É evidente que os políticos e mesmo os tecnocratas (normalmente
economistas, gestores, juristas e engenheiros) recorrem a cientistas das
diversas áreas para a tomada de decisões em áreas sensíveis. Quem não se lembra
dos debates entre cientistas (não todos) a que os decisores políticos (nomeadamente
o Presidente da República, membros do governo e representantes dos partidos
políticos) assistiam, no Infarmed, nos tempos da pandemia de covid-19)?
Também, como é óbvio, as decisões tomadas pelas instituições políticas e tecnocráticas
da União Europeia (UE) se socorrem dos pareceres e dos estudos dos cientistas
das diversas áreas.
A este respeito, a Euronews, a
25 de junho, vincando que as decisões tomadas em Bruxelas sobre pescas se
baseiam nos dados obtidos pelos observadores científicos no terreno, revela que
acompanhou uma equipa, em Malta, para perceber este trabalho dos cientistas.
Com efeito,
os regulamentos de pesca que regem as águas da UE são elaborados em gabinetes
distantes, mas o conhecimento em que se baseiam começa no mar, com observadores
científicos. É certo que os regulamentos de pesca, tal como a generalidade dos instrumentos
legislativos são passíveis de críticas, por vários motivos: nem sempre os
cientistas estão de acordo, tendo até dificuldade em passar aos políticos o
mínimo de entendimento comum sobre determinadas matérias; os decisores políticos
nem sempre acolhem o parecer dos peritos; e os temas, por vezes, causam melindres
ou concitam suscetibilidades nos setores atingidos.
Contudo, os cientistas
marinhos – mulheres e homens – “são a espinha dorsal da recolha de dados sobre
as pescas da UE”, para o que estabelecem forte relação de trabalho com os
pescadores.
Luca Pisani, biólogo
marinho da Aquatic Resources Malta (ARM),
frisa a importância de manter forte relação com os pescadores que acolhem
cientistas a bordo das suas embarcações. Esta colaboração faz a ponte entre os
pescadores e os decisores políticos, assegurando que as decisões são baseadas
em dados exatos sobre a saúde dos oceanos. Porque os cientistas trabalham com o
governo, os pescadores podem tender a ser tímidos ou céticos, por temerem que
os cientistas levem o governo a implementar políticas e regulamentos que os afetem
negativamente.
Porém,
enquanto equipa biológica, os cientistas não fornecem informação sobre formas
de ilegalidades ou de controlo ou de algo atinente ao controlo. Apenas estão interessados
em saberem o que é apanhado. E é do interesse de todos, certificarem-se de que
sabem exatamente o que está a ser capturado, para ter imagem adequada da
situação no mar, pois, só compreendendo o que está a acontecer, podem gerir
adequadamente as coisas.
É importante
a boa relação de trabalho com os pescadores, já que os seus interesses são também
os dos cientistas. Se o mar não corre bem, os cientistas querem saber, porque
se descobrirem e identificarem onde é que as coisas parecem estar a ter
dificuldades, para levantarem essa questão aos responsáveis políticos e aos
decisores, de modo que estes estejam mais preparados para a tomada das medidas
adequadas para tentarem proteger o mar, no interesse dos pescadores.
***
De manhã
cedo, em Malta, pequeno estado-membro da
UE, no Mediterrâneo, um barco de pesca transportava os cientistas marinhos Kelly,
Luca e Frank, que trabalham para a ARM,
unidade de investigação do departamento público maltês das pescas e da
aquicultura que tem a missão crucial de fornecer aos decisores políticos dados
exatos sobre a saúde dos oceanos.
Explana Luca Pisani: “Trabalho com uma
equipa fantástica de biólogos e de observadores no terreno e, em conjunto,
efetuamos toda a recolha de dados relativos às obrigações da UE. Hoje, estamos
a fazer uma observação a bordo, que é um dos nossos esforços de observação de
rotina, em que temos a oportunidade de ir a bordo com os pescadores e medir o
que eles capturam, tanto o peixe que pretendem desembarcar como as capturas
acessórias e as devoluções.” E Kelly
Camilleri, responsável científica da ARM, julga esta a melhor parte do
trabalho, porque têm a oportunidade de ver e de trabalhar com os pescadores e
de conhecer toda a indústria da pesca.
À medida que
a tripulação recolhe as capturas, os cientistas observam, analisam e registam
dados biológicos básicos. “Esta informação é muito valiosa, para os
responsáveis políticos e decisores, porque podemos quantificar quanto custa, do
ponto de vista ecológico, capturar espécies comercialmente importantes. Porque
por cada espécie comercial que se captura, acaba-se por capturar também
espécies que não estão relacionadas e que, de outra forma, não seriam alvo da
pesca”, explica Luca Pisani.
Tais dados,
compilados ao nível da UE, no quadro da recolha plurianual de dados sobre as
pescas, servem para orientar o trabalho dos decisores políticos sobre as
unidades populacionais e sobre os recursos pesqueiros, como servem de base ao
reforço do pilar socioeconómico do setor das pescas, segundo Alicia Bugeja Said, ministra-adjunta
das Pescas e da Aquicultura de Malta, que declarou: “Acredito na necessidade de
equilibrar os pilares ambiental, social e económico, quando se trata de
projetar políticas para o setor.”
Embora as
pescas representem apenas 1% do produto interno bruto (PIB) de Malta e empregue
cerca de mil pescadores, a antiga académica, agora ministra, sustenta que a
pesca está ligada à identidade da nação e que a ciência desempenha papel
crucial na preservação deste património cultural. “Acredito que a ciência
fornece dados para a nossa tomada de decisões. Precisamos de dados para
podermos prever o futuro. Tem havido um número bastante representativo de
cientistas a bordo de diferentes embarcações, tanto arrastões como barcos com
rede de tresmalho e palangreiros [barcos com aparelhos de pesca, que têm uma
linha principal e muitas linhas secundárias onde são postos os anzóis], o que torna a recolha de dados bastante representativa.”
As
observações a bordo são apenas um dos métodos dos cientistas para estudar o
setor das pescas.
Às quatro da
manhã, o sino toca, no início do leilão de peixe. Os compradores competem pelas
melhores capturas que vão parar aos pratos de toda a ilha. Porém, Frank Farrugia, funcionário
da ARM, está ali por uma razão diferente: como parte do plano plurianual de
recolha de dados, há orçamento que permite comprar o peixe; depois, os peixes são
processados nos laboratórios, onde se fazem amostras biométricas:
principalmente comprimento, peso, sexo e maturidade.
Estes
espadartes e dourados-do-mar chegam aos escritórios da ARM por volta da mesma
altura que os dos colegas de Frank. Os peixes são dissecados para estudo dos
parâmetros biológicos, marcando o primeiro passo no processo de recolha de
dados que chegará à Comissão Europeia.
A este
respeito, Jurgen Mifsud, executivo sénior
da ARM, refere: “As nossas unidades populacionais de peixes são partilhadas com
os países nossos vizinhos. Por isso, é muito importante que os nossos conjuntos
de dados entre estados-membros sejam partilhados e, depois, agregados, de
acordo com os pedidos de dados que recebemos da Comissão Europeia e de outros
fóruns que trabalham com a Comissão Europeia.”
Doutorado em
Estatística e Matemática, Jurgen está equipado para supervisionar a recolha de
dados, bem como vários outros projetos desenvolvidos pelos 35 trabalhadores da
ARM. Porém, o seu interesse pela pesca é também pessoal. Nas pescas, predominam
os pescadores de pequena escala, isto é, são pescadores tradicionais que fornecem
os alimentos à população. E é crucial ter alguém que fornece alimentos ao país.
Como em
muitos locais do Mediterrâneo, os pescadores malteses enfrentam vários
problemas, como as alterações climáticas, a poluição, o esgotamento dos stocks e a intensa concorrência. A
pequena escala da atividade torna tais desafios mais assustadores: “Penso que
não conseguimos dar resposta à diversidade e heterogeneidade dos pescadores,
especialmente os de pequena escala. Na maior parte das vezes, estes fóruns dão
muita atenção aos grandes pescadores comerciais. Tendo em conta que, em Malta,
mais de 90% dos nossos pescadores são de pequena escala, penso que precisamos
de ter mais fóruns europeus que se ocupem efetivamente da indústria da pequena
pesca”, considera Alicia Bugeja Said.
Esta opinião
é partilhada pelos cientistas a bordo dos navios de pesca, que ajudam a
promover a confiança entre pescadores e decisores políticos: “É muito
importante que tenhamos uma boa relação de trabalho com os pescadores. E, no
fim de contas, os seus interesses são os nossos próprios interesses. Se o mar
não está a correr bem, queremos saber. Porque, se conseguirmos descobrir e
identificar onde é que há dificuldades, podemos levar esses problemas aos
políticos e aos decisores, para que estejam mais preparados para tomar as
medidas adequadas para tentarem proteger o mar no interesse dos pescadores”,
diz Luca Pisani.
Enquanto a
saúde dos oceanos estiver em perigo, o trabalho de Frank, Luca e Kelly será
essencial para resolver o problema e para moldar uma visão partilhada do futuro
do ecossistema marinho.
***
A UE, no quadro da
estratégia para desenvolver uma indústria de algas sustentável e lucrativa, financia projetos-piloto para ajuda aos
pescadores na transição para práticas sustentáveis que ajudem a regenerar os
oceanos. E prevê que, de acordo com os cientistas, o mercado europeu de
algas atinja nove mil milhões de euros, até 2030, devido à elevada procura nos
setores alimentar, cosmético, farmacêutico e energético.
“A
iniciativa Algas da UE é um plano de ação
para aumentar a produção e o consumo sustentáveis de algas na Europa”, disse
à Euronews Felix Leinemann, chefe
da Unidade para os Setores da Economia Azul, Aquicultura e Ordenamento do
Espaço Marítimo da Direção-Geral dos Assuntos Marítimos e das Pescas da
Comissão Europeia, esclarecendo: “A procura pode ser seis vezes maior nesta
década. Por isso, é necessário que produzamos as nossas próprias
algas. O Atlântico ou o Mar do Norte são condições ideais para o cultivo
de algas marinhas.”
***
Há 20 anos, sofria-se pesadamente o impacto da sobrepesca. Por exemplo, hoje,
as populações de pescada, a base da
economia pesqueira na Galiza, são
abundantes no Atlântico.
Na década de
1990, a sobrepesca reduziu os efetivos para níveis muito inferiores aos
sustentáveis. Os cientistas deram o alarme. E a UE adotou medidas no
início da década de 2000. Estabeleceu limites de captura rigorosos, com base em
pareceres científicos, aumentou a dimensão das malhas das redes de pesca, para
permitir a fuga dos peixes mais jovens, e criou duas grandes zonas protegidas
para o crescimento destes. As condições do mar eram favoráveis, o que desempenhou
papel importante. Os esforços deram frutos: a população de pescada do Norte
atingiu níveis sem precedentes. A recuperação permitiu o aumento gradual das
quotas de captura, para que a pescada continuasse a ser pescada de forma
sustentável. E, agora, há esperança de replicar este sucesso com outras
unidades populacionais.
Porém,
enquanto a pescada do Oceano Atlântico é pescada de forma sustentável, as
unidades populacionais do Mediterrâneo encontram-se
em estado muito mais precário. Um relatório recente da Comissão Europeia mostra
que os números da pescada do Mediterrâneo teriam de aumentar mais de dez vezes,
para atingirem a sustentabilidade. O terreno subaquático parece ajudar algumas
pescadas a fugir aos arrastões, permitindo a sua sobrevivência.
A pescada é
sobre-explorada, mas não está em risco de colapso. Parte crucial da população,
as grandes fêmeas, vive em zonas normalmente inacessíveis à pesca, o que ajuda
a manter a população, apesar da sobre-exploração em curso.
O
Mediterrâneo é complexo, o que faz da recuperação da pescada um desafio a longo
prazo. Os encerramentos de zonas, a utilização de artes mais seletivas e a
limitação dos dias de pesca foram implementados 20 anos mais tarde do que no
Atlântico. E é cedo para avaliar os resultados.
***
Não se deve esperar
uma crise para agir, nem confiar no amadorismo. A ação precoce evita problemas complexos
e repercussões socioeconómicas. O mar é generoso e, com as medidas corretas,
reconstitui os seus recursos. Há limites a não ultrapassar, mas, se agirmos com
sensatez e com profissionalismo, o peixe regressará. Os oceanos, cujo estado é
alarmante, terão o futuro que lhe derem decisores políticos e agentes
económicos, ouvindo, sempre, os cientistas marinhos, tanto na pescaria, como na
preservação ambiental.
2024.06.27 –
Louro de Carvalho
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