O Papa apelou, a 5 de junho, ao perdão da dívida dos países
do Sul global, por ocasião do Jubileu 2025, e criticou uma “globalização mal
gerida”.
“Esta era uma tradição do povo hebreu: no ano do Jubileu, as
dívidas eram perdoadas. Gostaria de fazer eco deste apelo profético, hoje mais
urgente do que nunca, tendo em conta que a dívida ecológica e a dívida externa
são duas faces da mesma moeda, que hipoteca o futuro”, referiu, no Vaticano, na
Sala Paulo VI, aos participantes
do encontro “Debt Crisis in the Global South” (“Crise da dívida no Sul Global”), promovido pela Pontifícia Academia das Ciências
A Igreja Católica celebrará, em 2025, o 27.º Jubileu
ordinário da sua História. E Francisco recordou que, por ocasião Ano Santo de
2000, o Papa São João Paulo II considerava que a questão da dívida externa “não
é apenas de natureza económica, mas afeta os princípios éticos fundamentais e deve encontrar espaço no direito internacional”, pelo
que o Jubileu é “ocasião propícia para gestos de boa vontade […] para anular as
dívidas ou, pelo menos, reduzi-las”, [...] em função do bem
comum” (ao Tribunal Geral, 3 de novembro de 1999).
O Ano Santo de 2025 chama-nos a
abrir as mentes e os corações para podermos desatar os nós dos laços que
estrangulam o presente, sem esquecer que somos “guardiões e administradores,
não senhores”. “Depois
de uma globalização mal gerida, depois de pandemias e guerras, encontramo-nos
perante uma crise da dívida que afeta, sobretudo, os países do Sul global,
gerando miséria e angústia e privando milhões de pessoas da possibilidade de um
futuro digno”, lamentou o Papa.
O Pontífice, sustentando que “nenhum governo pode exigir,
moralmente, que o seu povo sofra privações incompatíveis com a dignidade
humana”, considerou que o problema da dívida, que atinge “milhões de famílias e
de pessoas no Mundo”, implica “uma responsabilidade partilhada entre quem
recebe e quem dá”.
“Para tentar quebrar o ciclo de financiamento da dívida,
seria necessário criar um mecanismo multinacional, baseado na solidariedade e
na harmonia dos povos, que tivesse em conta o sentido global do problema e as
suas implicações económicas, financeiras e sociais”, apontou.
Francisco
saudou o cardeal Peter Turkson, chanceler da Pontifícia Academia das Ciências,
e todos os participantes no encontro, que tem em vista o diálogo sobre a
implementação de políticas que ajudem resolver o problema da dívida que aflige
muitos países, famílias e pessoas do Sul global.
Depois,
defendeu que “não é qualquer forma de financiamento que funciona para as
pessoas, mas a que implica a responsabilidade partilhada entre quem o recebe e
quem o concede”, já que “o benefício que pode trazer a uma sociedade depende
das suas condições, da forma como é utilizado e dos quadros em que são
resolvidas as crises de dívida que podem ocorrer”.
Como diz o
Papa, depois de uma globalização mal gerida, depois da pandemia e das guerras,
estamos perante “uma crise de dívida” que afeta, principalmente, os países do
Sul, “gerando miséria e angústia e privando milhões de pessoas da possibilidade
de um futuro digno”. Por conseguinte, nenhum governo pode exigir que o povo “sofra
privações incompatíveis com a dignidade humana”, acentua o Bispo de Roma,
sustentando: “Para tentar quebrar o ciclo financiamento-dívida,
seria necessária a criação de um mecanismo multinacional, baseado na
solidariedade e harmonia dos povos, que tenha em conta o significado global do
problema e as suas implicações económicas, financeiras e sociais. A ausência
deste mecanismo favorece ‘cada um por si’, onde os mais fracos sempre perdem.”
Em linha com
o ensinamento dos seus antecessores, reiterou que os princípios da justiça e da
solidariedade são os que levam a encontrar soluções, sendo fundamental “agir de
boa-fé e com verdade, seguindo um código de conduta internacional, com padrões
de valor ético que protejam as negociações”, o que postula uma nova arquitetura
financeira internacional, ousada e criativa. E instou os participantes a sonharem
e a agirem juntos na “construção responsável da nossa casa comum”, pois ninguém
a pode habitar, com paz de consciência, quando sabe que, ao seu redor, há
multidões de irmãos famintos, imersos na exclusão social e na vulnerabilidade. “Deixar
isso passar é um pecado, um pecado humano” e, mesmo que não se tenha fé, “é um pecado
social”.
***
Em
julho deste ano, o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD)
ou Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) completarão 80 anos,
80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de
austeridade, em nome da dívida.
Foi em
1941, na II Guerra Mundial, que se iniciou a discussão sobre a constituição de
instituições internacionais, a serem instituídas, logo que o conflito terminasse.
Harry
White enviou, em maio de 1942, ao presidente Franklin Roosevelt, o “Plano para
um fundo de estabilização das Nações Unidas e associados e para um Banco das
Nações Unidas para a reconstrução e o desenvolvimento”. Um dos objetivos era
convencer as nações aliadas, envolvidas na luta contra as potências do Eixo (a Alemanha,
a Itália e o Japão), que, alcançada a paz, deveriam ser implementados
mecanismos destinados a impedir que a economia mundial entrasse, novamente,
numa depressão comparável à de 1930. Em julho de 1944, na reunião da
conferência de Bretton Woods, foram abandonadas as diversas propostas contidas
no plano. Apenas uma se materializou: a criação do FMI e do BIRD.
Em
finais da década de 20 e na década de 30 do século XX, a depressão económica
que atingiu fortemente os Estados Unidos da América (EUA) teve um efeito de
contágio sobre o capitalismo mundial. Sintoma disso é o facto de a Alemanha ter
interrompido, em 1931, o pagamento da dívida de guerra à França, à Bélgica, à
Itália e à Grã-Bretanha, que deixaram, por isso, de pagar as suas dívidas aos
EUA, que reduziram, drasticamente, as suas exportações de capitais, em 1928 e,
sobretudo, em 1931. Assim, as suas importações diminuíram significativamente, o
fluxo de dólares dos EUA para o resto do Mundo estancou e os países endividados
em relação à principal potência mundial deixaram de dispor de dólares para
pagarem a suas dívidas e para comprarem produtos norte-americanos. A máquina
capitalista mundial trava, as desvalorizações competitivas multiplicam-se e o mundo
capitalista desenvolvido entra em espiral recessiva.
Em 1932,
John Maynard Keynes ironiza sobre a atitude dos EUA: “O resto do Mundo deve-lhes dinheiro. Eles recusam o pagamento em
produtos, recusam o pagamento em títulos, já receberam todo o ouro disponível.
O quebra-cabeças que impuseram ao resto do Mundo admite somente uma solução:
devemo-nos arranjar sem as suas exportações.”
Uma das
lições tiradas pelo governo dos EUA, sob a égide de Franklin Roosevelt
(presidente de 1933 a 1945), é que um grande país credor deve disponibilizar aos
países devedores as divisas necessárias para o pagamento das suas dívidas. Outra
lição, mais audaciosa, é que, em certos casos, é melhor fazer doações do que
empréstimos, se o Estado quiser que as suas indústrias exportadoras tenham lucro máximo
e durável.
Em 1934,
foi criado o Export-Import Bank of Washington (agência pública norte-americana
de crédito à exportação, mais tarde, Eximbank), para proteger e favorecer as
indústrias exportadoras dos EUA, garantindo as exportações e concedendo
créditos a longo prazo a estrangeiros para importarem produtos dos EUA. O
Export-Import Bank só desembolsava o dinheiro, após a comprovação de que os
produtos foram enviados para o exterior. No início, a soma de empréstimos concedidos
era modesta: 60 milhões de dólares, nos cinco primeiros anos. Porém, em 1940, subiu
para 200 milhões de dólares e, em 1945, atingiu 3,5 mil milhões. A princípio, o
Export-Import Bank concentrava-se na América Latina e nas Caraíbas, na China e
na Finlândia, por interesses económicos e geoestratégicos.
Em 1940,
foi criado o Banco Interamericano, banco interestatal, fundado a partir da
iniciativa dos EUA, no âmbito da União Pan-Americana (herdeira da Organização
dos Estados Americanos – OEA). Dele fazem parte: a Bolívia, o Brasil, a
Colômbia, a República Dominicana, o Equador, o México, a Nicarágua, o Paraguai
e os EUA. Antecipa o BIRD, fundado quatro anos mais tarde. O principal
arquiteto, do lado norte-americano, era defensor da intervenção pública na
economia, adepto do New Deal – Emilio Collado, número dois do Departamento de
Estado. Participava, desde início, nas discussões preparatórias, em Bretton
Woods, e tornou-se, em 1944, o primeiro representante (diretor executivo) dos EUA
na direção do BIRD. Porém, o Departamento de Estado não é o único responsável
pela fundação do Banco Interamericano. O Departamento do Tesouro fez-se representar
por Henry Morgenthau e pelo seu assistente Harry White.
As
razões da criação do Banco Interamericano foram quatro. O governo compreendeu
que deve emprestar dinheiro para que se comprem os seus produtos e que deve
comprar as exportações daqueles a quem quer vender as suas mercadorias. Washington
considerava não poder contar com o setor financeiro privado dos EUA para
emprestar capitais a Sul do Rio Grande, enquanto 14 países latino-americanos se
encontrassem em total ou parcial incumprimento de pagamento das suas dívidas externas,
tal como considerava que Wall Street e os grandes bancos norte-americanos eram
os responsáveis pela crise de 1929 e pelo seu prolongamento. Para convencer os
governos latino-americanos a entrarem no jogo da intensificação das relações reforçadas
com os EUA, era preciso oferecer-lhes um instrumento que visasse objetivos não
diretamente subordinados aos EUA. E era preciso criar um banco do qual fizessem
parte os países que pedem empréstimos e no qual tenham voz ativa.
No
atinente à repartição de votos no Banco Interamericano, os critérios aplicados
serão implementados pelo BIRD e pelo FMI. É posto de lado o princípio “um país,
um voto”, para beneficiar um sistema de votação baseado no peso económico, que
prevê uma cereja no topo do bolo para os países latino-americanos: a existência
de uma instituição bancária multilateral deve protegê-los contra o recurso à
força por parte de credores ansiosos por recuperarem os seus recursos. De facto,
os EUA e outras potências credoras intervieram, militarmente ou controlando
alfândegas e administrações de impostos dos países endividados, para
recuperarem o que consideravam ser-lhes devido.
Em 1942,
a administração Roosevelt passou a discutir a ordem económica e financeira a
implantar no Pós-Guerra. Determinadas ideias sobre a dívida e o movimento de
capitais regressaram, com regularidade, à mesa de negociações: é preciso pôr em
funcionamento instituições públicas multilaterais que, face ao caráter
aleatório do investimento internacional privado, forneçam capitais públicos.
Essas instituições deveriam “regulamentar os investimentos internacionais de
capitais privados, prevendo possibilidades judiciárias e de arbitragem para a
regulação de diferendos entre credores e devedores e para afastar o perigo de
os países credores utilizarem as suas reivindicações como base para exigências
políticas, económicas ou militares ilegítimas”.
Roosevelt
recebeu, em maio de 1942, um plano, segundo o qual não é preciso aguardar o fim
da guerra para criar um Fundo de estabilização das taxas de câmbio (o futuro
FMI) e um banco internacional para fornecer capitais (o futuro BIRD). O Fundo e
o Banco deveriam reunir todos os países, a começar pelos Aliados. O peso
relativo de cada um seria estabelecido em função do seu peso económico. Os
devedores deviam fazer parte do Banco, porque isso os motivaria a pagar. As
duas instituições deveriam favorecer políticas que garantissem o pleno emprego.
O Fundo operaria para garantir a estabilidade das taxas de câmbio, o abandono
progressivo dos controlos cambiais e o abandono dos subsídios às exportações; e
o Banco forneceria os capitais para a reconstrução dos países afetados pela
guerra e para contribuir para o desenvolvimento das regiões atrasadas, ajudando
a estabilizar os preços das matérias-primas, emprestando com base no seu
capital próprio e possuindo a sua moeda própria: a Unitas.
O
projeto ambicioso, como foi concebido por Harry White, foi revisto em baixa nos
anos seguintes. Wall Street e o Partido Republicano eram hostis a vários
elementos fundamentais do projeto. Não queriam duas instituições públicas
fortes que pretendiam regulamentar a circulação de capitais privados e
fazer-lhes concorrência. Roosevelt decide negociar com eles, o que permite que
o Congresso ratifique, em 1945, com ampla maioria, os acordos de Bretton Woods,
de julho de 1944. As concessões feitas por Roosevelt são consideráveis, a ponto
de desfigurarem o projeto inicial. No entanto, Wall Street aguardará por 1947,
para apoiar, de facto, o Banco e o Fundo.
Os
principais interlocutores dos EUA para a adoção da proposta definitiva são a
Grã-Bretanha e a União Soviética. A Grã-Bretanha exige ser tratada, de modo privilegiado,
por Washington. Segundo Churchill, as negociações entre Washington e Londres
devem ser bilaterais e secretas, mas Washington
quer negociar com todos os aliados em separado, dividindo para reinar.
Aparentemente,
Franklin Roosevelt, assessorado por Harry White e Henry Morgenthau (o
secretário do Tesouro), quer garantir a participação da União Soviética na
criação do Banco e do Fundo. Morgenthau tornou público, em 1944, que dois
delegados soviéticos chegaram a Washington, para se discutir a constituição das
duas instituições.
Nos anos 70, os Países em Desenvolvimento (PED) endividaram-se
cada vez mais, porque as condições dos empréstimos eram favoráveis. O BIRD, os
bancos privados e os governos dos países industrializados encorajaram nesse
sentido. A partir de finais de 1979, a subida das taxas de juro, imposta pelo Tesouro dos EUA, na viragem neoliberal, e a
queda da cotação das matérias-primas alteraram a situação radicalmente. Os
fluxos inverteram-se e, nos anos 80, os credores obtiveram lucros
extraordinários. Com a crise financeira de 1997, no Sudeste Asiático e na
Coreia, as transferências líquidas sobre a dívida, favoráveis aos credores,
cresceram consideravelmente e a dívida crescia descontroladamente, atingindo
patamares nunca antes alcançados.
Enfim,
as instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por
instituições democráticas ao serviço de uma perspetiva económica, ecológica e
humanista. De facto, para já, o perdão da dívida ao Sul global é o mínimo que
se pode exigir, em desconto da colonização, bárbara ou simulada, ao longo da
História, ao mesmo tempo que se impõe toda relação de cooperação instalada ou a
instalar.
2024.06.05 – Louro de Carvalho
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