quinta-feira, 27 de junho de 2024

Os cientistas influenciam as decisões políticas sobre pescas na UE

 

É evidente que os políticos e mesmo os tecnocratas (normalmente economistas, gestores, juristas e engenheiros) recorrem a cientistas das diversas áreas para a tomada de decisões em áreas sensíveis. Quem não se lembra dos debates entre cientistas (não todos) a que os decisores políticos (nomeadamente o Presidente da República, membros do governo e representantes dos partidos políticos) assistiam, no Infarmed, nos tempos da pandemia de covid-19)?  

Também, como é óbvio, as decisões tomadas pelas instituições políticas e tecnocráticas da União Europeia (UE) se socorrem dos pareceres e dos estudos dos cientistas das diversas áreas.

A este respeito, a Euronews, a 25 de junho, vincando que as decisões tomadas em Bruxelas sobre pescas se baseiam nos dados obtidos pelos observadores científicos no terreno, revela que acompanhou uma equipa, em Malta, para perceber este trabalho dos cientistas.

Com efeito, os regulamentos de pesca que regem as águas da UE são elaborados em gabinetes distantes, mas o conhecimento em que se baseiam começa no mar, com observadores científicos. É certo que os regulamentos de pesca, tal como a generalidade dos instrumentos legislativos são passíveis de críticas, por vários motivos: nem sempre os cientistas estão de acordo, tendo até dificuldade em passar aos políticos o mínimo de entendimento comum sobre determinadas matérias; os decisores políticos nem sempre acolhem o parecer dos peritos; e os temas, por vezes, causam melindres ou concitam suscetibilidades nos setores atingidos.

Contudo, os cientistas marinhos – mulheres e homens – “são a espinha dorsal da recolha de dados sobre as pescas da UE”, para o que estabelecem forte relação de trabalho com os pescadores.

Luca Pisani, biólogo marinho da Aquatic Resources Malta (ARM), frisa a importância de manter forte relação com os pescadores que acolhem cientistas a bordo das suas embarcações. Esta colaboração faz a ponte entre os pescadores e os decisores políticos, assegurando que as decisões são baseadas em dados exatos sobre a saúde dos oceanos. Porque os cientistas trabalham com o governo, os pescadores podem tender a ser tímidos ou céticos, por temerem que os cientistas levem o governo a implementar políticas e regulamentos que os afetem negativamente.

Porém, enquanto equipa biológica, os cientistas não fornecem informação sobre formas de ilegalidades ou de controlo ou de algo atinente ao controlo. Apenas estão interessados em saberem o que é apanhado. E é do interesse de todos, certificarem-se de que sabem exatamente o que está a ser capturado, para ter imagem adequada da situação no mar, pois, só compreendendo o que está a acontecer, podem gerir adequadamente as coisas.

É importante a boa relação de trabalho com os pescadores, já que os seus interesses são também os dos cientistas. Se o mar não corre bem, os cientistas querem saber, porque se descobrirem e identificarem onde é que as coisas parecem estar a ter dificuldades, para levantarem essa questão aos responsáveis políticos e aos decisores, de modo que estes estejam mais preparados para a tomada das medidas adequadas para tentarem proteger o mar, no interesse dos pescadores.

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De manhã cedo, em Malta, pequeno estado-membro da UE, no Mediterrâneo, um barco de pesca transportava os cientistas marinhos Kelly, Luca e Frank, que trabalham para a ARM, unidade de investigação do departamento público maltês das pescas e da aquicultura que tem a missão crucial de fornecer aos decisores políticos dados exatos sobre a saúde dos oceanos.

Explana Luca Pisani: “Trabalho com uma equipa fantástica de biólogos e de observadores no terreno e, em conjunto, efetuamos toda a recolha de dados relativos às obrigações da UE. Hoje, estamos a fazer uma observação a bordo, que é um dos nossos esforços de observação de rotina, em que temos a oportunidade de ir a bordo com os pescadores e medir o que eles capturam, tanto o peixe que pretendem desembarcar como as capturas acessórias e as devoluções.” E Kelly Camilleri, responsável científica da ARM, julga esta a melhor parte do trabalho, porque têm a oportunidade de ver e de trabalhar com os pescadores e de conhecer toda a indústria da pesca.

À medida que a tripulação recolhe as capturas, os cientistas observam, analisam e registam dados biológicos básicos. “Esta informação é muito valiosa, para os responsáveis políticos e decisores, porque podemos quantificar quanto custa, do ponto de vista ecológico, capturar espécies comercialmente importantes. Porque por cada espécie comercial que se captura, acaba-se por capturar também espécies que não estão relacionadas e que, de outra forma, não seriam alvo da pesca”, explica Luca Pisani.

Tais dados, compilados ao nível da UE, no quadro da recolha plurianual de dados sobre as pescas, servem para orientar o trabalho dos decisores políticos sobre as unidades populacionais e sobre os recursos pesqueiros, como servem de base ao reforço do pilar socioeconómico do setor das pescas, segundo Alicia Bugeja Said, ministra-adjunta das Pescas e da Aquicultura de Malta, que declarou: “Acredito na necessidade de equilibrar os pilares ambiental, social e económico, quando se trata de projetar políticas para o setor.”

Embora as pescas representem apenas 1% do produto interno bruto (PIB) de Malta e empregue cerca de mil pescadores, a antiga académica, agora ministra, sustenta que a pesca está ligada à identidade da nação e que a ciência desempenha papel crucial na preservação deste património cultural. “Acredito que a ciência fornece dados para a nossa tomada de decisões. Precisamos de dados para podermos prever o futuro. Tem havido um número bastante representativo de cientistas a bordo de diferentes embarcações, tanto arrastões como barcos com rede de tresmalho e palangreiros [barcos com aparelhos de pesca, que têm uma linha principal e muitas linhas secundárias onde são postos os anzóis], o que torna a recolha de dados bastante representativa.”

As observações a bordo são apenas um dos métodos dos cientistas para estudar o setor das pescas.

Às quatro da manhã, o sino toca, no início do leilão de peixe. Os compradores competem pelas melhores capturas que vão parar aos pratos de toda a ilha. Porém, Frank Farrugia, funcionário da ARM, está ali por uma razão diferente: como parte do plano plurianual de recolha de dados, há orçamento que permite comprar o peixe; depois, os peixes são processados nos laboratórios, onde se fazem amostras biométricas: principalmente comprimento, peso, sexo e maturidade.

Estes espadartes e dourados-do-mar chegam aos escritórios da ARM por volta da mesma altura que os dos colegas de Frank. Os peixes são dissecados para estudo dos parâmetros biológicos, marcando o primeiro passo no processo de recolha de dados que chegará à Comissão Europeia.

A este respeito, Jurgen Mifsud, executivo sénior da ARM, refere: “As nossas unidades populacionais de peixes são partilhadas com os países nossos vizinhos. Por isso, é muito importante que os nossos conjuntos de dados entre estados-membros sejam partilhados e, depois, agregados, de acordo com os pedidos de dados que recebemos da Comissão Europeia e de outros fóruns que trabalham com a Comissão Europeia.”

Doutorado em Estatística e Matemática, Jurgen está equipado para supervisionar a recolha de dados, bem como vários outros projetos desenvolvidos pelos 35 trabalhadores da ARM. Porém, o seu interesse pela pesca é também pessoal. Nas pescas, predominam os pescadores de pequena escala, isto é, são pescadores tradicionais que fornecem os alimentos à população. E é crucial ter alguém que fornece alimentos ao país.

Como em muitos locais do Mediterrâneo, os pescadores malteses enfrentam vários problemas, como as alterações climáticas, a poluição, o esgotamento dos stocks e a intensa concorrência. A pequena escala da atividade torna tais desafios mais assustadores: “Penso que não conseguimos dar resposta à diversidade e heterogeneidade dos pescadores, especialmente os de pequena escala. Na maior parte das vezes, estes fóruns dão muita atenção aos grandes pescadores comerciais. Tendo em conta que, em Malta, mais de 90% dos nossos pescadores são de pequena escala, penso que precisamos de ter mais fóruns europeus que se ocupem efetivamente da indústria da pequena pesca”, considera Alicia Bugeja Said.

Esta opinião é partilhada pelos cientistas a bordo dos navios de pesca, que ajudam a promover a confiança entre pescadores e decisores políticos: “É muito importante que tenhamos uma boa relação de trabalho com os pescadores. E, no fim de contas, os seus interesses são os nossos próprios interesses. Se o mar não está a correr bem, queremos saber. Porque, se conseguirmos descobrir e identificar onde é que há dificuldades, podemos levar esses problemas aos políticos e aos decisores, para que estejam mais preparados para tomar as medidas adequadas para tentarem proteger o mar no interesse dos pescadores”, diz Luca Pisani.

Enquanto a saúde dos oceanos estiver em perigo, o trabalho de Frank, Luca e Kelly será essencial para resolver o problema e para moldar uma visão partilhada do futuro do ecossistema marinho.

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A UE, no quadro da estratégia para desenvolver uma indústria de algas sustentável e lucrativa, financia projetos-piloto para ajuda aos pescadores na transição para práticas sustentáveis que ajudem a regenerar os oceanos. E prevê que, de acordo com os cientistas, o mercado europeu de algas atinja nove mil milhões de euros, até 2030, devido à elevada procura nos setores alimentar, cosmético, farmacêutico e energético.

“A iniciativa Algas da UE é um plano de ação para aumentar a produção e o consumo sustentáveis de algas na Europa”, disse à Euronews Felix Leinemann, chefe da Unidade para os Setores da Economia Azul, Aquicultura e Ordenamento do Espaço Marítimo da Direção-Geral dos Assuntos Marítimos e das Pescas da Comissão Europeia, esclarecendo: “A procura pode ser seis vezes maior nesta década. Por isso, é necessário que produzamos as nossas próprias algas. O Atlântico ou o Mar do Norte são condições ideais para o cultivo de algas marinhas.”

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Há 20 anos, sofria-se pesadamente o impacto da sobrepesca. Por exemplo, hoje, as populações de pescada, a base da economia pesqueira na Galiza, são abundantes no Atlântico.

Na década de 1990, a sobrepesca reduziu os efetivos para níveis muito inferiores aos sustentáveis. Os cientistas deram o alarme. E a UE adotou medidas no início da década de 2000. Estabeleceu limites de captura rigorosos, com base em pareceres científicos, aumentou a dimensão das malhas das redes de pesca, para permitir a fuga dos peixes mais jovens, e criou duas grandes zonas protegidas para o crescimento destes. As condições do mar eram favoráveis, o que desempenhou papel importante. Os esforços deram frutos: a população de pescada do Norte atingiu níveis sem precedentes. A recuperação permitiu o aumento gradual das quotas de captura, para que a pescada continuasse a ser pescada de forma sustentável. E, agora, há esperança de replicar este sucesso com outras unidades populacionais.

Porém, enquanto a pescada do Oceano Atlântico é pescada de forma sustentável, as unidades populacionais do Mediterrâneo encontram-se em estado muito mais precário. Um relatório recente da Comissão Europeia mostra que os números da pescada do Mediterrâneo teriam de aumentar mais de dez vezes, para atingirem a sustentabilidade. O terreno subaquático parece ajudar algumas pescadas a fugir aos arrastões, permitindo a sua sobrevivência.

A pescada é sobre-explorada, mas não está em risco de colapso. Parte crucial da população, as grandes fêmeas, vive em zonas normalmente inacessíveis à pesca, o que ajuda a manter a população, apesar da sobre-exploração em curso.

O Mediterrâneo é complexo, o que faz da recuperação da pescada um desafio a longo prazo. Os encerramentos de zonas, a utilização de artes mais seletivas e a limitação dos dias de pesca foram implementados 20 anos mais tarde do que no Atlântico. E é cedo para avaliar os resultados.

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Não se deve esperar uma crise para agir, nem confiar no amadorismo. A ação precoce evita problemas complexos e repercussões socioeconómicas. O mar é generoso e, com as medidas corretas, reconstitui os seus recursos. Há limites a não ultrapassar, mas, se agirmos com sensatez e com profissionalismo, o peixe regressará. Os oceanos, cujo estado é alarmante, terão o futuro que lhe derem decisores políticos e agentes económicos, ouvindo, sempre, os cientistas marinhos, tanto na pescaria, como na preservação ambiental.

2024.06.27 – Louro de Carvalho

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