”). O gesto de pegar
na mão da menina diz da determinação de Jesus a subtrair ao poder da morte; a
palavra que dirige à menina é poderosa, resgata do poder da morte e devolve à
Vida. A menina levantou-se do leito de morte e começou a andar. Também ela é
“filha” e “irmã” de Jesus (como a mulher curada da hemorragia). Liberta da
morte, fica a pertencer à família de Jesus e a saber que a fé em Jesus pode
vencer a própria morte.
As histórias da mulher curada de uma hemorragia e da
menina que Jesus libertou da morte vestem-nos o coração de esperança. Mostram o
Senhor Jesus a passar pelas nossas vidas, a deixar-Se tocar pelas nossas dores,
a acompanhar-nos no caminho, a entrar em nossa casa, a curar-nos de tudo o que
nos faz sofrer, a levantar-nos, a oferecer-nos a Vida, a integrar-nos na sua
família.
Contudo, Jesus não pactua com a estupefação e com o
desleixo para com o próximo. Entre a alegria entusiasta, Jesus recomenda o cuidado
básico: “Deem de comer à menina!” E tentou evitar o espetáculo e a publicidade
do seu ato ainda não explicável: entrou sozinho apenas acompanhado de Pedro,
Tiago e João e recomendou que não divulgassem o ocorrido.
A Jesus e à sua oferta de salvação responde-se pela
fé, que é a aceitação incondicional de que Jesus é o Salvador e traz a Vida,
que vence o sofrimento e mesmo a morte.
***
Na primeira
leitura (Sb 1,13-15; 2,23-24),
um “sábio” de Israel ensina que Deus nos criou para sermos eternos. É verdade
que todas as criaturas passam pela morte biológica, mas essa morte não nos impede
de chegar à Vida eterna. Só escolhas de egoísmo e de autossuficiência nos impedem
de encontrar a Vida eterna, que está no plano que Deus tem para nós.
O autor do livro da Sabedoria reflete sobre a temática
da origem da morte, que ensombra o horizonte da vida do homem e a mulher.
Partindo da catequese tradicional de Israel, expressa nas primeiras páginas do
livro do Génesis, considera que a
morte não pode vir de Deus. Deus criou tudo “bom”, o que Ele fez “destina-se ao
bem”. Portanto, Deus não criou os seres humanos para a morte, mas para a vida;
criou-os, sem lhes inocular o veneno da morte, para serem incorruptíveis, para
serem à imagem da natureza de Deus (“Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o
à imagem de Deus”), que é eterna.
Todavia, a nossa experiência confirma que a morte está
sempre no horizonte de todas as criaturas, inclusive dos seres humanos. O sábio
diz que a morte entrou no Mundo e atingiu o homem, mercê da “inveja do diabo”. Foi
o diabo que convenceu o homem a recusar as indicações do Criador e a escolher
caminhos de autossuficiência, à margem de Deus. Foi o pecado que trouxe a
morte.
O sábio não se refere à morte biológica, que resulta
da nossa finitude, da fragilidade do barro de que somos feitos. Todos os seres
criados por Deus têm o seu ciclo de vida, desgastam-se, enfraquecem e caem. Mas
essa não é a verdadeira morte, pois não afasta os homens da Vida. Aliás, depois
da morte física, os seres humanos encontram-se com a Vida de Deus.
A verdadeira morte é a que resulta do egoísmo e da
autossuficiência e que lança o homem por sendas de violência, de injustiça, de
orgulho, de corrupção, de ganância. Daí vem o mal que afoga o Mundo e que traz
sofrimento e infelicidade aos seres humanos. Quem opta pela maldade, está
morto, porque recusa a Vida verdadeira. Esta é a morte “dos que pertencem ao
demónio”.
***
Na segunda
leitura (2Cor 8,7.9.13-15), Paulo de Tarso, a propósito do apoio a
uma Igreja que passa por dificuldades materiais, convida-nos a encarar a vida a
partir de um dinamismo de amor, que é expressão da Vida de Deus e que é gerador
de Vida verdadeira.
Os Coríntios foram dos primeiros a interessar-se, num
gesto solidário, pela comunidade cristã de Jerusalém, mas o tempo foi passando
e o entusiasmo inicial arrefeceu. Agora, é preciso reavivá-lo. Os Coríntios
fazem questão de sobressair em tudo: na fé, no dom da palavra, na ciência, no
zelo, mas é preciso que também sobressaiam na caridade.
Para convencer os Coríntios, o apóstolo apresenta dois
argumentos. O primeiro é o exemplo de Jesus, que era rico, mas que Se fez pobre,
para nos enriquecer pela sua pobreza. Sendo Deus, veio ao encontro dos homens a
partilhar a fragilidade dos seres humanos. Esse movimento generoso não diminuiu
a riqueza divina de Jesus, mas enriqueceu-nos e promoveu-nos à dignidade de
filhos de Deus. O que damos não nos empobrece. O segundo argumento refere o
ideal da igualdade, que os Gregos tinham em boa conta. O que produz desigualdade
cria injustiça. Não se exige dar o que se tem e ficar reduzido à miséria, mas
partilhar com os outros os bens que Deus pôs à nossa disposição, para que eles
nos sirvam e sejam postos ao serviço de todos. O açambarcamento não é caminho quando,
ao nosso lado, há quem não tenha o mínimo para viver dignamente. Os discípulos
de Jesus são chamados testemunhar a generosidade e o amor de Deus.
A partilha generosa não é algo que se pode ou não
fazer, mas é algo intrínseco à experiência cristã. Por isso, Paulo a designa como
“graça que Deus concede”, “serviço” em favor dos irmãos, “obra da caridade”.
Quem frequentou a escola de Jesus, não pode encarar a vida senão a partir de um
dinamismo de amor. A partilha de bens insere-se nesse dinamismo.
***
Esta liturgia do 13.º domingo do Tempo Comum no Ano B procura
responder a estas questões: Nascemos para viver, ou para morrer? Será a morte o
objetivo ou a intenção última do projeto de Deus sobre o homem? Neste sentido,
convida-nos a olhar para lá do nosso horizonte de criaturas finitas e a
descobrir a Vida que Deus oferece a todos os seus filhos e filhas.
O Evangelho mostra
como Jesus cumpriu a missão que o Pai lhe confiou: dar-nos Vida. Ao curar uma
mulher de hemorragia que a mantinha presa a uma vida sem horizontes, ou ao
pegar pela mão uma jovem para a resgatar da morte, Jesus concretiza o plano de
Deus e salva da morte os filhos e filhas que Deus tanto ama. Por isso, é bom
cantar com o salmista:
“Eu Vos
glorifico, Senhor, porque me salvastes
e não deixastes que de mim se regozijassem os inimigos.
Tirastes a minha alma da mansão dos mortos,
Vivificastes-me para não descer ao túmulo.
Cantai
salmos ao Senhor, vós os seus fiéis,
e dai graças ao seu nome santo.
A sua ira dura apenas um momento
e a sua benevolência a vida inteira.
Ao cair da noite vêm as lágrimas
e ao amanhecer volta a alegria.
Ouvi,
Senhor, e tende compaixão de mim,
Senhor, sede Vós o meu auxílio.
Vós convertestes em júbilo o meu pranto:
Senhor meu Deus, eu Vos louvarei eternamente.”
(Salmo 30)
2024.06.30 – Louro de Carvalho
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