sábado, 29 de junho de 2024

Não se trata de controlar o Ministério Público, mas de o remeter para a lei

 

Em entrevista ao Observador, a 27 de junho, a titular da pasta da Justiça admitiu querer que o próximo procurador-geral da República (PGR) tenha perfil de liderança, que seja comunicativo e que “ponha ordem na casa”, devendo ajudar a pôr fim a “certa descredibilização” de que enferma o Ministério Público (MP). Além disso, sublinhou que o governo quer iniciar “uma nova era”.

Horas depois, na rede social X, insistiu: “O novo PGR terá de ser alguém que reúna as condições técnicas necessárias, mas sobretudo com boa capacidade de liderança, de organização, de gestão de equipas e de comunicação. Deve ser alguém que tenha a capacidade de inaugurar uma nova era na relação com os cidadãos.”

Sem se pronunciar sobre o desempenho de Lucília Gago, que não concedeu, em seis anos, qualquer entrevista a um órgão de comunicação social, escudando-se em comunicados do seu gabinete de imprensa, a governante, não deixou de apontar, ao menos subliminarmente, a forma inadequada de atuação do MP, a falta de observância da sua condição hierárquica e a forma como comunica ou não com os cidadãos envolvidos nos processos e com o púbico em geral.  

Rita Júdice também se escusou a comparar o desempenho da atual PGR com o da sua antecessora.

Nestes aspetos, a ministra da Justiça, que não conheço para ter motivos de apoio ou de crítica, revela-se sensata na forma como foi respondendo aos entrevistadores e deu corpo ao coro de críticas de “senadores”, sobretudo, do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata, bem como de políticos desses partidos no ativo, que se têm levantado contra a atuação do MP, sem que a PGR assuma qualquer responsabilidade ou dê qualquer explicação.

Têm estado em causa vários casos, mas os que dão mais nas vistas são os que levaram à demissão do primeiro-ministro (PM) e subsequente dissolução da Assembleia da República (AR) e à exoneração do presidente do governo regional da Maceira e à subsequente dissolução da sua Assembleia Regional. No primeiro caso, o PM não foi constituído arguido, ficando apenas sob suspeição, mas um dos seus mineiros foi constituído arguido; no segundo caso, o presidente do governo regional foi constituído arguido. Ambos os casos resultaram em eleições que originaram uma governação mais precária do que a anterior.

No atinente à Operação Influencer, que abrange o ex-PM, um ex-ministro e outros, o juiz de instrução criminal (JIC) não viu indícios de crime nos arguidos, muito menos no ex-chefe do governo. Porém, a PGR referia que o processo continuaria. O recurso do MP sobre a decisão do JIC foi apreciado pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que deu razão ao JIC e declarou expressamente que não havia indício de crime na atuação de António Costa. Porém, as declarações da PGR foram como dantes.         

O ex-PM não foi notificado pessoalmente, tendo conhecido a sua situação por um comunicado do gabinete de imprensa da PGR. Foi ouvido tardiamente e, pelos vistos, não sobre o teor das escutas. Quer o líder do governo da Madeira, quer o ministro em referência não foram ouvidos. João Galamba, ex-ministro das Infraestruturas, escutado durante cerca de quatro anos, pediu, por cinco vezes, para ser ouvido, tendo sido alegado que a prova ainda não estava concluída.

No pico da campanha para as eleições europeias, procedeu-se a buscas em casa da cabeça de lista do PS, foi constituído arguido um ex-secretário de Estado e foram reveladas escutas, sem relevância penal, entre António Costa e João Galamba, sobre assuntos políticos e de governação.          

O ex-líder socialista foi constituído arguido, o JIC e o TRL não veem relevância criminal na investigação da Operação Influencer e o país tem vindo a assistir à divulgação constantes de escutas telefónicas com conversas de Costa, em clara violação do segredo de Justiça. Essas escutas passaram, pelo menos, por 16 juízes e não foram destruídas. O telemóvel de João Galamba esteve a ser escutado e foram ouvidas conversas com presidentes da Assembleia da República, com ministros e com autarcas.

Não veio ajudar o manifesto, conhecido em finais de abril, de um grupo de 50 personalidades em defesa de um “sobressalto cívico” que acabe com a “preocupante inércia” dos agentes políticos, relativamente à reforma da Justiça, num apelo ao Presidente da República, ao governo e à AR.

Uma “verdadeira reforma da Justiça”, com a recondução do MP a uma estrutura hierárquica para evitar o que chamam de atual “poder sem controlo” do mesmo, um escrutínio externo e a avaliação independente a tribunais e a magistrados são algumas das ideias e conclusões do manifesto.

Desde então, quer os partidos políticos quer a sociedade civil têm alertado para a necessidade de a PGR ir dar explicações aos deputados, pela violação do segredo de Justiça com a divulgação das escutas, e explicar a falta de resultados, até agora, na investigação que teve consequências políticas relevantes para o país.

O penalista Paulo Saragoça da Matta julga óbvio que a PGR e a sua equipa “são uma liability”, para o MP e que “não deixarão saudades”. Mais refere que o óbvio “seria que, já há muito, se tivesse demitido, pois, “em rigor, o lugar está vacante, há demasiado tempo”. 

Por isso, espera que “o novo PGR seja uma personalidade carismática, com pulso firme, sem medos dos corporativismos”, já que “não é possível que a mais importante instituição de law enforcement acabe por ser governada não por quem deve mandar, mas por grupos de interesses internos”. E, no dizer do penalista, “essa personalidade, se dentro da corporação não se encontrar ninguém independente e firme, imporá que se repense o sistema de governo, para garantir que quem tem o poder e dever de mandar, efetivamente mande”.

Segundo Paulo Lona Para, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), não cabe ao sindicato dizer se a PGR se deve demitir ou não, porque quem tem poder de exonerar e nomear a PGR é o poder político, cabendo a este fazer a respetiva avaliação. O que o SMMP entende é que é necessário melhorar a comunicação interna e externa com os cidadãos e com a sociedade, para evitar mal entendidos e teorias da conspiração sobre a atuação do MP.

António Marçal, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), fala num “ataque” a “uma instituição fundamental na consolidação da democracia em Portugal”, o que é “muito grave”. O sindicalista, temendo que se esteja a contribuir para a descredibilização das instituições democráticas, atira: “Sem um Ministério Público forte, que seja respeitado e mereça a confiança dos cidadãos, nós não temos um verdadeiro Estado de Direito Democrático.”

Para Luís Menezes Leitão, ex-bastonário da Ordem dos Advogados (OA), há uma tentativa de controlo do MP por parte do poder político.

Já a ministra da Justiça sustenta que “os tempos modernos já não se compatibilizam com a ideia de que podemos estar fechados nos nossos gabinetes e não comunicarmos com os cidadãos nas sedes próprias”. E reconhece a necessidade de o sucessor de Lucília Gago, cujo processo de escolha será liderado pelo primeiro-ministro, “restituir” a confiança no MP, que tem tido “períodos muitos duros” e que “criaram algum descontentamento” na opinião pública.

Rita Júdice mostra-se disponível para uma alteração legislativa que torne clara a “magistratura hierarquizada” do MP: “Tem de existir hierarquia no Ministério Público. Não é um corpo que anda à solta”. Já o Conselho Superior Ministério Público (CSMP) deve cumprir as suas competências de escrutínio, atuando “se existir alguma suspeita de que, [em] determinada investigação, determinado procurador, foi para além do exercício dos seus direitos”.

Também o secretário-geral do PS insistiu que reformar o MP é uma matéria de regime que tem de ser acordada com o PSD. Com efeito, o ambiente de suspeita, o clima de desconfiança, face ao MP, “só favorece quem é verdadeiramente corrupto”, no dizer de Pedro Nuno Santos. “Isso pode implicar mudanças, desde logo mudanças legislativas e o PS está disponível, sempre no respeito pela independência do poder judicial. Não é isso que está em causa”, referiu o líder do PS, pedindo um “debate sério e adulto sobre o Ministério Público”.

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Entretanto, o gabinete da ministra Rita Júdice, em nota à Lusa, esclareceu: “Não existe, na afirmação em causa, como aliás se depreende do contexto geral da entrevista, qualquer referência ou até intenção de interferir com a autonomia do Ministério Público ou com a independência do poder judicial. A afirmação tem um sentido prospetivo, visando apenas o futuro.”

Está em causa o facto de o Chega ter avisado que quer ouvir a ministra da Justiça na AR, depois de esta ter dito que o novo PGR tem de “pôr ordem na casa”, pois trata-se de “uma expressão que não se coaduna com o sistema democrático em que vivemos”, nomeadamente com o sistema de separação de poderes, mas que tem um efeito mais nocivo, por ser uma expressão que talvez denote, de forma involuntária, as verdadeiras intenções do governo e do PS em matéria de justiça.

A nota do gabinete da ministra, ao dizer ‘arrumar a casa’, sinaliza que, “em breve se vai iniciar um novo ciclo que contribua para a dignificação da Justiça, eliminando o ambiente de crispação e de tensão causado pelas polémicas e controvérsias em torno das instituições judiciárias, mesmo que, por vezes, sem fundamento. Qualquer outra interpretação é uma deturpação do sentido da entrevista, cuja versão integral está publicamente disponível”.

Indicar um líder para uma instituição significa esperar uma nova era, de melhoria face ao que está mal e de ação sobre o que falta fazer. Porém, demitir a PGR perto de fim de mandato é inútil.

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O MP, apesar de autónomo (e até independente, como pretendem as instâncias europeias), tem, nos termos constitucionais, de cumprir a legislação criminal, votada na AR e proposta pelo governo, na direção da investigação e ação penal, sem nunca se furtar ao escrutínio.

Assim, é de recordar que o suspeito, nos termos da lei processual, tem o direito de ser ouvido, a seu pedido, num prazo que nunca deve ultrapassar os seis meses; e o arguido deve ser notificado (não através da comunicação social), para que possa organizar a sua defesa, e deve ser ouvido, sempre que esteja prestes uma tomada de decisão sobre o seu processo. Assim, ter um suspeito ou um arguido dependurado de um comunicado de imprensa é manifestamente ilegal e atentatório do bom nome, pois leva a opinião pública à condenação preliminar, em vez da observância da presunção de inocência.

Há vozes que estranham o atual clamor público de figuras gradas do PS, mas que se calaram, aquando das “tropelias” do MP no caso de Sócrates. Por mim, que não milito no PS nem em qualquer partido, devo dizer que sempre escrevi (desde 2014), criticando a justiça-espetáculo em torno do caso: detenção coberta pela televisão, na manga do Aeroporto, e subsequentes buscas domiciliárias, transmitidas em direto; prisão preventiva, sem haver reais suspeitas de fuga; constituição do megaprocesso; passagem à comunicação social de gravações de sessões de interrogatório na fase de inquérito; e postura do JIC, geralmente homologada pelo TRL.

Por isso, entendia que a direção do PS devia ter assumido outra atitude: sem desculpar liminarmente Sócrates, teria de criticar os excessos do MP e do JIC. Com efeito, o aforismo “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política” não está correto, pois, o que há é diferentes poderes políticos; e não funciona, porque o MP intromete-se na ação governativa e parlamentar.

Porém, há diferenças assinaláveis: nunca até agora a ação do MP tinha levado à demissão de governantes e a dissoluções parlamentares; e nunca, no caso de Sócrates, foi sustentada a falta de indícios (embora sem julgamento e, muito menos, condenação transitada em julgado), o que já aconteceu desta vez, antes chegou a haver acusação e pronúncia parcial para julgamento.  

Assim, o MP, face às escutas sem relevância penal, deveria ter procedido à sua destruição, não à sua divulgação; e, face à declaração sustentada de não existência de indícios de crime, deveria proceder ao arquivamento dos respetivos processos. Isto é lei, bom senso e defesa dos direitos fundamentais. Depois, é humano errar, mas é nobre reconhecer e emendar o erro!

2024.06.29 – Louro de Carvalho

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